DIARREIA NUM DOENTE COM IMUNODEFICIÊNCIA COMUM VARIÁVEL:
A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO
INTRODUÇÃO
As imunodeficiências primárias compreendem um conjunto de distúrbios que afectam o desenvolvimento e maturação das células do sistema imunitário, daí resultando,
entre outros, um aumento da susceptibilidade a infecções.
A Imunodeficiência Comum Variável (ICV) é o distúrbio
de imunodeficiência primária mais prevalente na
Europa com uma incidência variando entre 1: 50.000 a
1: 200.000, conforme os estudos (1,2) Afecta igualmente
homens e mulheres e a idade de diagnóstico varia entre a
2ª e a 3ª década de vida (2,3).
Representa um grupo heterogéneo de doenças imunológicas de etiologia desconhecida, que se caracterizam por
uma resposta deficiente dos anticorpos ao estímulo
antigénico. O defeito básico reside na imunidade
humoral, e consiste na incapacidade dos Linfócitos B se
diferenciarem em plasmócitos capazes de produzirem os
vários isotipos de imunoglobulinas, embora se verifique
que um defeito na imunidade celular esteja também
envolvido (3,4). O desenvolvimento defeituoso das células
B resulta em anomalias da imunidade humoral, o que
clinicamente se manifesta por infecções piogénicas de
repetição, enquanto que o defeito no desenvolvimento
dos linfócitos T acarreta uma anomalia da imunidade
celular e consequentemente uma maior susceptibilidade a
infecções oportunistas.
A característica laboratorial chave da ICV é a redução
marcada dos níveis séricos de Imunoglobulina G
(≤500 mg/dL em adultos), normalmente acompanhada de
uma redução nos níveis de IgA; cerca de 50% dos
doentes apresenta ainda redução dos títulos de IgM (3).
Na ausência de um teste diagnóstico definitivo para esta
doença, a ICV permanece um diagnóstico de exclusão,
que requer a eliminação de outras causas possíveis de
hipogamaglobulinémia. Os critérios clínicos e laboratoriais foram definidos pela European Society for
Immunodeficiencies (ESID) e são descritos no Quadro I.
Como já foi referido, a susceptibilidade aumentada a
infecções piogénicas é a característica clínica típica da
doença, apresentando quase todos os doentes infecções
sino-pulmonares de repetição (pneumonias, otites e
sinusites) por microorganismos encapsulados. O aparecimento de bronquiectasias é comum, especialmente se o
diagnóstico não for feito atempadamente.
Existe uma elevada incidência de neoplasias gastrointestinais e linforreticulares, verificando-se um aumento
da incidência de adenocarcinoma gástrico (cerca de 50
vezes) e de linfoma (cerca de 30 vezes), em relação à
população em geral (5,6,7).
Observa-se também uma predisposição aumentada para
doenças auto-imunes com destaque para a anemia hemolítica e púrpura trombocitopénica idiopática, tiroidite
auto-imune, anemia perniciosa, Síndrome de Sjögren,
hepatite auto-imune, cirrose biliar primária e vasculites,
entre outros (2,8).
De todas as imunodeficiências primárias, é na ICV que
são mais frequentes as queixas do foro gastrointestinal,
apresentando cerca de metade dos doentes queixas
digestivas nalgum ponto da evolução da sua doença (2,9,10).
Dor abdominal, náuseas e vómitos, diarreia e perda de
peso são as queixas mais frequentes.
As manifestações gastrointestinais da ICV são muito
variáveis e tendem a mimetizar doenças tais como a
doença celíaca, anemia perniciosa e a doença inflamatória intestinal, embora existam algumas diferenças
importantes a nível clínico e microscópico (9). Uma hiperplasia nodular linfóide com infiltração linfóide difusa e
perda das vilosidades é frequentemente encontrada em
biópsias intestinais. A hipertrofia de outros tecidos linfóides, incluindo gânglios periféricos, baço e fígado pode
também ser encontrada (2,9).
A infecção por Giardia Lamblia é uma causa comum de
diarreia nestes doentes, que apresentam também um risco
maior de infecção por gérmens enteroinvasivos como a
Salmonella, Shigella e Campylobacter e menos frequentemente Citomegalovírus (9,11).
O tratamento destes doentes engloba duas vertentes: o
tratamento antibiótico das infecções e o tratamento
dirigido ao défice imune com Imunoglobulina ev (IgG).
O tratamento com IgG endovenosa tipicamente não
afecta o curso das infecções gastrointestinais; estas,
devem-se a um défice combinado da imunidade celular e
humoral, não passível de ser corrigido pelas preparações
de Imunoglobulina (IgG), que não atingem o lúmen intestinal e não contêm IgA (não administrável por via parentérica), importante para prevenir as infecções do intestino (9).
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, raça caucasiana, 31 anos de
idade, doméstica de profissão, seguida em Consulta de
Medicina Interna, por Imunodeficiência Comum Variável diagnosticada na sequência de infecções respiratórias
de repetição. No estudo realizado em consulta, para estudo das infecções respiratórias de repetição, tinha sido
excluída fibrose quística e défice de α1 - antitripsina. As
serologias para VHB, VHC, HIV 1 e 2 foram negativas.
O Rx do tórax sugeria imagens de bronquiectasias no
lobo superior esquerdo, confirmadas por TC torácica.
O doseamento das Imunoglobulinas revelou a uma
diminuição marcada das IgG, IgA e IgM (Quadro II),
tendo sido colocada a hipótese de Imunodeficiência
Comum Variável, diagnóstico confirmado mais tarde
pelos testes de transformação linfoblástica.
Encontrava-se referenciada para Hospital de Dia para iniciar tratamento com Imunoglobulina; contudo, por
queixas de diarreia e emagrecimento com cerca de 12
meses de evolução, foi decidido internamento para estudo de quadro clínico
A doente referia episódios de diarreia aquosa (4-5
dejecções/dia), sem sangue, muco ou pús com duração de
cerca de 1 semana, que alternavam com períodos de trânsito normal, acompanhada de perda ponderal (cerca de
30% do peso corporal). Este quadro era acompanhado de
queixas de anorexia, astenia e mal-estar geral.
Ao exame objectivo encontrava-se consciente e orientada
no tempo e espaço destacando-se um aspecto emagrecido
(IMC de 17,2). Os pârametros hemodinâmicos eram
estáveis. As mucosas encontravam-se coradas e hidratadas. Apresentava baqueteamento digital. A auscultação
cardiopulmonar era normal e o abdómen não apresentava
sinais de circulação colateral, era mole e depressível, não
se palpando massas ou organomegálias.
Durante o internamento e com o objectivo de estudar a
diarreia e perda ponderal que a doente referia, foram pedidos uma série de exames complementares de diagnóstico.
Analiticamente destacava-se uma anemia microcítica
com Hb-10,4 g/L e VGM de 79,8 fL. Apresentava
Hipoproteinémia com proteínas totais de 49,3 g/L,
Hipoalbuminémia de 31 g/L e hipocalcémia (1,9 mmol/L).
A glicémia, função renal, transaminases, FA e gGT encontravam-se dentro dos valores normais. Os tempos de
coagulação não estavam alterados. A Vitamina B12 estava
diminuída [103 pg/mL; Valor de referência (VR): 200-950]
e ácido fólico era normal (15,6 ngG/mL; VR: 3,0- 17,0).
O ferro sérico era de 4,2 μmol/L (VR: 6-27), com
Saturação de transferina de 8,2% (VR: 35-40), capacidade
total de fixação do ferro de 51.0 μmol/L (VR: 44,8-80,6) e
ferritina de 13,7 ng/mL (VR: 9,0- 12,0). As Coproculturas
e exame parasitológico de fezes não detectaram qualquer
crescimento bacteriano, quistos ou trofoizoitos de parasitas. O teste da D-Xilose (18,3 mg/dL; VR: >25 mg/dL)
estava diminuído com xilosúria também diminuída
(3,2 g/5h). Os doseamentos de autoAnticorpos (ANA,
ANCA, Acs anti-gliadina, anti-endomísio e anti-factor intrínseco) foram negativos. O RX simples abdómen era normal.
No estudo do tubo digestivo a Colonoscopia realizada
mostrou uma mucosa sem alterações e a Endoscopia
Digestiva Alta revelou uma mucosa gástrica normal, evidenciando “a nível bulbar uma mucosa atapetada por
pequenos pólipos, aspecto que se acentuava por D2 e que
se estendia por um limite não definido”. (Figuras 1 e 2)
As biópsias das lesões polipóides observadas revelaram
“mucosa duodenal com arquitectura alterada por haver
alargamento e encurtamento das vilosidades (…) consequência da presença de numerosos folículos linfóides na
mucosa, com centros germinativos (…) um infiltrado
mononuclear abundante intersticial, constituído quase
exclusivamente por pequenos linfócitos, com numerosos
eosinófilos, alguns polimorfonucleares e apenas escassos
plasmócitos. No lúmen e em localização justaepitelial
foram identificadas numerosas figuras sugestivas de
Giardia. O estudo imunocitoquímico com anticorpos
anti-CD20, CD3, CD5, CD10, BCL2, cadeia K e cadeia
Lambda mostrou que a população linfóide era do tipo
hiperplasia nodular folicular.” (Figuras 3 e 4)
Com base nos exames realizados concluímos pelos
seguintes diagnósticos: síndrome de malabsorção (teste
da D – xilose alterado, hipoalbuminémia, hipocalcémia,
diminuição da Vitamina B12 e sideropenia), Hiperplasia
Nodular Folicular e Infecção por Giardia Lamblia, em
doente com imunodeficiência comum variável.
A doente iniciou tratamento com Metronidazol (500 mg
per os de 8/8h durante 7 dias), suplementação com ferro
e Vitamina B12 tendo-se verificado uma melhoria do
estado geral, com ligeiro aumento de peso (3-4 kg) aos 4
meses de seguimento, desaparecimento das queixas de
diarreia e melhoria dos parâmetros laboratoriais de
mal-absorção (albumina: 40 g/L, Cálcio de 2.07 mmol/L).
Em seguimento em regime de Hospital de Dia, onde lhe são
administrados 25g de Imunoglobulina ev mensalmente.
DISCUSSÃO
O tracto GI é o maior órgão imune do nosso organismo,
encontrando-se num estado perpétuo de “inflamação
fisiológica” devido à exposição contínua a antigénios alimentares ingeridos. Assim, não é surpreendente que
doentes com imunodeficiências apresentem manifestações
do foro digestivo em algum momento da sua doença.
A doente acima apresentada, tinha uma imunodeficiência
comum variável, hipótese colocada por um quadro clínico
sugestivo (infecções respiratórias de repetição, bronquiectasias, diarreia crónica) e confirmada laboratorialmente pelo doseamento de imunoglobulinas e testes de
transformação linfoblástica alterados, após exclusão de
outras causas de imunodeficiência.
Nestes doentes, a diarreia é uma das queixas gastrointestinais mais frequentes, sendo que as principais
hipóteses etiológicas a colocar são: doença “celíaca like”,
infecção por Giardia, doença inflamatória intestinal (DII)
(nomeadamente colite ulcerosa (CU), hiperproliferação
bacteriana e linfoma do intestino delgado (9).
Cerca de 60% dos doentes com ICV, apresentam diarreia
crónica e uma síndrome de mal-absorção com hipoalbuminémia, hipocalcémia, diminuição da vitamina B12 e
teste da d-xilose alterado (9). A histologia do intestino delgado pode mostrar nestes casos aplanamento das vilosidades juntamente com infiltração linfocítica na lâmina
própria. Histologicamente há semelhanças com a doença
celíaca, excepto pelo facto de não haver infiltração da
lâmina própria por plasmócitos (uma das características
da enteropatia sensível ao glúten), os marcadores
imunológicos de doença celíaca serem negativos e existir
resposta à restrição de glúten na dieta em apenas 50% dos
casos (9,11). A doente acima descrita, apresentava um
padrão histológico que poderia ser enquadrável numa
“doença celíaca-like”, juntamente com uma síndrome de
mal-absorção; contudo o facto de a diarreia ter cedido
após instituição de metronidazol permitiu-nos atribuir
com segurança este quadro clínico à infecção por Giardia
Lamblia, embora seja admissível que as alterações da
arquitectura das vilosidades descritas contribuíssem em
alguma extensão para a má-absorção apresentada.
A hipótese de DII era pouco provável, já que a colonoscopia realizada não mostrava qualquer tipo de alteração na mucosa e houve melhoria do quadro com instituição da antibioterapia. Verifica-se que os doentes com
ICV apresentam uma tendência elevada para doença
inflamatória intestinal (DII), o que parece estar relacionado com a des-regulação das células T e realça o facto de
alterações da imunidade celular estarem também
envolvidas na ICV (2,9). Macroscopicamente os achados
podem ser semelhantes à CU embora existam diferenças
significativas a nível histológico, nomeadamente a
ausência de células gigantes, de granulomas e de distorção das criptas intestinais (9).
A infecção por Giardia Lamblia é a na realidade, a causa
infecciosa mais frequente de diarreia e mal-absorção
nestes doentes, sendo detectada em 30% dos casos (9).
Em hospedeiros normais, a Giardíase causa geralmente
uma diarreia auto-limitada que dura dias a semanas. Já os
doentes com ICV podem desenvolver uma diarreia crónica com má-absorção e perda ponderal significativas, que
apesar do tratamento adequado pode ter um curso crónico e recidivante. As alterações histológicas e o envolvimento da mucosa variam em gravidade, indo desde
alterações ligeiras na arquitectura das vilosidades até
atrofia vilosa total, condicionando má-absorção grave e
esteatorreia. O diagnóstico pode ser feito pela detecção
de quistos ou trofozoítos nas fezes, embora por vezes seja
necessária a biópsia ou aspirado duodenal para detectar o
parasita, tal como se verificou na doente apresentada.
Outra alteração encontrada nesta doente, enquadrável na
sua ICV, foi a hiperplasia nodular focal ou linfóide. Esta
alteração histo-patológica é uma das manifestações
endoscópicas primárias encontrada em 60% dos casos (2,9)
e apresenta-se como pequenos nódulos ou pólipos no
intestino delgado correspondendo a agregados de linfócitos B organizados em folículos, confinados à lâmina
própria e sub-mucosa do intestino delgado. Pode ser
causa de enteropatia exsudativa e existem autores que
acreditam que esta alteração pode estar relacionada com
o desenvolvimento de linfoma intestinal (2), devendo estes
doentes ser vigiados mais atentamente.
CONCLUSÃO
Embora o Médico Gastrenterologista se encontre raramente envolvido no diagnóstico e assistência inicial de
doentes com síndromes de imunodeficiências primárias,
deve estar familiarizado com este tipo de patologia devido
às múltiplas implicações produzidas no tubo digestivo.
Em primeiro lugar, porque mimetizam doenças como a
colite ulcerosa, anemia perniciosa ou doença celíaca,
apresentando contudo diferenças clínicas e histológicas
importantes. Estes distúrbios não se devem apenas a
alterações na imunidade humoral, e parecem até estar
mais relacionados com defeitos da imunidade celular, o
que poderá explicar o facto de alguns doentes com manifestações gastrointestinais da ICV não responderem à
terapêutica com Imunoglobulina ev.
Em segundo lugar, o facto de estes doentes apresentarem
incidência elevada de neoplasias digestivas, torna a sua vigilância endoscópica periódica de primordial importância.
Assim, a ICV deve ser considerada em qualquer doente
que se apresente com manifestações gastrointestinais que
não respondem aos tratamentos convencionais, especialmente em doentes com diarreia crónica em associação
com infecções bacterianas recorrentes noutros órgãos.