SÍNDROME HEPATOPULMONAR EM DOENTES COM CIRROSE HEPÁTICA:
IMPORTÂNCIA DA SUA PESQUISA SISTEMÁTICA
E IMPACTO NO PROGNÓSTICO
INTRODUÇÃO
A síndrome hepatopulmonar (SHP) é uma complicação
importante da cirrose hepática, caracterizada por alterações funcionais da oxigenação arterial, em contexto de
doença hepática, resultantes de uma marcada dilatação
das arteríolas e capilares pulmonares – vasodilatação
pulmonar – induzida por mediadores libertados pelo fígado lesado (1-6). Embora possa surgir na hepatite aguda (7) ou
crónica (8) e mesmo na hipertensão portal sem doença
hepática (9,10), associa-se habitualmente à cirrose hepática,
com uma prevalência de 16 a 24% (11-14). Esta prevalência
é independente do sexo, idade, raça e etiologia da cirrose (15-20), sendo controversa a existência de associação
com a gravidade da doença hepática subjacente (11,16,21,22).
A escassez de estudos tem dificultado a definição do seu
impacto na história natural da cirrose hepática. No entanto, dados recentes confirmam que tem um carácter progressivo, que pode ocorrer mesmo face à estabilidade da
doença hepática (23), constituindo um factor independente
de mau prognóstico (14,24). A sua presença traduz-se por
significativa morbilidade, aumento da mortalidade e marcada redução da sobrevida média, o que atesta a
importância da sua identificação (14,24).
A progressão da doença é insidiosa, sendo frequente a
ausência de manifestações respiratórias as quais, quando
presentes, são muitas vezes inespecíficas ou tardias. De
facto, numa fase inicial, a dispneia só se manifesta em
18% dos doentes e a platipneia, quase patognomónica, é
rara (6,15,23). No exame físico, os achados mais frequentes
são os da própria doença hepática (6,25). O hipocratismo
digital e as telangiectasias cutâneas, propostos como
“marcadores” da SHP, são igualmente comuns na sua
ausência, pelo que não têm real utilidade (6,25,26), o mesmo
se aplicando à cianose, rara e de aparecimento tardio (6,25).
Para mais, a frequente associação da cirrose hepática
com patologia pulmonar tabágica, poderá contribuir para
camuflar a SHP (7-10).
Estes aspectos poderão explicar a dificuldade no seu
reconhecimento, fazendo prever a existência de uma
importante fracção de doentes com SHP não identificada.
Assim, sendo a suspeita clínica insuficiente, poderá justificar-se a sua pesquisa sistemática em doentes com cirrose hepática, independentemente das características
demográficas, etiologia, gravidade e estabilidade da cirrose e, inclusivamente, na ausência de sintomas.
O diagnóstico assenta na identificação de alterações da
oxigenação arterial e vasodilatação pulmonar, em indivíduos com doença hepática (1,6). As perturbações da oxigenação, detectáveis por gasimetria arterial, não se limitam
à hipoxémia arterial. Existem alterações mais subtis, sem
hipoxémia arterial manifesta, igualmente diagnósticas,
que deverão ser pesquisadas mediante a realização da
gasimetria arterial após 10 minutos de ortostatismo, acentuando as alterações fisiopatológicas subjacentes à SHP,
bem como através do cálculo do gradiente alvéolo-arterial
de O2 (15).
Em presença destas alterações, está indicada a realização
de ecocardiografia de contraste ou cintigrafia com
macroagregados de albumina marcados com tecnécio-99m
para pesquisa de vasodilatação intrapulmonar (11,27,28).
Ambos os exames são válidos para este estudo, sendo a
ecocardiografia ligeiramente mais sensível e a cintigrafia
mais específica (28). No entanto, a mera coexistência de
alterações da oxigenação arterial e vasodilatação intrapul-
monar não confirma o diagnóstico, dada a possível
inexistência de um nexo de causalidade entre ambas (11,28).
De facto, a ocorrência simultânea de vasodilatação pulmonar e alterações da oxigenação pode ser casual,
podendo estas ser provocadas por doença pulmonar ou
cardíaca associada, que importa documentar. Na ausência
deste tipo de patologia, a sensibilidade e especificidade
da ecocardiografia de contraste permite excluir ou confirmar o diagnóstico (28). Nos casos em que coexista patologia cardíaca ou pulmonar, só a cintigrafia tem validade
diagnóstica, pela possibilidade de determinar, quantitativamente, um contributo significativo da vasodilatação
nessa perturbação (28).
Até há algum tempo, a identificação da SHP era um mero
exercício teórico, dada a ausência de um tratamento eficaz. O transplante hepático não estava indicado como
terapêutica da SHP, por alegada irreversibilidade do
processo, e estava mesmo contraindicado, devido à elevada mortalidade pós-operatória (9,29).
Este conceito veio a ser alterado com os vários estudos
publicados a partir de 1990, que confirmaram a eficácia
do transplante hepático, capaz de reverter, em cerca de
80% dos casos, as alterações respiratórias e vasculares da
SHP (29,30). Estes dados conduziram à modificação dos
critérios de transplante na SHP que passou, sucessivamente, de contra-indicação absoluta, a indicação relativa e,
actualmente, a indicação, inclusivamente com eventual
carácter prioritário na lista de espera para transplante hepático, atribuída pela UNOS (United Network for Organ
Sharing) (31) o que sublinha a importância do seu diagnóstico.
Os objectivos deste estudo foram os de determinar, numa
população de doentes com cirrose hepática, a prevalência
da SHP e o seu impacto prognóstico.
DOENTES E MÉTODOS
Foram estudados, prospectivamente, 48 doentes consecutivos com cirrose hepática observados no Serviço de
Gastrenterologia do nosso Hospital.
Foram critérios de inclusão:
• Doentes com cirrose hepática diagnosticada com base
em critérios clínicos, analíticos, imagiológicos e/ou histológicos.
Foram critérios de exclusão:
• Doentes com doença pulmonar ou cardíaca aguda ou
crónica agudizada;
• Evidência de infecção activa/sepsis;
• Doença hepática em fase de descompensação aguda e
não estabilizada (hepatite aguda alcoólica, síndrome
hepatorrenal, peritonite bacteriana espontânea, hemorragia digestiva, encefalopatia hepática aguda ou crónica agudizada).
Todos os doentes incluídos foram submetidos a avaliação
epidemiológica (sexo, idade, etiologia da cirrose hepática), clínica (gravidade da doença hepática pelos sistemas
de Child-Pugh e MELD, presença de sintomas respiratórios, presença de varizes esofágicas, doenças associadas do foro pulmonar, cardíaco e renal, factores de risco
para doença pulmonar, exame objectivo) e laboratorial
(hemograma com plaquetas, INR, creatinina, alanina
aminotransferase, aspartato aminotransferase, albumina e
bilirrubina total).
Seguidamente foi realizada gasimetria arterial após 10
minutos em ortostatismo, para pesquisa de alterações da
oxigenação arterial. Estas alterações foram consideradas presentes quando se verificou hipoxémia arterial
(PaO2 <80 mm Hg) ou aumento do gradiente alvéolo-arterial de O2 relativamente ao previsto para a idade, de
acordo com as seguintes fórmulas (32):
• Gradiente alvéolo-arterial de O2 (A-a O2)= Fi O2 X
(pAtm – pH2O) - paCO2 / QR - paO2;
• Gradiente alvéolo-arterial de O2 previsto (A-a O2 previsto) = 0,3 x idade (anos);
• Diferença de Gradiente = A-a O2 previsto - A-a O2.
Em que Fi O2: fracção de O2 no ar inspirado (%); pAtm:
pressão atmosférica = 760 x exp [- altitude (m) / 7000)]
(mm Hg); pH2O: 47mm Hg com ar saturado a 37°C;
paCO2: pressão parcial de CO2 no sangue arterial (mm
Hg); QR: quociente respiratório = 0,8; paO2: pressão parcial de O2 no sangue arterial (mm Hg).
O subgrupo de doentes com aumento do gradiente alvéolo-arterial de O2 foi submetido a ecocardiograma de contraste transtorácico para pesquisa de vasodilatação intrapulmonar. Este exame foi realizado sempre pelo mesmo
operador, com experiência em ecocardiografia. O protocolo adoptado baseou-se na injecção rápida, em veia
periférica, de 5cc de uma solução de soro fisiológico, agitada até à formação de bolhas visíveis em suspensão, sob
monitorização ecocardiográfica directa. A visualização
de microbolhas nas câmaras direitas do coração constituiu um requisito para se considerar o teste válido. A observação destas microbolhas nas câmaras esquerdas do
coração, após três ou mais batimentos cardíacos desde a
sua detecção nas câmaras direitas, constituiu um teste
positivo, cujos resultados foram graduados qualitativamente em positivo ligeiro (+), moderado (++) ou acentuado (+++). Durante o exame foram ainda avaliadas a
função cardíaca e a presença de comunicações intracardíacas.
Nos doentes com vasodilatação pulmonar foi pesquisada
a presença de patologia respiratória subjacente, por
radiografia de tórax e espirometria. O diagnóstico de SHP
foi directamente estabelecido nos casos em que estes exames foram normais, reservando-se a confirmação por cintigrafia com macroagregados de albumina-tecnécio-99m
para os casos em que esta avaliação evidenciasse alterações susceptíveis de provocar alterações da oxigenação.
Concluída a investigação, ambos os grupos de doentes,
com e sem SHP, foram mantidos em seguimento regular,
sendo este último grupo considerado o grupo de controlo.
A análise estatística foi efectuada com a aplicação
SPSS© versão 11.5, através dos testes de Fisher (2), com
correcção de Pearson, T para variáveis independentes e
Kolmogorov-Smirnov Z, de acordo com o tipo de variáveis para a análise univariada; análise de sobrevida de
Kaplan-Meier para o estudo da sobrevida; e regressão
binária logística para a análise multivariada, adoptando-se
um nível de significância para valores de p<0,05 (intervalo de confiança de 95%).
RESULTADOS
Características Demográficas e Epidemiológicas
Foram incluídos 48 doentes, dos quais 37 (77,1%) do
sexo masculino. A média de idades foi de 59,3 anos, com
os extremos etários em 34 e 77 anos. O álcool foi a causa
da cirrose hepática em 41 doentes (85,4%). Nos restantes
7 doentes, as etiologias foram variadas (Quadro I).
Características Clínicas e Laboratoriais
da Doença Hepática
Observou-se encefalopatia portossistémica em quatro
doentes (8,3%), nunca excedendo os graus I-II. A ascite
estava presente em 27 doentes, dos quais 13 (27,1%) em
grau ligeiro e 14 (29,2%) em grau moderado/grave. A
presença de varizes esofágicas foi documentada em 39
doentes, entre os 44 que aceitaram realizar esta avaliação
(Quadro II).
O perfil de alterações laboratoriais encontra-se representado no Quadro II.
A distribuição dos doentes de acordo com a gravidade da
cirrose hepática, calculada pelos sistemas de Child-Pugh
e MELD, revelou que a maioria estava numa fase ligeira
a moderada da doença, com 14 doentes (29,2%) na classe
A, 22 (45,8%) na B e 12 (25%) na C de Child-Pugh, e 38
doentes (79,1%) entre os 7 e os 15 pontos de MELD
(Quadro II e Figura 1).
Alterações Respiratórias
Entre os 48 doentes da população estudada, 17 (35,4%)
tinham hábitos tabágicos regulares, 2 tinham doença pulmonar obstrutiva crónica nas classes 0 e I de gravidade (33)
e 1 tinha insuficiência cardíaca classe II da NYHA (34).
Quatro doentes (8,3%) referiam dispneia, quando especificamente questionados, sendo que nenhum apresentava,
objectivamente, sinais de dificuldade respiratória
(taquipneia, aumento do tempo expiratório ou tiragem)
(Quadro III). Destes, um correspondia ao doente com
doença pulmonar obstrutiva crónica da classe I e outro ao
doente com insuficiência cardíaca da classe II da NYHA,
atrás referidos. Nos restantes dois, não se identificou patologia justificativa das queixas apresentadas. Todos negaram a
existência de platipneia. Ao exame objectivo, 12 (25%)
tinham telangiectasias, 3 (6,2%) tinham hipocratismo digital e nenhum apresentava cianose (Quadro II).
Todos os doentes foram submetidos a gasimetria arterial
após 10 minutos de ortostatismo. Detectou-se hipoxémia
arterial em 6 (12,5%). Quando calculado o gradiente
alvéolo-arterial de O2, para além destes 6 doentes com
hipoxémia manifesta, identificaram-se mais 7, num total
de 13 doentes (27,1%), com um gradiente calculado
superior ao previsto para a idade (Quadro III).
Alterações Vasculares Pulmonares
Os 13 doentes com aumento do gradiente alvéolo-arterial de O2 foram submetidos a ecocardiograma de contraste, que foi normal em 9 e evidenciou vasodilatação
pulmonar em 4 (1 positivo ligeiro, 1 positivo moderado e
2 positivos acentuados). Nestes 4 doentes, a espirometria
e a radiografia de tórax não revelaram alterações, o que
permitiu estabelecer directamente o diagnóstico de SHP
e dispensar a realização de cintigrafia com macroagregados de albumina (Figura 2).
Seguimento
Definiram-se dois grupos de doentes: um, com 4 doentes
com SHP (prevalência de 8,3%) e outro, que serviu de
controlo, com 44 doentes sem SHP, ambos mantidos sob
vigilância.
A presença de contra-indicações impediu o transplante
hepático de qualquer destes doentes. Com um tempo
médio de seguimento de 7,8 meses, observaram-se 9
óbitos, o que equivale a uma mortalidade global de
18,75%. Dos 9 óbitos, 3 pertenciam ao grupo de 4
doentes com SHP. Assim, a mortalidade no grupo de
doentes com SHP foi de 75%, limitando-se a 13,6% entre
os não afectados, diferença esta que foi estatisticamente
significativa (p=0,017). Entre os doentes com SHP, a
mortalidade foi, não só, mais elevada, como também
mais precoce (1,66 vs 4,5 meses desde a inclusão até ao
óbito), o que se traduziu por uma redução estimada da
sobrevida média que, por análise de Kaplan-Meier, se
cifrou em 4 meses, ascendendo aos 18 meses entre os não
afectados (log rank 0,0001) (Figura 3). As causas de
morte foram semelhantes em ambos os grupos, todas relacionadas com a doença hepática de base e nenhuma por
outras patologias, designadamente por falência respiratória.
Factores Preditivos da SHP
Foi pesquisada a existência de factores preditivos da presença de SHP, entre as seguintes variáveis: idade, sexo,
etiologia e gravidade da cirrose hepática, presença e grau
de ascite e encefalopatia hepática, hipocratismo digital,
telangiectasias cutâneas, varizes esofágicas, contagem de
plaquetas, INR, creatinina, aminotransferases, albumina
e bilirrubina. Entre estas, apenas se observaram diferenças estatisticamente significativas no que se refere aos
níveis de albumina sérica (p=0,03) e à gravidade da cirrose hepática, mais sólida com o sistema de Child-Pugh
(p=0,006) do que com o MELD (p=0,047) (Quadro IV).
Factores de Prognóstico
Repetiu-se a análise estatística, com as variáveis atrás
descritas a que se acrescentou a PaO2, a diferença entre o
gradiente alvéolo-arterial previsto e calculado, a presença
e grau de vasodilatação pulmonar e a presença de SHP,
para identificação de factores preditivos da mortalidade.
As variáveis associadas a pior prognóstico foram os
menores níveis séricos de albumina (p=0,001), o maior
grau de ascite (p=0,010), a maior gravidade da cirrose
hepática – Child-Pugh (p=0,000) e MELD (p=0,001) – a
presença de vasodilatação pulmonar (p=0,014) e a presença de SHP (p=0,017). À excepção do grau de ascite
(p=0,051), todas as restantes variáveis mantiveram, na
análise multivariada, validade prognóstica independente:
níveis séricos de albumina (p=0,018), índice de gravidade da cirrose hepática – Child-Pugh (p=0,004) e
MELD (p=0,005), presença de vasodilatação pulmonar
(p=0,006) e diagnóstico de SHP (p=0,017) (Quadro V).
DISCUSSÃO
O conceito de SHP como complicação menor da cirrose
hepática, que perdurou até meados da última década, tem
vindo a ser progressivamente alterado, resultado da
maior clarificação do seu impacto na história natural da
doença. Os trabalhos recentes, que comprovam a sua
potencial reversibilidade com o transplante hepático e
que incluem a SHP na lista de indicações para este procedimento, contribuíram para uma mudança radical na
abordagem desta situação (28,36-38).
Persistem, contudo, alguns conceitos inexactos, designadamente no que se refere à sua prevalência, tida como
baixa e inferior à de outras complicações da cirrose hepática mais debatidas. Para tal, deverá contribuir a dificuldade inerente à sua identificação clínica, devido à frequente ausência de sintomas e sinais específicos, ao seu
curso insidioso e à frequente coexistência de doença pulmonar na cirrose hepática, camuflando alterações que
poderão corresponder à SHP. Contudo, as séries existentes
apontam para uma prevalência entre 18 e 24% (19-22),
semelhante à de outras complicações da cirrose hepática
como a peritonite bacteriana espontânea (3,5% dos cirróticos com ascite) (35), a ascite refractária (10% dos cirróticos com ascite) (36,37), a síndrome hepatorrenal (18% a
1 ano e 39% aos 5 anos dos cirróticos com ascite) (38) e a
hemorragia digestiva por rotura de varizes esofágicas (25
a 35% dos cirróticos) (39,40).
Na nossa série, a prevalência da SHP foi de 8,3% pelo
que, apesar de inferior à observada noutras séries (19-22),
pode ser considerada uma complicação frequente da cirrose hepática.
Os sintomas respiratórios – dispneia e platipneia – estiveram notoriamente ausentes entre os doentes com
SHP. De facto, entre os 4 doentes com SHP, nenhum
apresentava sintomas respiratórios. Simultaneamente, a
sua presença não foi indicativa deste diagnóstico, já que
em nenhum dos 4 doentes que referia dispneia veio a ser
diagnosticada SHP (Quadro III). Paralelamente, as
telangiectasias e o hipocratismo digital tiveram uma
associação débil com a SHP, sem significado estatístico,
sendo estes dados, na sua globalidade, testemunho da
pouca relevância das manifestações clínicas para o
diagnóstico (Quadro II).
Não só os sinais e sintomas foram insuficientes para levantar a suspeita clínica, como a maioria dos aspectos
demográficos, clínicos e laboratoriais foram também
insuficientes, na análise estatística, para definir grupos de
maior risco de SHP. As excepções foram os níveis séricos de albumina e a gravidade da doença hepática
(Quadro IV). Na nossa série, nenhum dos doentes com
SHP pertencia à classe A de Child-Pugh, que constituíam,
aliás, a maioria. Esta diferença teve expressão estatística
significativa, com uma relação directa entre maior gravidade da doença hepática e maior probabilidade de SHP,
ao contrário do referido por outros autores (19,27,48,49).
Assim, de acordo com os nossos resultados, na ausência
de “marcadores” mais sensíveis, que permitam limitar o
grupo de candidatos a avaliação complementar, esta
deve, pelo menos, ser mais cautelosamente considerada
nas fases mais avançadas (classes B e C de Child-Pugh)
da cirrose hepática.
Na pesquisa de alterações da oxigenação, a hipoxémia
(PaO2 <80 mmHg) permitiu identificar apenas 6 doentes,
enquanto esse número ascendeu a 13 quando considerado o aumento do gradiente alvéolo-arterial de O2. Este
facto adquire maior relevância se considerarmos que a
hipoxémia teria permitido identificar apenas 2 dos
doentes com SHP, ficando por diagnosticar 2 doentes que
tinham somente um gradiente alvéolo-arterial de O2
aumentado (Quadro III).
Esta avaliação, simples e acessível, permitiu limitar apreciavelmente o número de candidatos a investigação adicional. Nesta série, esta estratégia permitiu reduzir, de 48
para 13 (27,1%), o número de doentes candidatos a confirmação da presença de vasodilatação intrapulmonar, mais
dispendiosa e exigindo maiores recursos, pelo que deverá
ser o método de eleição para a selecção inicial de doentes.
O impacto verificado na mortalidade e sobrevivência foi
notório e atesta a importância de efectuar o diagnóstico,
em particular numa fase precoce da doença, antes do
estabelecimento de hipoxémia grave, responsável por
aumento da mortalidade pós-transplante. Embora não
exista terapêutica médica específica, a sua identificação
recomenda a referenciação para transplante hepático,
mesmo na ausência de outra indicação e, talvez mais importante, deverá suscitar prioridade na lista de espera. A elevada mortalidade associada à SHP (75% vs 13,6%; p=0,017) e
a marcada redução da sobrevida média (4 vs 18 meses;
log rank 0,0001) confirmam-na como um factor a equacionar em termos de prognóstico e opções terapêuticas.
CONCLUSÃO
A SHP, com uma prevalência de 8,3% nesta série, é uma
complicação relativamente frequente da cirrose hepática.
Esta entidade associou-se às fases mais avançadas da
doença hepática e a sua presença agravou significativa e
independentemente o prognóstico a curto prazo, aumentando a mortalidade de 11,4% para 75% e reduzindo a
sobrevida de 18 para 4 meses.
A presença de sintomas ou sinais é insuficiente para a sua
identificação, o que sugere a necessidade de uma estratégia de pesquisa sistemática deste diagnóstico, particularmente nos doentes com cirrose hepática avançada. Para a
avaliação de doentes candidatos a investigação adicional,
a determinação do gradiente alvéolo-arterial de O2 deverá
ser o método de eleição.
O impacto desta entidade na história natural da cirrose
hepática e as implicações, em termos de transplante
hepático que deve suscitar, sublinham a importância do
seu reconhecimento.