QUISTO DO COLÉDOCO COMO CAUSA
DE OBSTRUÇÃO BILIAR NO ADULTO
INTRODUÇÃO
Os quistos do colédoco são dilatações quísticas que
envolvem as vias biliares extra-hepáticas, intra-hepáticas, ou ambas. São entidades raras, cuja prevalência varia entre 1 em cada 13 000 e 1 em cada 2
milhões de nados-vivos, sendo mais frequentes na
população asiática e no sexo feminino (razão feminino/masculino 3-4:1) (1). A sua etiologia não está
completamente esclarecida, parecendo resultar de
anomalias congénitas na formação dos ductos biliares, ou a nível da junção biliopancreática. O diagnóstico dos quistos do colédoco é feito, geralmente, na
infância, mas 20-30% dos casos manifestam-se apenas no adulto, com quadros clínicos variados e
inespecíficos (2).
CASO CLÍNICO
Homem de raça eurocaucasiana, 46 anos, com história de
episódios recorrentes de febre, icterícia, colúria, acolia e
prurido nos últimos 4 anos. Inicialmente, estes episódios
ocorriam 2 a 3 vezes por ano, com febre (temperatura
axilar: 38-39ºC) de predomínio vespertino, icterícia,
colúria, acolia e prurido generalizado, que regrediam
espontaneamente ao longo de 1 a 2 semanas. Os episódios não eram acompanhados por dor abdominal. Nos
últimos 2 anos, tornaram-se mais frequentes (1 a 2 vezes
por mês) e passaram a ser acompanhados de epigastralgia
tipo cólica, intensa, com irradiação em cinturão e sem
factores de alívio ou agravamento. O doente referia também perda ponderal de 8 kg (10% do peso habitual) ao
longo de 2 anos e astenia de agravamento progressivo.
Havia história de hábitos alcoólicos de 150g etanol/d e
hábitos tabágicos de 12UMA até 2 anos antes, estando o
doente em abstinência desde então. Referia ainda
diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 há 2 anos, estando
medicado com um antidiabético oral. Não havia outros
antecedentes pessoais ou familiares relevantes, nem
história epidemiológica de risco.
Cerca de 2 anos antes, recorrera a outro hospital, onde
realizara diversos exames complementares, desconhecendo o diagnóstico estabelecido. Fora submetido, desde
então, a 4 colangiopancreatografias retrógradas endoscópicas (CPREs), com esfincterotomia e posterior colocação/substituição de endopróteses biliares (a última das
quais 4 meses antes). O doente era portador dos relatórios
destes exames, que referiam dilatação das vias biliares (VB)
intra e extra-hepáticas e compressão da porção terminal
da via biliar principal (VBP) por formação quística. Era
também portador de uma Colangio-Ressonância Magnética Nuclear (RMN), que era concordante com esta descrição (Figura 1).
À entrada, apresentava-se emagrecido, anictérico, sem
estigmas de doença hepática crónica, apirético e com tensão arterial e auscultação cardio-pulmonar normais.
Apresentava hepatomegalia palpável cerca de 2 cm
abaixo do rebordo costal inferior direito, de consistência
elástica, bordo rombo e superfície lisa, dolorosa à palpa-
ção. Não havia outras alterações no exame do abdómen
ou restante exame objectivo.
A avaliação laboratorial revelou hemograma e coagulação dentro da normalidade, proteína C reactiva de
1,46 mg/dL (< 0,3), gama-glutamil transpeptidase de
179 UI/L (2-30) e restantes provas hepáticas normais.
Realizou uma tomografia axial computorizada (TAC),
que revelou ectasia das VB intra e extra-hepáticas, com
prótese biliar no terço distal do colédoco. Evidenciava-se
ainda uma discreta hipodensidade da porção cefálica do
pâncreas, compatível com processo inflamatório, não
existindo outras alterações. Uma vez que a prótese fora
colocada há mais de 3 meses, realizou-se CPRE.
Constatou-se volumosa procidência na 2ª porção duodenal, peri-papilar (Figura 2) e presença de endoprótese biliar, que se retirou. A colangiografia revelou volumosa
formação quística (cerca de 3 cm de diâmetro) com
comunicação com a porção terminal da VBP, que se
encontrava estenosada na zona de transição com o quisto, com dilatação a montante (Figura 3). Não havia
alterações do ducto pancreático. Nesta data não foi possível colocar prótese biliar, ocorrendo, cerca de 24 horas
depois, quadro de colangite com choque séptico, com
necessidade de suporte dopaminérgico. Às 72h, realizou
nova CPRE, com colocação de endoprótese biliar de
10 Fr/10 cm, havendo resolução do quadro clínico com a
drenagem biliar e antibioterapia. Para uma melhor caracterização da formação quística, realizou-se ecoendoscopia, mas não foi possível, por dificuldade técnica,
definir a parede do quisto.
Assim, colocando as hipóteses diagnósticas de quisto do
colédoco (tipo II da classificação de Todani) versus quisto de duplicação duodenal, programou-se cirurgia electiva.
No acto operatório, constatou-se marcada dilatação do
colédoco, com quisto na sua porção terminal e
adenopatias retrocoledócicas e retroduodenais. Foi feita colecistectomia e ressecção do colédoco extra-pancreático, com anastomose hepato-jejunal em Y de
Roux. O pós-operatório decorreu sem complicações.
O exame anatomo-patológico da peça operatória revelou
quisto do colédoco (quisto de parede fibrosa revestido
por epitélio biliar) com inflamação intensa, vesícula com
lesões de colecistite crónica e gânglios reactivos.
O doente está assintomático dez meses após a cirurgia.
DISCUSSÃO
Embora a maioria das lesões congénitas do aparelho
digestivo seja reconhecida na infância, algumas não são
detectadas até à idade adulta, quer por permanecerem
assintomáticas, quer por originarem sintomas inespecíficos, que dificultam o diagnóstico. Numa revisão de 17
casos de lesões congénitas sintomáticas do tracto digestivo em adultos, a duração média dos sintomas à data do
diagnóstico era de 6,5 anos e um diagnóstico pré-operatório correcto só foi possível em 35% dos casos (3).
No caso particular dos quistos do colédoco, a tríade clínica clássica (icterícia, dor no quadrante superior direito do
abdómen e massa palpável) surge com muito maior frequência na infância que na idade adulta, altura em que a
dor abdominal é o sintoma mais frequente (2). A avaliação
laboratorial pode mostrar alterações discretas das provas
hepáticas e da amilase, mas também estas são inespecíficas. Em relação aos exames imagiológicos, quer a
ecografia, quer a TAC podem sugerir o diagnóstico, mas
este requer sempre uma colangiografia, seja ela obtida
por RMN, CPRE, ou por via percutânea.
Os quistos do colédoco são geralmente classificados,
segundo Todani, em 5 tipos (4): o tipo I consiste na
dilatação sacular ou fusiforme de todo o canal hepático
comum e do colédoco, ou de segmentos de cada, o tipo II
corresponde a divertículos que se projectam da parede do
colédoco, o tipo III, ou coledococelo, é uma dilatação limitada à porção intra-duodenal do colédoco, o tipo IV consiste em múltiplas dilatações das VB intra e extra-hepáticas e o tipo V, ou doença de Caroli, corresponde a dilatações quísticas das VB intra-hepáticas. Quer na criança,
quer no adulto, os tipos I (que corresponde a cerca de
80% dos casos) e IV são os mais comuns e o tipo II, a que
corresponde o caso descrito pelos autores, o mais raro
(cerca de 2% dos casos) (2,4).
A importância dos quistos do colédoco reside nas suas
potenciais complicações, que incluem litíase biliar, pancreatite recorrente, colangite (que pode ser a primeira
manifestação clínica no adulto, como no caso descrito),
cirrose biliar secundária e colangiocarcinoma. Uma vez
estabelecido o diagnóstico, a cirurgia, com excisão do
quisto e hepatojejunostomia, é a terapêutica de escolha,
diminuindo drasticamente o risco de complicações. No
entanto, é essencial realçar que estão descritos casos
raros de carcinomas das VB intra-hepáticas que surgiram
mesmo após cirurgia, todos eles em doentes com quistos
que envolviam a árvore biliar intra-hepática (1,5).
Os principais diagnósticos diferenciais dos quistos do
colédoco são os pseudoquistos pancreáticos (geralmente,
distinguíveis pela história clínica e exames imagiológicos) e os quistos de duplicação duodenal (6). Estes últimos
são uma entidade congénita rara, que se caracteriza pela
presença de uma estrutura geralmente esférica no lado
mesentérico da 1ª ou 2ª porção duodenal, com ou sem
comunicação com o lúmen, cuja parede contem uma
camada de músculo liso e que é, normalmente, revestida
por epitélio duodenal (7,8). No adulto, as duplicações duodenais podem manifestar-se por obstrução biliar e o
diagnóstico diferencial definitivo com os quistos do colédoco só é estabelecido histologicamente (6).
No caso descrito pelos autores, a sintomatologia inespecífica levou a um atraso de diagnóstico de 4 anos, que
poderia ter acarretado complicações graves. Os achados
da Colangio-RMN e das CPREs limitaram o diagnóstico
diferencial a duas entidades clínicas, o quisto do colédoco
e o quisto de duplicação duodenal, para as quais a terapêutica de primeira linha é a cirurgia. Assim, programou-se
uma intervenção curativa, que simultaneamente estabeleceu o diagnóstico definitivo. Este caso realça a importância de se considerarem patologias congénitas no leque de
diagnósticos diferenciais no adulto.