Sequestro Vascular Intralobar: apresentação no primeiro ano de vida
INTRODUÇÃO
O sequestro pulmonar é uma anomalia congénita rara, integrada no espectro de
malformação broncopulmonares, cor-respondendo a 0,15-6,4% de todas as
malformações (1,2,3). É caracterizado por uma massa de tecido pulmonar não
funcionante que recebe a sua vascularização através de uma artéria sistémica e
não tem comunicação com a árvore traqueobrônquica(1,2). A localização mais
frequente é nos segmentos basais medial ou posterior do lobo inferior esquerdo
(LIE) (4). A etiologia dos sequestros pulmonares tem sido objecto de discussão.
A teoria mais amplamente aceite sugere que resulta da formação de um esboço
pulmonar acessório em posição caudal com os esboços pulmonares normais, o que
acontecerá entre a quarta e oitava semanas de gestação (5).
Tendo por base a relação com a pleura, são divididos em sequestros extralobares
e intralobares. Os sequestros intralobares são os mais comuns e a malformação
encontra-se incorporada no parênquima pulmonar normal e recoberta por pleura
visceral.
Os sequestros extralobares constituem 25% de todos os sequestros pulmonares.
Localizam-se exteriormente à pleura visceral, acima do diafragma e em mais de
60% dos pacientes coexistem outras anomalias congénitas. São mais
frequentemente diagnosticados no período neonatal, podendo ainda ser
detectadas através de ecografia realizada durante a gestação(2,5,6).
Nas duas formas de sequestro a vascularização arterial provém da circulação
sistémica, mais frequentemente da aorta descendente. A drenagem venosa é, no
caso dos sequestros intralobares para o território pulmonar e, no caso dos
sequestros extralobares, para uma veia sistémica (ázigos, hemiázigos ou veia
cava inferior) (2,3).
A história natural dos sequestros intralobares é variável. Raramente se
manifestam clinicamente antes dos dois anos de idade. Apresentam-se sob a forma
de pneumonia crónica ou recorrente na criança e adolescente (2,3,6). Metade
dos casos atinge os 20 anos de idade antes que o diagnóstico seja estabelecido
(6). O diagnóstico preciso requer um elevado índice de suspeição associado à
visualização de uma artéria sistémica anómala. O tratamento consiste na
ressecção cirúrgica.
Descrevemos o caso clínico de um sequestro intralobar com apresentação sob a
forma de insuficiência cardíaca congestiva nos primeiros meses de vida.
CASO CLÍNICO
Lactente do sexo masculino, filho de pais consanguíneos (etnia cigana). A
gestação foi de 36 semanas, sem intercorrências e com ecografias pré-natais
normais. As serologias maternas para grupo TORCH, VIH, e AgHBs não indicavam
infecção activa. O parto foi eutócico, hospitalar, com Apgar de 9/10 ao 1´ e 5´
respectivamente e com uma somatometria adequada à idade gestacional. O período
neonatal decorreu sem intercorrências.
Aos dois meses de idade foi referenciado à consulta de Cardiologia Pediátrica
por apresentar um sopro cardíaco.
Ao exame objectivo apresentava um aspecto emagrecido (peso=3400gr, P<5),
palidez cutânea, fácies incaracterístico. SpO2 em ar ambiente de 100%, FC
156bpm, TA 60/37mmHg. Apresentava sinais de dificuldade respiratória ligeira com
tiragem subcostal e polipneia; sem cianose. Na auscultação pulmonar os sons
respiratórios eram presentes bilateralmente, sem ruídos adventícios;
auscultação cardíaca com S1 e S2 presentes e rítmicos e um sopro sistólico grau
III/VI mais audível no bordo esternal esquerdo com irradiação para todo o
precórdio. O bordo hepático era palpável 3cm abaixo do rebordo costal na linha
médio clavicular direita. Os pulsos femorais eram normais e simétricos.
A radiografia de tórax (Figura 1) revelou cardiomegalia com hipervascularização
pulmonar, associado à presença de uma hipotransparência parahilar com extensão
à região retrocardíaca esquerda. No ECG apresentava taquicardia sinusal. O
ecocardiograma bidimensional/Doppler (Figura 2) mostrava a presença de
foramenoval patente, septo interventricular intacto, cavidades esquerdas
dilatadas, função biventricular normal, válvulas aurículo ventriculares e
sigmoideias normais. Na parte média da aorta descendente torácica observava-se
um vaso anómalo, que emergia da aorta para um circuito de baixa resistência
com shunt contínuo, laminar compatível com colateral aorta-artéria pulmonar.
Figura 1 Radiografia de tórax antero-posterior. Cardiomegalia com
hipervascularização pulmonar, associado à presença de uma hipotransparência
parahilar com extensão à região retrocardíaca esquerda.
Figura 2 Ecocardiograma. (a) Plano para esternal quatro câmaras: dilatação da
aurícula e ventrículo esquerdo. (b) Plano supraesternal a nível do arco
aórtico: vaso anómalo (seta), que emerge da aorta (Ao) para um circuito de
baixa resistência com shunt contínuo laminar compatível com colateral aorta-
artéria pulmonar. AE, aurícula esquerda; VE, ventrículo esquerdo; AD, aurícula
direita; VD, ventrículo direito.
Foi medicado com terapêutica anticongestiva (diurético) tendo tido resposta
clínica favorável.
O cateterismo cardíaco (Figura 3) realizado aos sete meses de idade confirmou a
presença de colateral com 7mm de diâmetro, com origem na porção inferior da
aorta torácica, dirigindo-se para o LIE com drenagem para a aurícula esquerda
(circulação venosa pulmonar). A arteriografia pulmonar (Figura 4) mostrou
irrigação muito escassa para o parênquima pulmonar do LIE. Os aspectos
descritos confirmaram o diagnóstico de sequestro pulmonar.
Figura 3 Angiografia na aorta descendente. Presença de colateral com 7mm de
diâmetro, com origem na porção inferior da aorta torácica, dirigindo-se para o
lobo pulmonar inferior esquerdo.
Figura 4 Arteriografia pulmonar. Irrigação muito escassa para o parênquima
pulmonar do lobo inferior esquerdo.
Aos sete meses e meio foi submetido a laqueação da colateral e lobectomia do
LIE por toracotomia. A cirurgia e o período pós-operatório decorreram sem
intercorrências, tendo tido alta ao sexto dia. Actualmente, com 14 meses de
idade encontra-se assintomático e sem necessidade de terapêutica
cardiovascular.
DISCUSSÃO
O sequestro pulmonar é uma malformação congénita rara, caracterizando-se por
uma massa de tecido pulmonar não funcionante, que recebe a sua vascularização
arterial da aorta descendente. A drenagem venosa é feita através das veias
pulmonares para a aurícula e ventrículo esquerdos. Deste modo, ocorre um shunt
esquerdo-direito, que dependendo do calibre do vaso anómalo, poderá causar uma
sobrecarga de volume nestas câmaras, cursando com dilatação e insuficiência
(9,10).
Radiograficamente podem-se apresentar sob a forma de hipotransparência
homogénea com margens irregulares, ou sob a forma de uma massa uniforme com
contornos lisos ou lobulados, localizada no segmento posterior do lobo inferior
esquerdo. No entanto, pode ser de difícil visualização na radiografia de tórax.
O Ecocardiograma com Doppler aumenta a acuidade diagnóstica, ao identificar ou
elevar o grau de suspeição para a presença de uma artéria de vascularização do
sequestro com origem sistémica, frequentemente a aorta torácica (2).
A angio-TC não foi realizada no caso clínico apresentado, mas reveste-se de
grande importância para orientação diagnóstica através da visualização das
alterações do parênquima pulmonar e identificação do vaso arterial anómalo,
auxiliando na planificação do tratamento cirúrgico. O cateterismo cardíaco com
angiografia é um método de diagnóstico tradicional, que suporta o diagnóstico
permitindo igualmente a planificação cirúrgica (1,7).
A terapêutica dos casos sintomáticos consiste na ressecção cirúrgica precoce
de forma a controlar os sintomas e evitar as complicações (1). A lobectomia,
ao contrário da ressecção segmentar, é o tratamento de eleição, e a
identificação e laqueação do vaso anómalo torna-se parte fundamental do
procedimento. Deste modo, a ressecção pulmonar em combinação com a oclusão do
vaso, são cruciais para o tratamento definitivo de um quadro de insuficiência
cardíaca resultante do sequestro intralobar(2).
CONCLUSÃO
O sequestro pulmonar intralobar é uma patologia congénita rara, com uma
apresentação clínica pouco frequente no primeiro ano de vida. Acresce o facto
de a forma de apresentação mais frequente ser a infecção pulmonar de repetição.
Neste caso clínico pretendemos realçar a necessidade um elevado grau de
suspeição perante uma criança com quadro clínico de insuficiência cardíaca
congestiva, sem anomalias estruturais intracardíacas.