ESÓFAGO NEGRO ASSOCIADO A INFECÇÃO POR CANDIDA ALBICANS, ASPERGILLUS E ACTINOMYCES
INTRODUÇÃO
O esófago negro, também denominado esofagite
necrosante aguda, caracteriza-se pela presença de uma
coloração negra do esófago, identificada na endoscopia
digestiva alta (EDA) e que corresponde, na histologia, a
necrose da mucosa (1-3). A necrose é quase sempre circunferencial e pode atingir todo o esófago, até à junção
esofago-gástrica. Trata-se de uma entidade rara, embora
esteja provavelmente subdiagnosticada (1,4,5). A maioria dos casos publicados na literatura apresenta uma etiologia multifactorial, considerando-se como causas mais
prováveis a isquemia, os traumatismos condicionados
por sonda nasogástrica, a estase gástrica, as infecções e
a hipersensibilidade a alguns antibióticos (2,5-10). A
ingestão de cáusticos e as entidades melanose, melanoma maligno, pseudomelanose e acantose nigricans
deverão ser equacionadas no seu diagnóstico diferencial
(6,8,11,12). Os autores descrevem o caso clínico de um
doente com esofagite necrosante aguda no contexto de
vómitos incoercíveis e prolongados após a realização de
quimioterapia sistémica, em cujas biopsias esofágicas
foram identificadas formas de Candida albicans, Aspergillus e Actinomyces.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 52 anos, caucasiano, com
o diagnóstico de rabdomiossarcoma pélvico botrióide,
submetido a ressecção cirúrgica e radioterapia adjuvante
na dose total de 66,6 Gy. Registaram-se duas recidivas
tumorais, nos dois anos seguintes ao diagnóstico, também tratadas cirurgicamente. Na terceira recidiva, após
um intervalo livre de doença inferior a um ano, foi proposta a realização de quimioterapia (ifosfamida, vincristina e adriamicina). Dois dias após o início da terapêutica, em regime de internamento, o doente iniciou
um quadro de vómitos biliares copiosos. Não apresentava, nessa altura, dor abdominal nem melenas e não estava medicado com outros fármacos para além dos
citostáticos, nomeadamente antibióticos ou anti-inflamatórios não-esteróides. Ao exame objectivo, encontrava-se apirético, hemodinamicamente estável, ligeiramente desidratado. A observação da orofaringe excluiu a
presença de mucosite e a auscultação abdominal revelou
ruídos hidro-áereos de intensidade normal, sendo a palpação indolor. Apesar da instituição de terapêutica anti-emética, os vómitos persistiram durante 8 dias, sem que
tivesse sido efectuada intubação nasogástrica. A avaliação analítica revelou a presença de pancitopenia -
leucócitos 1030/mm3 (4000-10000), neutrófilos
900/mm3 (1700-7700), hemoglobina 10 g/dL (12-15),
plaquetas 148000 (150000-400000) - e hipocaliemia de
2,5 mmol/L (3,5-5). A restante avaliação bioquímica,
designadamente a glicemia, a creatinina, a amilase e a
enzimologia hepática, encontravam-se dentro dos valores de referência, assim como o tempo de protrombina.
Foi realizada TC abdomino-pélvica, que confirmou a
recidiva já conhecida da lesão neoplásica, mas não evidenciou quaisquer outras alterações. A EDA revelou a
presença de duas áreas circunferenciais de mucosa
esofágica com coloração negra difusa e ulcerações, dos
19 aos 22 e dos 38 aos 41 cm da arcada dentária, tendose observado uma transição abrupta, para mucosa de
aspecto normal, ao nível da linha Z (Figura 1). Entre os
28 e os 38 cm da arcada dentária, a mucosa esofágica
apresentava ulcerações longitudinais e áreas de necrose
focal. O estômago e o duodeno não evidenciavam alterações macroscópicas. As biopsias obtidas das áreas de
mucosa ulcerada mostraram epitélio pavimentoso com
alterações degenerativas e abundantes detritos celulares.
No fundo necrótico, entre as células pavimentosas com
alterações degenerativas, identificaram-se leveduras e
pseudo-hifas características de Candida albicans, hifas e
pseudo-hifas dispostas em ângulos de 45 e 90º, sugestivas de Aspergillus e aglomerados de grânulos sulfúricos,
constituídos por estruturas filamentosas PAS-positivas e
Ziehl-Nielsen negativas, traduzindo a presença de
Actinomyces (Figuras 2 e 3). Foram instituídos dieta
zero, reposição hidro-electrolítica, inibidor da bomba de
protões, imipenem e fluconazol endovenosos. Não se
iniciou terapêutica dirigida para o Aspergillus, uma vez
que este agente só foi identificado posteriormente. Vinte
e quatro horas depois do início da terapêutica, por persistência do quadro de vómitos, o doente foi submetido
a intubação naso-gástrica. Apesar destas medidas, o
quadro clínico manteve-se e a toxicidade hematológica
agravou-se. O doente veio a falecer 3 dias após ter sido
estabelecido o diagnóstico de esófago negro.
DISCUSSÃO
A primeira descrição endoscópica de esofagite necrosante aguda foi efectuada por Goldenberg et al., em
1990 (7). A incidência e a prevalência desta entidade não
são ainda conhecidas (2), embora as últimas publicações
questionem a sua assumida raridade (1,4,5). É mais frequentemente descrita em doentes idosos e debilitados
(4), sobretudo no pós-operatório de cirurgias oncológicas ou no contexto de infecções graves (8,13). O diagnóstico assenta na coloração negra da mucosa esofágica, reconhecida na EDA, e na necrose da mucosa (pode,
por vezes, atingir a submucosa e excepcionalmente a
camada muscular), confirmada por histologia. Aceita-se
que a esofagite necrosante aguda tenha uma etiologia
multifactorial. Vários mecanismos etiológicos foram
propostos até à data, nomeadamente isquemia, traumatismo por sonda nasogástrica, antibióticos, hiperglicemia, estase gástrica, vómitos incoercíveis e
infecções (2,5-10,14). O principal factor associado ao
desenvolvimento desta entidade parece ser a isquemia
(5,7); no entanto, na espécie humana o esófago possui
extensa irrigação arterial (4) e são poucos os casos
descritos na literatura que se associaram a hipotensão ou
choque (15-17).
No presente caso clínico, o exame histológico das biopsias efectuadas permitiu a identificação de três agentes
infecciosos: Aspergillus, Candida albicans e Actinomyces.
Este facto sugere que, sempre que possível, deverão ser
efectuadas biopsias das áreas afectadas, de forma a identificar eventuais agentes etiológicos. Na literatura não
existem, tanto quanto nos é dado conhecer, descrições de
esófago negro associadas a esofagite por Candida ou por
Aspergillus. Porém, em doentes imunodeprimidos há
casos de esofagite necrosante aguda associada a agentes
virais, como Herpes simplex, e fúngicos, como
Penicillium chrysogenum (18). Apesar deste ser o segundo caso de esófago negro associado a infecção por
Actinomyces (9) descrito na literatura, trata-se de uma
apresentação única, dada a coexistência dos três agentes
infecciosos. As espécies de Aspergillus são ubíquas e
têm sido implicadas, raramente, no desenvolvimento de
esofagite em doentes imunodeprimidos. Neste contexto,
a sua presença associa-se a um mau prognóstico (19),
como comprovámos no caso descrito. A actinomicose é
uma infecção progressiva e indolente, causada por bacilos anaeróbios ou microaerófilos Gram-positivos, do
género Actinomyces. Estes agentes colonizam geralmente a orofaringe, o cólon e a vagina, provocando
infecção por disrupção da mucosa (20). A infecção por
bacilos ácido-resistentes como os do género Nocardia,
poderá implicar diagnóstico diferencial com a actinomicose, embora naquele caso os bacilos sejam ZiehlNielsen positivos. A actinomicose esofágica é muito
rara, encontrando-se apenas dez casos descritos na lite-
ratura - um associado a esófago negro, um após transplante medular alogénico, cinco em casos de SIDA e três
em doentes imunocompetentes (9,20-22). No presente
caso, não é possível afirmar uma associação inequívoca
e única entre as infecções a Actinomyces, Aspergillus e
Candida e o esófago negro. Existem, para além disso,
situações coexistentes que poderão ter contribuído para
o seu desenvolvimento ou mesmo ter sido as principais
responsáveis. De facto, o doente apresentava um quadro
de vómitos incoercíveis, não tendo sido submetido a
intubação nasogástrica. Por induzirem hipovolemia e
algum grau de isquemia e por causarem refluxo gastro-esofágico significativo e mantido, ultrapassando os
mecanismos de defesa normais do esófago, os vómitos
poderão ter contribuído de forma importante para as
alterações encontradas (2). A toxicidade da quimioterapia é um outro factor a considerar, embora esta associação não esteja descrita até à data.
Na maior parte dos casos, o prognóstico da esofagite
necrosante aguda é desfavorável, com mortalidade estimada em cerca de 1/3 dos doentes (3,4). No entanto,
admite-se que a elevada taxa de mortalidade esteja relacionada com a gravidade da situação clínica subjacente
e não com a evolução das lesões esofágicas (1,2,4). O
presente caso clínico é ilustrativo disso mesmo, embora
possamos especular sobre uma evolução mais favorável
caso a terapêutica para o Aspergillus tivesse sido instituída. Nos casos tratados com sucesso, a principal complicação é a estenose esofágica (1).
Em conclusão, descrevemos uma associação única na
patogénese da esofagite necrosante aguda: infecção por
Actinomyces, Aspergillus e Candida num doente imunodeprimido por doença oncológica, com um quadro de
vómitos prolongados após realização de quimioterapia
sistémica. Salientamos a necessidade de realizar biopsias esofágicas na presença de um esófago negro, não
só para confirmar o diagnóstico, mas também para
excluir processos infecciosos que poderão requerer terapêutica específica.