CARCINOMA DO CÓLON OU RECTO EM JOVENS: CARACTERIZAÇÃO
CLÍNICO-PATOLÓGICA E VIAS DE CARCINOGÉNESE
INTRODUÇÃO
O carcinoma do cólon ou recto (CCR) apresenta uma
incidência elevada nos Estados Unidos da América e nos
países da Europa Ocidental (1). Os CCR diagnosticados
em doentes com idade inferior a 45 anos, considerados
jovens, são relativamente raros, constituindo menos de
10% de todos os casos (2,3).
No desenvolvimento do CCR têm sido descritas alterações genéticas que permitiram a identificação de pelo
menos duas vias distintas de carcinogénese. A primeira
via, designada por via supressora (VS) ou clássica, resulta da inactivação de genes supressores tumorais,
nomeadamente dos genes APC (cromossoma 5q), p53
(cromossoma 17p), DCC (cromossoma 18q) e SMAD4
(cromossoma 18q) e activação de oncogenes como o kras e a ß-catenina (4-7). No seu conjunto, estes fenómenos condicionam perdas de heterozigotia que conduzem a instabilidade cromossómica (8). A VS é a via
predominante, sendo responsável por cerca de 80% dos
CCR esporádicos (9).
A segunda via, designada por via mutadora (VM), foi
descrita mais recentemente e, para além de outros eventos genéticos, é caracterizada pela inactivação de genes
que se encontram envolvidos no sistema de reparação de
erros de replicação do ADN, sobretudo o MLH1 e o
MSH2 (10,11). A VM caracteriza-se fenotipicamente
pelo aparecimento de instabilidade de microssatélites de
alto grau, e é responsável por cerca de 15% dos CCR
esporádicos (12-14). Em doentes com diagnóstico de
CCR em idade inferior a 45 anos, tem sido descrita uma
frequência mais elevada para a VM (15-18). As alterações que caracterizam a VM podem ser adquiridas a
nível somático, na célula neoplásica, ou estarem na
dependência de mutações germinais nos genes de
reparação do ADN, o que permitirá então a sua transmissão à descendência. A identificação de mutações germinais nos genes de reparação do ADN estabelece o
diagnóstico de uma síndroma hereditária de carcinoma
do cólon ou recto, a Síndroma de Lynch, o que possibilita a inclusão dos portadores da mutação identificada
num programa de vigilância (19,20).
Embora nos últimos anos várias publicações tenham
analisado a presença de instabilidade de microssatélites
em CCR de doentes jovens, com a correspondente caracterização da VM (15-18), poucos trabalhos estu-
daram, neste grupo de doentes, as alterações genéticas
que caracterizam a VS (21,22).
Os objectivos do presente estudo foram: 1) Caracterizar
uma população de doentes com CCR diagnosticado em
idade inferior a 45 anos, sem história familiar sugestiva
de síndromas hereditárias de CCR, em relação à
prevalência das VS e VM; 2) Correlacionar as características clínico-patológicas e a sobrevivência, com a
via de carcinogénese seguida.
DOENTES E MÉTODOS
Doentes
No presente estudo, foram incluídos 42 doentes com
CCR diagnosticado em idade inferior a 45 anos, sem
critérios clínicos para síndromas hereditárias de CCR ou
doença inflamatória intestinal. A média de idades dos
doentes foi de 35,5+6,0 anos (19-44); 19 eram do sexo
masculino e 23 do sexo feminino.
Analisou-se para cada caso a localização, o grau de
diferenciação, a produção de muco e estádio do CCR,
bem como a história familiar e a sobrevivência dos
doentes.
Todos os casos, com material disponível, foram revistos
por um patologista que desconhecia os dados clínicos no
momento da análise das peças operatórias. O grau de
diferenciação foi avaliado segundo os critérios definidos
pela OMS (23) e a presença de muco extra-celular foi
classificada através dos critérios modificados de
Wiggers, em três graus: ausente (adenocarcinoma); inferior a 50% (adenocarcinoma produtor de muco) e superior a 50% (adenocarcinoma mucinoso) (24).
Análise Genética
Na análise genética utilizou-se ADN extraído de tecido
tumoral e de mucosa não neoplásica colhidos de peças
cirúrgicas, após fixação em formol e inclusão em parafina. A caracterização genética foi efectuada através da
avaliação das perdas de heterozigotia e da pesquisa de
instabilidade de microssatélites.
A análise das perdas de heterozigotia foi realizada utilizando marcadores de microssatélites próximos do loci
dos genes APC (D5S346, D5S656, D5S1965, D5S421),
p53 (TP53, D17S796, D17S1796), SMAD4 (D18S46), e
DCC (D18S35). Cada par de ADN extraído a partir de
tecido tumoral - tecido não neoplásico, foi amplificado
por PCR, tendo-se utilizado primers marcados com
diferentes fluorocromos, excepto para os marcadores
D17S796 e D17S1796 que foram efectuados em gel de
poliacrilamida desnaturante. A electroforese dos fragmentos marcados com fluorocromos foi realizada num
sequenciador automático ABI Prism 310 com recurso ao
software GeneScan (Applied Biosystems). Para cada
marcador foi efectuada uma razão entre a área dos picos
dos alelos do tecido não neoplásico e tumoral, tendo-se
considerado haver perda de heterozigotia sempre que
esta razão foi superior a 1,5 ou inferior a 0,67 (Figura 1).
Considerou-se que o CCR seguia a VS quando existiam
alterações em pelo menos dois (50%) dos genes estudados.
A instabilidade de microssatélites foi estudada com o
painel de marcadores de Bethesda (25), D2S123,
D5S346, D17S250, BAT-25 e BAT-26, após amplificação por PCR e electroforese em gel de poliacrilamida
desnaturante. Para visualização dos produtos de PCR, os
géis foram submetidos a auto-radiografia ou revelação
após coloração com nitrato de prata. A instabilidade de
microssatélites foi definida pela presença de pelo menos
um alelo adicional no tumor, quando comparado com a
mucosa não neoplásica (Figura 2) e, de acordo com os
critérios de Bethesda, classificou-se em alto grau quando se verificou para 2 ou mais marcadores, baixo grau
quando se verificou para 1 marcador e estável quando
não foi detectada em nenhum dos 5 marcadores testados.
Considerou-se que o CCR seguia a VM na presença de
instabilidade de alto grau.
Nos doentes com CCR que seguiram a VM, procedeu-se
à análise de mutações germinais nos genes de reparação
do ADN, MLH1 e MSH2, através de DGGE (Denaturating Gradient Gel Electrophoresis) a qual foi seguida de
sequenciação directa do produto de PCR, sempre que foi
detectada uma alteração. Nos casos em que não foram
identificadas mutações pontuais, efectuou-se também
MLPA (Multiplex ligation-dependent probe amplification) para pesquisa de grandes deleções.
Estatística
Na análise estatística utilizou-se o teste do χ2 para comparação de proporções e o anova para comparação de
variáveis contínuas. As curvas de sobrevivência foram
estimadas de acordo com o método de Kaplan-Meier e
as diferenças de sobrevivência de acordo com o teste de
logrank (STATA 8.0). Considerou-se haver significado
estatístico na presença de p<0,05.
RESULTADOS
A correlação entre as vias de carcinogénese seguidas
pelo CCR e as variáveis clínico-patológicas estudadas
encontra-se discriminada no Quadro 1.
Verificámos, de acordo com os critérios descritos, que
14/42 (33%) CCR seguiram a VM e 16/42 (38%) a VS.
Os restantes 12/42 (29%) CCR não apresentaram marcadores nem da VM nem da VS, admitindo-se terem
seguido uma via alternativa (VA), ainda não caracterizada.
Relativamente à VS, as perdas de heterozigotia foram
mais frequentes no locus do gene p53 (48,1%), seguida
pelos loci dos genes APC e SMAD4 (44,4% em ambos),
e pelo locus do gene DCC (22,2%).
Os CCR que seguiram a VM localizaram-se preferencialmente no cólon proximal (78,6%) e os que seguiram
a VS no cólon distal (50%). Ao invés, os associados à
VA localizaram-se sobretudo no recto (83,3%) (p<
0,001).
Relativamente à produção de muco, disponível em
41/42 CCR incluídos na presente análise, verificámos
que 5/7 (71,4%) tumores mucinosos se encontravam
associados à VM enquanto os CCR que seguiram a VS
foram os que apresentaram menor produção de muco,
apenas 2/16 (12,5%) casos (p=0,03).
Não se observaram diferenças na distribuição por sexo nem
na média de idades dos doentes para qualquer das vias
seguidas pelos CCR. Também relativamente ao grau de
diferenciação, disponível em 34/42 CCR e à distribuição
por estádio TNM, caracterizada em 39/42 CCR, não se
encontraram diferenças com significado estatístico.
Em relação à história familiar, disponível para 40/42
doentes incluídos na presente série, apenas 4 doentes
apresentaram um familiar de 1º grau com CCR, corre-
spondendo 2 à VM, 1 à VS e 1 à VA (p=NS).
O tempo médio de vigilância foi de 62,8±58,2 (1-282)
meses, sem diferença com significado estatístico para as
3 vias. Os CCR que seguiram a VS apresentaram um
maior número de recidivas comparativamente aos que
seguiram a VM ou a VA, respectivamente 62,5%, 36% e
42% (p=NS). A probabilidade cumulativa de sobrevivência aos 8 anos foi semelhante para as VM e VA
(70% e 69% respectivamente) e superior à da via supressora (50%) (p =NS) - Figura 3.
Ao compararmos os doentes com CCR em idade igual/inferior e superior a 35 anos, verificamos que no primeiro subgrupo foi predominantemente seguida a VM (53,3%),
enquanto que no segundo foi a VS (51,9%) (p=0,03).
Nos doentes com CCR que seguiram a VM, procedeu-se
à análise mutacional para os genes de reparação do
ADN, MLH1 e MSH2. Esta encontra-se concluída em
12/14 casos. Identificaram-se 4/12 (33%) mutações pontuais, 3 no MLH1 (nonsense) e 1 no MSH2 (splicing),
respectivamente para CCR diagnosticados aos 31, 38, 44
e 30 anos. Adicionalmente foi identificado um polimorfismo no MLH1, numa doente com CCR identificado
aos 32 anos. Nos 2 casos que seguiram a VM e em que
a história familiar não se encontrava disponível, o diagnóstico genético encontra-se concluído, não tendo sido
identificada qualquer mutação germinal nos genes de
reparação do ADN testados. Em 2/14 casos, o diagnóstico genético encontra-se em curso.
DISCUSSÃO
Nos últimos anos foi claramente demonstrado que os
CCR se desenvolvem através de duas vias de carcinogénese distintas, a VS e a VM. Estas vias diferem do ponto
de vista dos eventos genéticos, das características clínico-patológicas e do prognóstico. A VS caracteriza-se
pela ocorrência de perdas de heterozigotia, a sua
prevalência atinge os 80% nos casos de CCR esporádi-
cos, mais frequentes em idade superior a 50 anos e, associa-se a um prognóstico mais desfavorável (8,9). A VM
traduz-se pelo aparecimento de instabilidade de
microssatélites de alto grau e, os CCR que seguem esta
via localizam-se mais frequentemente no cólon proximal
e são mais vezes produtores de muco (14). Esta via ocorre
preferencialmente em doentes jovens, traduzindo por vezes
a ocorrência de uma síndroma hereditária de CCR e, tem
sido associada a um melhor prognóstico (15-18).
Mais recentemente alguns autores identificaram um subgrupo de CCR, ocorrendo entre 13% e 64% dos casos
analisados, que não apresentava marcadores de nenhuma
destas vias. No entanto, quer a dimensão da amostra quer
a metodologia aplicada nos diversos trabalhos foi variável (21,22,26-32). As publicações mais representativas
pertencem a Goel e colaboradores e Tang e colaboradores, que incluíram nas suas séries 209 e 179 doentes
respectivamente (31,32). Estes dois estudos incluíram
doentes com CCR independentemente da idade de diagnóstico do mesmo e, nestes trabalhos aceita-se que,
embora as VS e VM possam ser distinguidas com base
nas suas características moleculares, alguns casos evidenciam sobreposição de marcadores das duas vias e
adicionalmente há CCR em que nenhuma das vias pode
ser implicada.
Os trabalhos que analisam as diferentes vias de carcinogénese em doentes jovens são escassos e com idades
de inclusão distintas (inferior a 40 ou inferior a 45 anos)
(21,22,26,27). Apenas num estudo foram identificadas
diferenças significativas na prevalência da VA quando se
comparou a idade do diagnóstico do CCR em idade
jovem e mais tardia (13 vs 64%) (22).
No presente trabalho efectuou-se a caracterização clínica, patológica e molecular de uma série de CCR diagnosticados em doentes com idade inferior a 45 anos e
sem história familiar compatível com síndromas hereditárias de CCR. Verificámos que a VS foi seguida pelos
CCR em 38% da globalidade da série, e que a VM foi
responsável por 33% dos casos. A análise, em paralelo,
da instabilidade de microssatélites e das perdas de heterozigotia, permitiu ainda identificar um grupo significativo de CCR (29%), que não apresentou marcadores
para qualquer destas vias, admitindo-se assim a existência de uma via de carcinogénese alternativa. A prevalência que encontrámos na nossa série para a VA, está de
acordo com os resultados publicados na literatura internacional.
Apesar da VS ter permanecido, mesmo num grupo de
doentes com idade de diagnóstico do CCR inferior a 45
anos, a via de carcinogénese mais frequente, verificámos
que a distribuição dos CCR pelas diferentes vias diferia
significativamente se a análise fosse efectuada constituindo 2 subgrupos de doentes de acordo com a idade,
inferior ou igual e superior a 35 anos. Assim, podemos
constatar que a VM apenas foi preferencialmente seguida no grupo dos doentes mais jovens. Estes resultados
estão de acordo com os de Liu e colaboradores (15), que
numa série global de 189 CCR esporádicos, demonstram
uma diferença significativa na frequência da VM para
CCR diagnosticados em idade igual ou inferior a 35 anos
relativamente aos diagnosticados em idade superior a 35
anos, 58% vs 12% respectivamente. Por outro lado, em
5/12 doentes com idade igual ou inferior a 35 anos foram
identificadas mutações germinais em genes de reparação
do ADN, estabelecendo-se assim o diagnóstico de
Síndroma de Lynch em 5 novas famílias. Concluiu-se
nesse trabalho que os mecanismos envolvidos na génese
dos CCR nos doentes com idade igual ou inferior a 35
anos diferiam em relação aos doentes mais velhos, independentemente da identificação de novas Síndromas de
Lynch, e também que esta era muito provável nos
doentes mais jovens. Sugeria-se assim que, sobretudo
nos doentes, com CCR em idade igual ou inferior a 35
anos, a VM deve ser a via estudada em primeiro lugar.
O facto de, na nossa série, ter sido possível identificar
cara-cterísticas clínico-patológicas distintas para as 3
vias, com dife-renças estatisticamente relevantes para a
localização dos CCR e para a produção de muco, reforça
o significado da distinção molecular encontrada, contribuindo para a validação das dife-rentes vias de carcinogénese do CCR. No entanto, na literatura, as correlações encontradas entre as características clínicopatológicas e as vias de carcinogénese não são uniformes e diferem dos achados por nós encontrados.
Assim, Tang e cola-boradores referem que comparando
as VA e VS, a primeira se associou mais frequentemente
a CCR pouco diferenciados ou mucinosos (32), enquanto Chan e colaboradores localizam pre-ferencialmente
os CCR da VA no cólon distal (22).
O melhor prognóstico dos CCR que seguem a VM em
relação aos que seguem a VS é reconhecido em diversos
trabalhos pu-blicados (30,33,34). As duas únicas publicações em que é abordado o prognóstico da VA, incluem
doentes jovens, e associam-na a estádios patológicos
mais avançados, traduzindo-se por maior envolvimento
ganglionar ou metastização à distância (21,22).
Salientamos no entanto, que na presente série, a sobrevivência dos CCR que seguiram a VA, cuja caracterização genética desconhecemos, se aproximou da verificada para a VM. Serão necessários mais trabalhos, sobretudo com maior número de doentes, para clarificar este
aspecto.
Neste estudo, uma percentagem significativa, 4/12
(33%) dos casos que seguiram a VM resultaram de
mutações germinais patogénicas nos genes de reparação
do ADN, MLH1 e MSH2, possibilitando o diagnóstico
de 4 novas famílias com Síndroma de Lynch. Este diagnóstico teve implicações imediatas para os doentes
afectados pelo CCR, bem como para os seus familiares
de 1º grau, aos quais pôde ser oferecida a possibilidade
de efe-ctuarem o diagnóstico genético, tendo os portadores da mutação iniciado um programa de vigilância. A
outra alteração, identificada no gene MLH1, é um
polimorfismo, representando uma alteração não
patogénica, não tendo por isso implicações clínicas.
Os resultados do presente trabalho levam-nos a admitir
que no processo de carcinogénese do CCR em doentes
jovens, exista uma via alternativa apresentando uma
prevalência elevada e características clínico-patológicas
distintas. Estará possivelmente associada a outros eventos genéticos, equacionando-se o envolvimento de eventuais silenciamentos por hipermetilação de genes supressores tumorais como o APC, IGFII, p16 e outros localizados no cromossoma 9p e do gene que codifica os
receptores de estrogéneos (27,35,36), estabilização da
proteína p53 na ausência de mutações do gene p53 (31),
ou mutações bialélicas do gene MYH (37).