ÚLCERAS DE CAMERON
- UMA CAUSA ESQUECIDA DE ANEMIA FERROPÉNICA
INTRODUÇÃO
A anemia ferropénica é o tipo de anemia mais frequente
em todo o mundo. As suas causas são variadas, incluindo a deficiência do metal na dieta, a sua absorção inadequada ou o aumento das suas necessidades, como no
caso da gravidez e da hemorragia crónica. Na hemorragia crónica, incluem-se a hemorragia digestiva, a
ginecológica, a urológica ou outras. No caso da hemorragia digestiva, a endoscopia assume um papel diagnóstico e terapêutico incontornável. No entanto, algumas
causas de hemorragia digestiva alta, menos comuns, são
de diagnóstico mais difícil. Neste tipo de patologias é
fulcral um elevado grau de suspeição e consequentemente a experiência e conhecimento prévios. São exemplos as angiodisplasias, as lesões de Dieulafoy, as
ectasias vasculares do antro, algumas lesões vasculares
como o Blue Rubber Bleb Naevus Syndrome, a hemobilia e as lesões de Cameron (1).
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, com 53 anos, sem
antecedentes relevantes, orientada para a consulta externa de Gastrenterologia após observação no serviço de
urgência por anemia sintomática. Não tinha história de
perdas hemáticas evidentes. Quando recorreu ao serviço
de urgência a hemoglobina era de 5,9 g/dl (12,0-16,0)
com VGM de 63,7 fl (80-100) e CHCM de 25,9 g/dl (3236). Na endoscopia digestiva alta constatou-se volumosa
hérnia do hiato (saco herniário de cerca de 6 cm). No
saco herniário observaram-se duas úlceras sem estigmas
de hemorragia recente (uma com 8 mm e outra com 4
mm) (Figuras 1, 2 ,3). Fez transfusão de 2 unidades de
glóbulos rubros com melhoria sintomática e subida da
hemoglobina para 8.5 g/dl. Teve alta do SU medicada
com inibidor da bomba de protões e suplementos de ferro.
No seguimento realizado em consulta, o estudo analítico
confirmou a presença de anemia hipocrómica e
microcítica com ferro 30 ug/dl (37-158), CFFe 571 ug/dl
(228-428), saturação de transferrina 5,3%, ferritina 3,17
ng/ml (13,0-150,0). A vitamina B12 e o ácido fólico
eram normais. A pesquisa de sangue oculto nas fezes foi
positiva em 3 amostras. Realizou colonoscopia total
com ileoscopia que não mostrou alterações. O estudo do
intestino delgado através de enterosocopia por videocápsula também não revelou alterações.
O diagnóstico estabelecido foi de hemorragia digestiva
crónica pelas úlceras do saco herniário - atribuidas a
úlceras ou lesões de Cameron. Manteve o inibidor da
bomba de protões, o suplemento de ferro e a vitamina C,
com subida progressiva do hematócrito e dos índices
eritrocitários.
DISCUSSÃO
As lesões de Cameron (erosões ou úlceras) foram incialmente descritas por Cameron e Higgins em 1986 como
erosões lineares crónicas dispostas sobre as pregas da
mucosa, ao nível da impressão diafragmática, em 36 de
109 doentes com hérnias do hiato volumosas (2).
Demonstraram que as erosões eram mais frequentes em
doentes com anemia e sugeriram que teriam origem nos
movimentos diafragmáticos durante a respiração. No
entanto, a associação entre a presença de hérnias do
hiato volumosas e a anemia ferropénica inexplicada era
já conhecida há muito tempo (3,4,5). A relação entre a
correcção cirúrgica das hérnias e a resolução da anemia
também já havia sido demonstrada (6).
A localização mais frequente deste tipo de lesões é na
vertente da pequena curvatura, ao nível do hiato diafragmático. A face anterior do hiato é formada pelo tendão
central do diafragma, tornando esse local mais rígido e,
assim, mais propenso ao traumatismo. Estas lesões são
múltiplas em cerca de 2/3 dos doentes, são mais frequentes em hérnias de maiores dimensões podendo ser
encontradas em cerca de 5% dos doentes com hérnias
volumosas (7).A apresentação mais co-mum é a hemorragia digestiva crónica e consequente anemia ferropénica. Contudo o diagnóstico depende muito do índice de
suspeição, sendo cada vez mais encontradas casualmente, dado o crescente reconhecimento desta entidade.
Num estudo recente (8), foi estudado o papel da endoscopia digestiva na etiologia da anemia ferropénica na
mulher pré-menopausa, uma faixa etária em que habitualmente a anemia é tratada empiricamente com suplementos de ferro, atribuindo-se a sua causa às perdas
menstruais. Foi encontrada patologia digestiva alta em
55,8% das mulheres e as lesões de Cameron em 7%.
Apesar da hemorragia digestiva ser insidiosa na maioria
dos doentes, em cerca de 1/3 dos casos a apresentação é
sob a forma de hemorragia digestiva alta aguda (7), por
vezes fatal. A associação com doença péptica, como a
esofagite de refluxo, é muito frequente.
A etiologia ainda não está completamente esclarecida,
pensando-se que o traumatismo mecânico, a isquemia e
a lesão ácida possam ter relevância. Isto reflecte-se também na resposta variável à terapêutica médica com
inibidores da bomba de protões. Em doentes submetidos
a terapêutica médica, verifica-se recorrência durante o
follow-up em cerca de 1/3 dos doentes e aparecimento
de complicações em 17% (hemorragia digestiva alta em
6,3% e anemia ferropénica persistente ou recorrente em
8,3%) (7). Assim, além da terapêutica antiácida, tem
também importância a administração de suplementos de
ferro. Em caso de falência da terapêutica médica, pode
recorrer-se a terapêutica cirúrgica (6,9). A correcção
cirúrgia da hérnia do hiato resulta na resolução da anemia na maioria dos doentes e tem uma baixa mortalidade. Num estudo de Trastek (9), foi realizada correcção
cirúrgica da hérnia do hiato em 49 doentes com hérnia
do hiato e anemia associada. Verificou-se resolução da
anemia em 45 doentes (91,8%), complicações em 18
(36,7%) e morte num doente (2%).
Em conclusão, as lesões de Cameron são uma causa frequente de anemia ferropénica em doentes com hérnias
do hiato volumosas, podendo raramente manifestar-se
com hemorragia digestiva aguda. A sua presença deverá
ser pesquisada cuidadosamente quando estes doentes
são submetidos a endoscopia digestiva alta. O tratamento consiste na terapêutica com inibidores da bomba de
protões e suplementos de ferro. O tratamento cirúrgico é
usado em casos de falência da terapêutica médica.