ÚLCERAS ESOFÁGICAS COMO FORMA DE APRESENTAÇÃO DA INFECÇÃO
AGUDA PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA TIPO 1 (VIH-1)
INTRODUÇÃO
A infecção aguda pelo Vírus da Imunodeficiência
Humana tipo 1 (VIH-1), definida pelo período de tempo
que medeia entre o contágio e a seroconversão, pode ser
sintomática. Estima-se que entre 40 e 90% dos indivíduos infectados apresentem sintomas enquadráveis numa
síndroma mononucleósica, inespecífica, o que torna o
diagnóstico difícil e improvável nesta fase (1). A ocorrência de dor retro-esternal durante a deglutição foi também descrita neste contexto, sugerindo o envolvimento
do esófago durante a fase aguda da infecção pelo VIH-1
(2). Com efeito, já em 1986 Rabeneck L. et al. tinham
identificado partículas de retrovírus numa série de
úlceras esofágicas diagnosticadas em 8 doentes homossexuais com odinofagia (3) e, em 1990, o mesmo grupo
descreveu o isolamento do VIH-1 a partir das úlceras
esofágicas de um doente em seroconversão para a
infecção (4). Desde então, têm sido publicados alguns
casos de esofagite como forma de apresentação da
infecção aguda a VIH-1, nos quais se excluíram outras
causas subjacentes aos achados endoscópicos, nomeadamente de natureza infecciosa (5,6).
Com o presente caso clínico pretende-se reforçar a
necessidade de valorizar a odinofagia referida à região
retro-esternal no contexto de uma síndroma mononucleósica, bem como o aspecto endoscópico das úlceras
esofágicas observadas na fase de infecção aguda a VIH1, de modo a aumentar o grau de suspeição face à
doença.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 25 anos, caucasiano, heterossexual e sem hábitos toxicofílicos, saudável até 10
dias antes da avaliação, altura em que iniciou quadro de
febre (temperatura axilar 38,5-39ºC), hipersudorese nocturna, mialgias e tosse seca, associado a odinofagia
muito intensa referida à região retro-esternal, que limitava significativamente a ingestão alimentar. Por este
motivo consultou o seu médico assistente, que o
medicou com paracetamol e eritromicina por via oral.
Quarenta e oito horas após o início da terapêutica, e por
não ter havido alívio sintomático, suspendeu voluntariamente a medicação e recorreu ao nosso hospital.
Ao exame objectivo apresentava bom estado geral e
nutricional, estava corado, ligeiramente desidratado,
eupneico, febril (t.axilar 38,7ºC), normotenso e
taquicárdico (103 bpm). Constatou-se haver aumento
das dimensões dos gânglios linfáticos latero-cervicais e
inguinais (1,5-2 cm), que apresentavam consistência e-
lástica, eram discretamente dolorosos e móveis em
relação aos planos superficiais e profundos. A observação da orofaringe mostrava apenas hiperemia. O
restante exame objectivo não apresentava alterações significativas, nomeadamente não se identificaram
organomegalias na palpação abdominal.
Na avaliação analítica, verificaram-se: hemoglobina de
17 g/dL (13,5-17,5); leucócitos de 5300 U/L (37009500), com 62,4% de PMN, 25,2% de linfocitos e 7,5%
de monocitos; plaquetas de 196000 U/L (150000450000); AST de 85 U/L (12-40) e ALT de 148 U/L (1040); fosfatase alcalina de 97 U/L (53-128), γ-GT de 29
U/L (2-30) e bilirrubina total de 0,5 mg/dL (0,2-1). Os
parâme-tros de coagulação e a função renal estavam
dentro dos valores de referência. As hemoculturas e a
urocultura foram negativas. Realizou electrocardiograma e radiografia do tórax, que não mostraram alterações.
Para esclarecimento do quadro de odinofagia efectuou
endoscopia digestiva alta, onde se observaram, ao nível
do esófago, entre os 30 e os 35 cm da arcada dentária, 5
úlceras arredondadas de fundo nacarado e bordos elevados e hiperemiados, com dimensões entre 4 e 10 mm
(Figura 1). A restante mucosa esofágica não apresentava
alterações, o mesmo acontecendo com o estômago e o
duodeno. O exame histológico das biopsias das úlceras
mostrou esofagite grave com ulceração, não tendo sido
identificados agentes infecciosos (Figura 2).
As manifestações clínicas e as características endoscópicas das úlceras sugeriram a presença de um quadro
infeccioso de etiologia viral. Solicitaram-se, assim:
serologias para Citomegalovírus e Herpes simplex tipo
1, que foram compatíveis com infecção passada; serologia para o vírus de Epstein-Barr (EBV), considerada
duvidosa/fracamente positiva; serologias para VIH-1 e
VIH-2 (Western Blot), que foram negativas. A determinação do antigénio p24 do VIH-1 no soro foi, no entanto, positiva.
O doente foi medicado com omeprazol 20 mg 12/12h e
sucralfato 1 g antes das refeições, para alívio sintomático,
tendo havido melhoria da odinofagia em cerca de 72 h e
desaparecimento da febre ao quarto dia de terapêutica.
Registou-se, em duas determinações separadas por 14
dias, elevação do título de anticorpos para o VIH-1,
sendo que na segunda o Western Blot era inequivocamente positivo.
Do ponto de vista epidemiológico apurou-se, posteriormente, a existência de um contacto sexual não protegido
duas semanas antes do início da sintomatologia.
Uma vez efectuado o diagnóstico de infecção aguda a
VIH-1, o doente foi encaminhado para uma Consulta de
Infecciologia, onde mantém o seguimento.
DISCUSSÃO
O desenvolvimento de sintomas no contexto da infecção
aguda a VIH-1 ocorre em 40 a 90% dos casos, 2 a 6 semanas após o contágio (7). Habitualmente, o quadro
clínico caracteriza-se por febre, hipersudorese nocturna,
mialgias, adinamia, cefaleias, náuseas, diarreia e
adenopatias periféricas, podendo durar de alguns dias até
algumas semanas. Não são ainda bem conhecidos os
mecanismos subjacentes ao seu desenvolvimento, mas
admite-se que resultem de efeitos citopáticos directos do
vírus e/ou de lesões de carácter imunológico (8). A formação de anticorpos específicos para o VIH-1, geralmente detectados 3 a 12 semanas após o contágio, marca
o fim da fase aguda da infecção. A inespecificidade sintomática torna o diagnóstico improvável nesta fase, a
menos que seja documentado contexto epidemiológico
sugestivo. No presente caso clínico, para além da síndroma febril, com faringite e adenopatias periféricas
palpáveis, o doente apresentava também odinofagia
referida à região retro-esternal, que era até o sintoma
mais incapacitante, tendo motivado a realização de uma
endoscopia digestiva alta.
A presença de úlceras esofágicas múltiplas, de fundo
nacarado, com bordos elevados e hiperemiados, constituem características endoscópicas particulares, que
estão descritas na literatura em casos semelhantes (4-6),
o que sugere que, perante a existência destes achados
endoscópicos no contexto de uma síndroma mononucleósica associada a odinofagia referida à região retro-esternal, deva ser sempre equacionada a infecção aguda pelo
VIH-1, mesmo quando não se documenta epidemiologia
suspeita.
O exame histológico das biopsias não identificou
agentes infecciosos, incluindo o VIH-1; contudo, não
efectuámos adicionalmente análise imuno-histoquímica
ou avaliação em microscopia electrónica, referida por
alguns autores (4,5,8).
Uma vez que a seroconversão é um fenómeno relativamente tardio, há que solicitar sempre a pesquisa do
antigénio p24 ou do RNA do vírus, para que o diagnóstico seja possível no período de janela imunológica (1).
O presente caso é disso exemplificativo, uma vez que o
Western Blot era ainda negativo quando foi detectado o
antigénio p24 no soro, tornando-se mais tarde positivo.
A determinação do RNA do VIH-1 parece ser mais sensível do que a do antigénio p24, mas também mais dispendiosa (9).
O resultado da serologia para o EBV, considerado duvidoso/fracamente positivo, poderá explicar-se pela
resposta imunológica que tem lugar na fase aguda da
infecção a VIH-1. Nesta fase, há uma resposta T CD8+
que ocorre também para o EBV, pelo que poderá registar-se uma serologia duvidosa ou fracamente positiva
para este vírus (10).
No tratamento da odinofagia, perante evolução prolongada da esofagite, poderá estar indicada a terapêutica
concomitante com corticóides (11). Também a talidomida se mostrou eficaz na cicatrização das úlceras esofágicas (12,13). No presente caso, o doente ficou assintomático poucos dias depois do diagnóstico, não tendo
por isso efectuado terapêutica adicional.
A importância do diagnóstico da infecção VIH-1 na fase
aguda relaciona-se com factores de Saúde Pública e de
ordem individual. Por um lado, torna-se possível prevenir a transmissão inadvertida do vírus numa fase de
grande viremia (14); por outro, alguns autores advogam
o início da terapêutica anti-retroviral nesta fase (1,15),
para melhorar a história natural da doença, nomeada-
mente através da redução da carga viral e do aumento
dos níveis de linfocitos T CD4, o que diminui o risco de
infecções oportunistas (16). As guidelines da British HIV
Association recomendam o início da terapêutica para
alívio sintomático, em fase aguda, caso não haja melhoria após instituição de medidas gerais (17).