Polimorfismos dos genes das citocinas e susceptibilidade para cancro gástrico:
uma descoberta anunciada?
Editorial
Polimorfismos dos genes das citocinas e susceptibilidade para cancro gástrico:
uma descoberta anunciada?
Admite-se que na patogenia de determinadas doenças, nomeadamente doenças
inflamatórias e oncológicas, intervenham simultaneamente factores ambientais e
genéticos. No caso concreto do cancro gástrico, só um pequeno número de casos é
que estão relacionados com factores genéticos transmitidos hereditariamente,
i.e., mutações germinais no gene da E-caderina, que dão origem ao carcinoma
gástrico de tipo difuso hereditário. A maioria dos casos de carcinoma gástrico
é de tipo intestinal e admitese hoje que a sua patogenia está relacionada com a
infecção da mucosa gástrica pela bactéria Helicobacter pylori(H. pylori) que,
por esta razão, foi considerada um carcinogénio de classe I. No entanto, a
questão que se coloca de imediato é: se a prevalência de infecção por H.
pylorié em Portugal superior a 80%, porque é que apenas uma minoria destes
indivíduos vem a desenvolver cancro gástrico? Porque é que alguns indivíduos
infectados pelo H. pyloridesenvolvem úlcera péptica, enquanto que uma pequena
percentagem desenvolve linfoma gástrico e a esmagadora maioria apenas apresenta
um processo de gastrite crónica? A resposta concreta para esta heterogeneidade
de respostas do hospedeiro a um mesmo agente infeccioso continua por
esclarecer. Porém, com a descodificação do genoma humano no final do século
passado, começaram a surgir diversos trabalhos apoiando a hipótese de que
poderiam ser os chamados polimorfismos genéticos os responsáveis por esta
heterogeneidade de resposta do hospedeiro a um mesmo agente ambiental, que no
caso concreto do cancro gástrico seria a infecção por H. pylori. Polimorfismos
genéticos são verdadeiras mutações genéticas que ocorrem na sequência
reguladora de genes e que, apesar de não alterarem de forma significativa a
função da proteína, podem originar diferenças na quantidade de proteína
produzida. Estes polimorfismos são relativamente frequentes na população em
geral e, por não produzirem alterações significativas na função da proteína,
não são consideradas mutações patogénicas. Por si só não causam doença, mas
admite-se que possam alterar a susceptibilidade a determinados agentes
ambientais, funcionando como promotores ou protectores de determinada
patologia.
No que concerne o cancro gástrico de tipo intestinal, a maior parte dos
trabalhos foram estudar os polimorfismos dos genes das citocinas pró-
inflamatórias IL-1B-511 e TNF-alpha-308 bem como da citocina anti-inflamatória
IL-1RN na susceptibilidade para o aparecimento não só do cancro gástrico bem
como dos precursores histológicos admitidos no modelo proposto por Pelayo
Correia: gastrite crónica atrófica e metaplasia intestinal. O rationale seria
que os polimorfismos dos genes destas citocinas iriam regular a quantidade de
proteínas produzida a nível da mucosa intestinal o que iria condicionar a
intensidade da resposta inflamatória. Com uma resposta inflamatória mais
“exuberante” ou menos “defensiva” poderiam estar criadas as condições para a
iniciação do processo de carcinogénese
(1)
.
Portugal pode-se considerar pioneiro nesta área de investigação pois desde o
início de 2002 que o grupo do IPATIMUP liderado pelo investigador JC Machado
demonstrou que os portadores do alelo T do polimorfismo IL-1B- 511, em hetero
ou homozigotia, tinham um risco acrescido de desenvolver cancro gástrico
(2)
. Estes investigadores foram não só procurar factores de susceptibilidade do
hospedeiro mas também factores de “virulência” da bactéria, tendo encontrado
que determinadas estirpes (vacAs1, vacAm 1-, e cagA-positivos) se encontravam
associadas a um maior risco de cancro gástrico. Parecia ainda existir um
sinergismo entre os genótipos de alto risco da bactéria e do hospedeiro cuja
combinação aumentava ainda mais o risco de transformação maligna. Num trabalho
posterior
(3)
, este mesmo grupo de investigadores demonstrou igualmente que em relação ao
polimorfismo TNF-alpha-308 os portadores do alelo A tinham um risco aumentado
para cancro gástrico bem como para a lesão precursora – gastrite crónica
atrófica. Estas associações foram posteriormente confirmadas noutros grupos
étnicos
(4,5)
, embora se admita alguma variação.
Nesta edição do GE-Jornal Português de Gastrenterologia, Silva e colaboradores
(6)
publicam mais um trabalho realizado em indivíduos portugueses, sugerindo
novamente que alguns destes polimorfismos poderão funcionar como genes de
susceptibilidade, ou de protecção, para gastrite crónica e/ou cancro gástrico.
Neste trabalho os AAforam estudar os polimorfismos dos genes das citocinas IL-
1B-511, IL-1RN-2018 e TNF alpha–308 e –208 em 36 individuos com cancro
gástrico, 11 individuos com gastrite crónica e 39 individuos saudáveis. De
acordo com alguns dos trabalhos já publicados, os AA encontraram que os
indivíduos com genotipos ditos altos produtores de TNF alpha e de IL1RN tinham
um risco acrescido de cancro gástrico. No que concerne o polimorfismo do gene
IL-1B-511, os resultados obtidos no presente estudo na comparação entre
controlos e doentes com gastrite crónica, parecem contrariar os já publicados
anteriormente que associam o alelo IL-1B-511 T a um risco aumentado de gastrite
crónica atrófica. Uma das razões para esta discrepância poderá estar
relacionada com o pequeno número de indivíduos incluído em cada grupo no
presente estudo. Na realidade, sobretudo quando estudamos prevalências de
polimorfismos genéticos, deveremos sempre tentar que cada grupo de estudo seja
constituído por, pelo menos, 100 indivíduos. Resultados obtidos em grupos com
11 indivíduos poderão ser pouco fiáveis ou reprodutíveis. Por outro lado,
gastrite crónica é um termo vago – seria interessante sabermos quantos destes
teriam de facto alterações histológicas que podem aumentar o risco de
progressão para cancro: atrofia e/ou metaplasia intestinal. Finalmente, temos a
questão dos controlos – apesar de se tratar de um grupo de individuos saudáveis
e por isso podermos excluir que quase seguramente não teriam cancro gástrico, a
exclusão de gastrite crónica não é possível. Atendendo à prevalência de
infecção pelo H. Pylori na população portuguesa, superior a 80%, é de admitir
que uma percentagem significativa destes indivíduos possa ter processos de
gastrite crónica. Assim, na minha opinião, neste estudo são mais relevantes os
resultados obtidos na comparação entre controlos e doentes com cancro gástrico
em que os AA encontraram que o alelo IL-1RN+2018 genótipo CC aumenta de forma
significativa a susceptibilidade para aparecimento de cancro gástrico, enquanto
que o alelo T teria um efeito protector. Estes dados são inovadores no que
respeita o cancro gástrico e obviamente que necessitam de ser confirmados, ou
não, por outros estudos que incluam maior número de doentes.
Assim, no ponto actual da situação, a questão que se coloca é se com os dados
disponíveis podemos identificar indivíduos com maior susceptibilidade de virem
a desenvolver cancro gástrico, por serem portadores de determinados
polimorfismos, e nesses aplicar um programa de vigilância ou prevenção
secundária através, p.e., da erradicação do H. pylori?
Embora não exista publicado na literatura um estudo que permita responder a
esta questão, na minha opinião não está ainda demonstrado que estes marcadores
genéticos sejam suficientemente sensíveis/específicos de forma a permitirem a
sua transposição para a prática clínica. São seguramente importantes estudos
desta natureza que nos ajudam a melhor compreender a patogénese da doença.
Porém a utilidade deste tipo de marcadores em programas de rastreio está ainda
longe de ser demonstrada.