ADENOCARCINOMA DO PÂNCREAS LOCALMENTE AVANÇADO E METASTIZADO COM RESPOSTA COMPLETA A QUIMIOTERAPIA
INTRODUÇÃO
O cancro do pâncreas (CP) representa 2% de todos os
cancros e constitui, em termos de frequência, a quinta
causa de morte por cancro (1-4).
Trata-se duma neoplasia geralmente associada a um mau
prognóstico, em que o diagnóstico habitualmente tardio
restringe as taxas de ressecabilidade a 10-15% dos
tumores. Nos restantes 85-90% dos CP verificam-se
critérios de irressecabilidade que limitam a terapêutica
às opções paliativas, obtendo-se uma sobrevida média
que geralmente não ultrapassa os 6 meses (1,3,5).
Embora a cirurgia continue a ser considerada a única
modalidade terapêutica com potencial curativo e, por
isso, a terapêutica de escolha sempre que possível,
novos agentes e esquemas de quimioterapia (QT),
incluindo associação de Gencitabina e Oxaliplatina e,
ainda mais recentemente, a associação de Gencitabina
aos anticorpos monoclonais Bevacizumab (anticorpo
anti-factor de crescimento vascular endotelial) e
Cetuximab (anticorpo anti-receptor do factor de crescimento epidérmico), têm obtido alguns resultados encorajadores, melhorando as perspectivas terapêuticas dos
CP irressecáveis. Não obstante, até à data, apenas a
Gencitabina tem indicação formalmente aprovada no
âmbito da QT do CP (5-11).
Os autores apresentam um caso de CP localmente
avançado e metastizado com resposta completa a QT.
CASO CLÍNICO
M.I.G.P, sexo feminino, 54 anos, raça branca, doméstica,
natural e residente em São Miguel de Acha (Idanha-aNova), recorreu ao médico assistente em Agosto de 2004
por dor no epigastro e perda de peso (6 kg em dois meses).
Referia antecedentes pessoais de hipertensão arterial.
Não tinha hábitos tabágicos ou alcoólicos. Realizava
dieta variada e equilibrada. Negava antecedentes pessoais ou familiares de neoplasia.
À palpação abdominal foi detectada uma massa com
cerca de 3cm de diâmetro, dolorosa, fixa e de consistência dura, sendo o restante exame objectivo normal,
incluindo ausência de adenopatias palpáveis. Foi solicitada ecografia abdominal, que revelou, na cabeça do
pâncreas, uma formação tumoriforme com 5,7 cm de
maior diâmetro, com estrutura sólida e contornos irregulares, sugestiva de neoplasia pancreática; no fígado,
múltiplas imagens hipoecogénicas dispersas por ambos
os lobos, com aspecto sugestivo de localizações
secundárias. Observaram-se ainda diversas adenopatias
loco-regionais.
Efectuou, então, tomografia computorizada (TC)
abdominal que revelou uma massa sólida na cabeça do
pâncreas, com 6 cm de diâmetro, com sinais sugestivos
de invasão dos vasos mesentéricos e do arco duodenal
(Figura 1). A nível hepático detectou cinco formações
nodulares, envolvendo ambos os lobos, a maior com 3,5
cm de diâmetro, sugestivas de metastização hepática
(Figura 2).Confirmaram-se, ainda, as adenopatias abdominais.
A doente foi referenciada ao Hospital Distrital da sua
área de residência, onde foi efectuada punção/biópsia
ecoguiada da massa pancreática, cujo estudo anatomopatológico revelou adenocarcinoma do pâncreas,
sendo proposta realização de QT.
Entretanto, recorreu ao Serviço de Urgência (SU) do
nosso Hospital por agravamento da dor, tendo ficado
internada. Foram efectuadas ecografia abdominal e TC
torácica e abdominopélvica (TC TAP), que confirmaram
os achados dos exames anteriores, dos quais apenas tive-
mos conhecimento mais tarde. Apresentava uma discreta anemia normocrómica normocítica, elevação persistente da glicémia, posteriormente controlada com a
introdução de antidiabéticos orais (ADO), e elevação
dos marcadores tumorais: CEA - 25,0 ng/ml(<5,4 ng/ml)
e CA 19.9 - 228 U/ml (<37 U/ml). Os restantes elementos la-boratoriais, incluindo provas de função hepática e
renal, perfil lipídico e provas de coagulação, revelaramse normais. Com conhecimento dos estudos efectuados,
incluindo o resultado anatomopatológico, propôs-se
realização de QT. Entretanto, a doente foi observada e
acompanhada na Consulta da Dor, com introdução de
analgesia e realização de titulação progressiva, apenas
obtendo alívio álgico com um esquema composto por
Tramadol 100mg 12/12h, Metamizol Magnésico 575mg
8/8h e Paracetamol 1g em SOS.
Foi iniciada QT com Gencitabina 1000mg/m2 e
Oxaliplatina 100mg/m2 (esquema GemOx) com periodicidade quinzenal, segundo protocolo. Após a realização do segundo ciclo, o intervalo entre os tratamentos
passou a ser de três semanas, devido a marcada intolerância (náuseas, vómitos, cólicas abdominais e diar-
reia), apesar de medicação de suporte, além de importante toxicidade hematológica, com necessidade de
administração de Filgrastim após todos os ciclos e de
Eritropoietina de forma regular.
Ao longo da realização do tratamento a doente experimentou diminuição progressiva das queixas álgicas, com
abandono gradual, por iniciativa própria, da medicação
analgésica, que dispensou de forma absoluta após completar o sétimo ciclo de QT, altura em que apresentava
mais 3 kg de peso comparativamente ao início do tratamento.
Os marcadores tumorais desceram significativamente,
nomeadamente o CEA de 25,0 ng/ml para 3,1 (<5,4 ng/ml)
e o CA 19.9 de 228 U/ml para 126 U/ml (<37 U/ml), após
10 ciclos de QT.
Após completar o sétimo ciclo de QT, solicitámos TC
TAP, que não visualizou o pâncreas nem qualquer formação anómala na sua topografia e revelou ausência de
nódulos hepáticos bem como de adenopatias. Foi solicitada ressonância magnética (RM) abdominal, que revelou pâncreas atrófico, sem qualquer lesão expansiva
identificável; no fígado, no segmento II, detectou uma
formação ovalada com 1,8 cm de maior eixo, com
hipersinal em T2 e hipossinal em T1, com realce em anel
após a injecção de contraste, com a mesma localização
que uma das lesões secundárias hepáticas detectadas na
TC realizada antes de iniciar o tratamento, compatível
com localização secundária com extensa necrose
tumoral central; não se identificaram adenopatias.
Efectuou-se, ainda, tomografia de emissão de positrões
(PET), após um intervalo de 2 meses sem realização de
QT, que revelou um padrão de biodistribuição do
radiofármaco dentro da normalidade, não se detectando
qualquer alteração suspeita de lesão tumoral activa no
pâncreas ou localizações secundárias a outros níveis
(Figura 3).
Entretanto, solicitámos ao Hospital da área de residência
da doente o material da biopsia pancreática e pedimos a
sua reavaliação no Serviço de Anatomia Patológica do
nosso Hospital, que confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma ductal da cabeça do pâncreas ("células
epiteliais descoesas, ocasionalmente formando estruturas tubulopapilares, revestidas por células colunares
com alterações da relação núcleo/citoplasma e com
hipercromasia e discreto pleomorfismo nuclear. O estudo imunohistoquímico evidenciou positividade das células neoplásicas para as citoqueratinas CK7 e CAM 5.2 e
para o CEA monoclonal, sendo o p53 positivo em cerca
de 100% dos núcleos.") (Figura 4).
Apesar da resposta completa, decidimos manter ciclos
regulares de QT, mantendo o esquema anterior, tendo
cumprido até ao momento 18 ciclos, com um perfil de
tolerabilidade aceitável, não apresentando, nomeadamente, manifestações de neurotoxicidade. Na última
reavaliação imagiológica realizada, designadamente
com RM abdominal, 8 meses após a documentação imagiológica de resposta completa, mantém-se em aparente
remissão.
DISCUSSÃO
Quando a doente recorreu ao SU do nosso Hospital,
ficou entre nós a suspeita, mais tarde confirmada pela
própria, que procurava uma segunda opinião.
Desconhecendo o estudo já realizado, que nos foi ocultado numa fase inicial, efectuaram-se sequencialmente
ecografia abdominal e TC TAP, confrontando depois a
doente com os respectivos resultados, altura em que
confessou o estudo que já tinha efectuado na outra instituição hospitalar. Solicitámos, então, todos esses elementos, verificando-se a sobreposição dos resultados da
ecografia e da TC realizadas em ambas as instituições.
Optámos por não efectuar biopsia por esse procedimento já ter sido realizado e termos em nossa posse o respectivo resultado. Dada a irresecabilidade e a existência de
metástases, a cirurgia não era equacionável, pelo menos
como primeira opção, sendo a QT a única alternativa
possível.
A Gencitabina é actualmente o tratamento recomendado
para os casos de CP localmente avançado e/ou metastizado, porque demonstrou melhores resultados que o 5
Fluorouracilo em termos de taxa de resposta e de sobrevida, com as respectivas diferenças a assumirem significado estatístico (9). Ainda assim, continuando a ser mau
o prognóstico associado a esta neoplasia, têm sido
desenvolvidos vários estudos sobre alternativas à
monoterapia com Gencitabina. Neste âmbito, a associação de Gencitabina com Oxaliplatina (esquema
GemOx) mereceu especial destaque, devido aos resultados encorajadores obtidos em estudos de fase II, incluindo taxa de resposta de 30,6%, sobrevida média sem progressão de doença de 5,3 meses e sobrevida média global de 9,2 meses, todos eles claramente mais favoráveis
que os relatados nos estudos usando a monoterapia com
Gencitabina, em que se verificaram taxas de resposta de
5,6-9%, sobrevida média sem progressão de doença de
2,2-3,0 meses e sobrevida média global de 5,4-6,0 meses
(10). Estes elementos encorajaram, mesmo sem haver
aprovação formal, a utilização do esquema GemOx em
detrimento da monoterapia com Gencitabina, sobretudo
nos doentes relativamente jovens, com bom estado geral
e sem comorbilidades significativas, nos quais a expectativa duma resposta objectiva se revela clinicamente
importante. Foi neste contexto que optámos pelo esquema GemOx para o tratamento da nossa doente.
Entretanto, surgiram recentemente os resultados dos
estudos de fase III, que demonstraram benefícios esta-
tisticamente significativos do esquema GemOx relativamente à monoterapia com Gencitabina em termos de
taxa de resposta (26,8% vs 17,3%, p = 0,04) e de sobrevida média sem progressão de doença (5,8 meses vs 3,7
meses, p = 0,04), mas revelaram que relativamente à
sobrevida média global, apesar da associação ter melhores resultados que a monoterapia, a diferença não
assume significado estatístico (9,0 meses vs 7,1 meses,
p = 0,13) (11).
Dada a má tolerância ao tratamento, sobretudo numa
fase inicial, ponderando o benefício esperado na sobrevida e a deterioração iatrogénica, optámos por alterar,
com vantagem clara em termos de tolerabilidade, o
intervalo entre os ciclos de duas para três semanas.
Com o decorrer do tratamento, verificou-se aumento de
peso, diminuição apreciável das queixas álgicas e
diminuição significativa dos marcadores tumorais.
Ainda assim, quando solicitámos a reavaliação imagiológica, após sete ciclos de quimioterapia, não esperávamos, de forma alguma, os resultados que se verificaram. Inicialmente questionámos o resultado da TC,
porque além de não demonstrar as lesões neoplásicas,
não visualizava o pâncreas, facto estranho dado a doente
não ter sido operada e ter diabetes controlada apenas
com ADO. A RM abdominal, descrevendo um pâncreas
atrófico mas, igualmente, não detectando qualquer lesão
tumoral, à excepção duma pequena localização secundária hepática com necrose central extensa, assumiu um
carácter mais plausível, não conseguindo, contudo, dissipar a nossa incredubilidade. Solicitámos, então, a realização de PET, após um intervalo de 2 meses sem efectuar QT para evitar o fenómeno de "metabolic stunning", que apontou no sentido duma resposta completa
da neoplasia ao tratamento efectuado.
Na extensa pesquisa que efectuámos, encontrámos dois
trabalhos cientificamente interessantes. Um deles relata
um caso com contornos semelhantes ao nosso,
nomeadamente uma resposta completa dum adenocarcinoma do pâncreas metastizado usando um esquema de
quimioterapia semelhante ao que tínhamos utilizado
(12). O outro trabalho refere alguns casos de supostos
adenocarcinomas do pâncreas, embora nenhum com
uma expressão imagiológica tão agressiva como o da
nossa doente, com respostas surpreendentemente boas
ao tratamento e cuja posterior reavaliação anatomopatológica minuciosa do material inicialmente obtido, não
confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma do pâncreas (13).
No nosso caso, procedeu-se a reavaliação do estudo
anatomopatológico, com realização de imunohistoquímica, que confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma ductal do pâncreas.
Dissipadas as dúvidas sobre o diagnóstico e a resposta
ao tratamento, colocava-se um novo problema: o que
fazer? Optar por cirurgia e, nesse caso, que tipo de intervenção? Manter ciclos QT? Não efectuar qualquer tratamento e realizar reavaliações periódicas?
A literatura consultada, dado o carácter insólito do caso,
não constituiu um grande auxílio e dispúnhamos apenas
da informação sobre o que tinham decidido os clínicos
que seguiam o doente com a história semelhante à da
nossa doente, que optaram por manter ciclos regulares
de QT, verificando-se manutenção da remissão após 9
meses de follow up (12). Tomámos também essa opção,
com o controlo imagiológico a revelar manutenção da remissão 8 meses após a demonstração da resposta completa.
Apesar de naturalmente satisfeitos e entusiasmados com
a evolução do caso clínico, desconhecemos quando
devemos suspender o tratamento. Na certeza de que não
o poderemos manter indefinidamente, talvez seja lícito
ponderar, dentro de algum tempo, a sua suspensão, pelo
menos com carácter temporário. Por outro lado, o eventual aparecimento de reacções adversas, em particular a
neurotoxicidade que frequentemente acompanha as
administrações prolongadas de Oxaliplatina, poderá
obrigar-nos a introduzir alterações no tratamento,
nomeadamente, relativamente à hipótese aventada,
prosseguir a terapêutica apenas com Gencitabina.