Diagnóstico
Diagnóstico
Fernando Pereira1
1S. Gastroenterologia Pediátrica, CH Porto
Se nos interrogamos sobre quando devemos pensar na Doença Inflamatória
Intestinal (DII) a resposta genérica deverá ser, cada vez mais e cada vez mais
cedo. De facto a sua frequência tem vindo a aumentar nas últimas décadas, em
especial a Doença de Crohn e ocorre ou é diagnosticada em idades cada vez mais
jovens. Como é regra na actividade médica a abordagem de um doente começa com
uma história clínica bem conduzida e um exame físico cuidado que induzem ou
orientam os exames auxiliares de diagnóstico que permitirão confirmar ou não a
nossa suspeita. Uma criança com dor abdominal persistente e recorrente,
alterações do trânsito intestinal, especialmente diarreia, com ou sem sangue
nas fezes, palidez, perda de peso ou anorexia e em que o exame objectivo
evidencia, palidez das mucosas, aftose oral, dor ou tumefacção na fossa ilíaca
direita e eritema nodoso e com fistula/s anais, a hipótese de ter uma DII é
muito provável e deve ser investigada. Se esta criança tem antecedentes
familiares de DII a probabilidade aumenta. É claro que nem sempre o quadro é
tão completo e por vezes observamos uma criança que tem apenas ligeiras e pouco
valorizadas dores abdominais e anemia ferropénica e que quando devidamente
estudada se demonstra ter DII; em outros casos somos confrontados com criança
que apresenta uma fístula anal frequentemente recidivante após correcção
cirúrgica e em que a hipótese de DII deve ser sempre colocada; outros doentes
apresentam-se com quadro de anorexia acentuada, por vezes com o diagnóstico de
anorexia nervosa e de facto a sua doença responsável pelo quadro é de facto uma
DII. É assim muito claro que a doença inflamatória intestinal e muito
especialmente a D. Crohn, pode apresentar-se clinicamente de formas muito
diferentes (fenótipos), rica ou pobre em sintomas, o que está em grande parte
dependente da sua base genética, do grau de actividade da doença e da sua
localização no tubo digestivo. Raras vezes, são as manifestações articulares
que levam o doente à consulta de Pediatria ou Reumatologia e depois de
excluída patologia articular primária somos conduzidos ao diagnóstico de DII.
Nos doentes com colite ulcerosa o quadro clínico inclui persistentemente
aumento do número de dejecções, quase sempre diarreicas, diurnas e nocturnas
e muito frequentemente associadas à presença de sangue e muco. É muito
importante referir a necessidade de fazer um exame proctológico a todos os
doentes em que a suspeita de DII é colocada.
Perante a suspeita de DII deveremos começar por efectuar estudo analítico que
deverá procurar sinais de actividade inflamatória (VSG, PCR, calprotectina
fecal) anemia (hemograma), ferropenia, hipoproteinemia, alterações da função
hepática e renal (estudo bioquímico) e ainda a presença de alterações
imunológicas (ANCA, ASCA e imunoglobulinas). Os resultados obtidos, se
confirmam a existência de actividade inflamatória e sobretudo se se associa
anemia, trombocitose, ferropenia e hipergamaglobulinemia, obrigam à observação
endoscópica do tubo digestivo na sua totalidade. Devemos portanto submeter o
doente à realização de endoscopia digestiva alta e baixa, sobre sedação
profunda ou anestesia, com as quais iremos observar o esófago, estômago,
duodeno, colon e íleum terminal e efectuar biópsias para estudo histológico da
mucosa. Quando nenhum destes exames revela alterações deveremos então proceder
ao estudo do intestino delgado, que poderá ser efectuado por radiologia
(enteróclise ou RMN) ou recorrendo à cápsula endoscópica, uma vez que a doença
pode estar limitada àquele segmento digestivo.
É altura de afirmarmos que o diagnóstico de DII dever ser sempre efectuado com
base em dados clínicos, endoscópicos e/ou radiológicos e histológicos. Só desta
forma será possível fazer um diagnóstico de Doença de Crohn ou Colite ulcerosa
e da extensão e tipo de lesões do tubo digestivo, bem como da sua gravidade.
Por vezes quando existem apenas lesões do colon, mesmo com todos aqueles
elementos presentes, não é possível fazer um diagnóstico definitivo e
consideramos tratar-se de colite indeterminada que a evolução posterior
acabará por permitir classificar definitivamente.
A Doença de Crohn tem como sinais endoscópicos o quadro inflamatório da parede
do tubo digestivo, com úlceras aftosas, lineares ou estreladas, em regra
separadas por mucosa de aspecto sensivelmente normal, estenoses inflamatórias e
poupando frequentemente o recto. O envolvimento esofágico apresenta-se com
sinais inflamatórios e úlceras e ao nível gástrico, gastropatia congestiva
erosiva ou ulcerativa a que pode associar-se estenose pilórica. A Colite
ulcerosa envolve apenas a mucosa e submucosa do colon de forma total ou
parcialmente; nas crianças a tendência é para envolvimento mais extenso,
constituído por congestão, edema ulceração, friabilidade, perda do padrão
vascular, hemorragia fácil, alterações que envolvem de forma difusa o segmento
atingido e não poupando o recto. Histologicamente a Doença de Crohn
caracteriza-se infiltrado inflamatório crónico com actividade, ulceração,
granulomas não caseificados, distorção das criptas e distribuição focal e a
colite ulcerosa por infiltrado inflamatório do mesmo tipo mais superficial, com
abcessos crípticos, depleção das células de Goblet e distribuição contínua.
Diagnóstico diferencial com infecções bacterianas ou víricas (CMV), incluindo
de forma muito particular a tuberculose e a colite por Clostridium difficile é
obrigatório. Devemos proceder à pesquisa de toxina nas fezes, ao exame
microbiológico das fezes e das biópsias intestinais.
Desta forma conseguimos fazer o diagnóstico de DII ou excluí-lo e estabelecer
um padrão de gravidade que permitirá iniciar o tratamento mais adequado.
Tendo por objectivo tornar mais prática a nossa intervenção, apresentamos
seguidamente, alguns casos clínicos, exemplificativos da forma diversa como a
DII pode apresentar-se.
O primeiro caso refere-se a um rapaz de 12 anos com história de dor abdominal
recorrente, mais intensa na fossa ilíaca direita e sobretudo após as refeições
e com duração de cerca de seis meses. Recorreu ao serviço de urgência por
apresentar episódio de dor aguda intensa na fossa ilíaca direita. A palpação
abdominal revelava defesa na fossa ilíaca direita e leucocitose com
neutrofilia, elevação acentuada da PCR e moderada da VSG. Foi efectuado o
diagnóstico de apendicite aguda e o doente submetido a laparotomia. Durante a
exploração da cavidade abdominal foi diagnosticada ileíte terminal extensa com
áreas de estenose, colocando-se como hipótese de diagnóstico a D. Crohn. O
estudo endoscópico e radiológico seguidamente efectuado e as biópsias do colon
e ileum terminal, permitiram confirmar o diagnóstico de D Crohn atingindo o
colon direito e o ileum terminal, em forma grave estenosante e penetrante.
O segundo dos nossos doentes era uma menina de 14 anos com dor abdominal
recorrente periumbilical, pouco intensa e quase diária e com astenia
progressiva com perda de pesosignificativa mas não quantificada. Referia
igualmente período de amenorreia de três meses. O seu exame objectivo não
revelava alterações significativas. No estudo analítico efectuado salientava-se
a presença de anemia hipocrómica e microcítica com ferro e ferritina baixos,
trombocitose e VSG 47mm/iªh. A pesquisa de sangue oculto nas fezes foi
negativa. Efectuou endoscopia digestiva alta e colonoscopia que foram normais e
seguidamente enteroscopia por videocápsula que permitiu observar edema,
congestão e ulceração no ileum sendo colocado o diagnóstico de D Crohn ileal,
forma inflamatória ligeira a moderada.
O nosso terceiro doente era uma menina com 10 anos que nos procurou por ter há
seis semanas, seis a oito dejecções diárias, diurnas e nocturnas por vezes com
pequenas quantidades de muco e sangue nas fezes associadas a mal estar
abdominal difuso, astenia e anorexia. A palpação abdominal era globalmente
desconfortável mas sem organomegalias ou tumefacções. O exame proctológico era
normal. O estudo laboratorial mostrou anemia hipocrómica microcítica, PCR
elevada, VSG 52/1ªh, hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia. O exame
microbiológico das fezes era negativo. A endoscopia digestiva alta era normal
e a colonoscopia com ileoscopia terminal e o trânsito do intestino delgado
permitiram o diagnóstico de extensa D Crohn ileocólica com significativa
estenose ileal terminal. As biópsias cólicas mostraram diversos granulomas.
Concluímos por D Crohn ileocólica com componente estenosante.
O doente seguinte, de 15 anos, queixava-se de diarreia com sangue e muco com
cerca de oito dejecções nas 24 horas. Não apresentava antecedentes patológicos
relevantes e o seu exame objectivo evidenciava palidez da pele e mucosas e o
toque rectal era indolor mas aparecia sangue na luva. O estudo laboratorial
apresentava anemia, trombocitose, elevação dos parâmetros inflamatórios e
hipoproteinemia. Tinha ANCA positivo e ASCA negativo e exame microbiológico e
parasitológico de fezes negativos. A endoscopia digestiva alta era normal bem
como o trânsito do intestino delgado. A colonoscopia esquerda mostrou quadro
inflamatório intenso e difuso dos segmentos observados e envolvendo o recto, a
histologia confirmou tratar-se de quadro de colite ulcerosa e o clister opaco
posteriormente realizado (tubolização cólica) permitiu diagnosticar uma doença
com envolvimento quase total do colon
O nosso último doente era um rapaz de oito anos com abcesso perianal seguido do
desenvolvimento de um trajecto fistuloso persistente. Dois meses depois
aparecimento de novo orifício fistuloso a meio do trajecto entre o ânus e o
escroto. Observado por cirurgia foi submetido a tratamento conservador sem
êxito. O seu irmão gémeo tinha também duas fistulas anais em evolução há cerca
de três meses. O seu exame objectivo não revelava qualquer alteração
nomeadamente a palpação abdominal ou o toque rectal. O estudo analítico
revelou hemograma normal, trombocitose, VSG 55mm 1ªh, TGP 2xN, ferro baixo,
albumina diminuída, IgG elevada e ASCA positivo. O exame endoscópico não
evidenciou alterações esófago-gastro-duodenais e a presença de múltiplas
ulcerações aftóides do colon esquerdo e ulcerações profundas do colon direito e
transverso. O estudo radiológico do intestino delgado por enteróclise foi
compatível com ileíte terminal ligeira.
A idade do doente, a localização das lesões, o seu tipo e a repercussão sobre o
crescimento, na D. Crohn, bem como a extensão no cólon e severidade das lesões,
na Colite Ulcerosa, permitem classificar a doença (Classificação de Montreal e
Paris) e dessa forma permitir uma orientação terapêutica mais correcta desde o
início. Os índices de actividade da D. Crohn (PCDAI) e da Colite Ulcerosa
(PUCAI) determinados de forma seriada são úteis sobretudo na avaliação da
resposta ao tratamento.
O diagnóstico da DII é como se pode ver um desafio, que todavia se consegue
ultrapassar se tivermos presente a sua natureza cada vez mais frequente e
ocorrendo em idades mais jovens como afirmamos inicialmente.