Linfangiectasia Intestinal Primária - Como causa de Enteropatia Exsudativa
INTRODUÇÃO
O termo Linfangiectasia Intestinal descreve um grupo de doenças caracterizadas
pela dilatação dos canais linfáticos1. A ingestão de gorduras, resulta na
distensão e ruptura destes canais originando perda intestinal de proteínas,
linfócitos e imunoglobulinas
2
.
A associação de hipoalbuminemia, linfopenia e hipogamaglobulinemia deve fazer
suspeitar deste diagnóstico.
A linfangiectasia intestinal pode ser primária (LIP), idiopática ou secundária.
A LIP é uma malformação congénita intestinal, descrita pela primeira vez em
1961 por Waldmann et col
2,3
, podendo a apresentação clínica ocorrer desde o período fetal até à idade
adulta. Na maioria dos doentes é uma anomalia esporádica, embora estejam
descritos casos familiares ou em associação com os Síndromes de Noonan, Turner
e Klippel-Trenaunay-Weber
2,4
. Os vasos linfáticos afectados localizam-se primariamente no intestino delgado
5
, estando este atingido numa extensão variável
1,2,6
. A sua etiologia é ainda desconhecida1.
A linfangiectasia secundária resulta de uma obstrucção linfática com pressão
linfática elevada ou lesão directa dos canais linfáticos1, por situações tais
como fibrose retroperitoneal, pancreatite crónica, tumores abdominais ou
retroperitoneais, tuberculose mesentérica, doença de Crohn, má rotação
intestinal, doença de Whipple, doença celíaca, pericardite constritiva e
insuficiência cardíaca congestiva2,4.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino, 18 meses de idade, referenciado à consulta externa
por hipertrofia do membro inferior esquerdo. Aos nove meses foi detectado
aumento de volume do membro inferior esquerdo. Aos 18 meses, quando foi
referenciado à consulta externa apresentava bom estado geral e nutricional e
assimetria dos membros inferiores. O restante exame objectivo não evidenciava
alterações e os exames complementares de diagnóstico efectuados (radiografia
dos membros inferiores, tomografia axial computorizada cerebral, ecografia
abdominal e cariótipo) foram normais. Em consulta de genética foi feito o
diagnóstico de hemihipertrofia segmentar isolada (do membro inferior esquerdo),
ficando em vigilância.
Aos 3 anos de idade começou a ter episódios de dor abdominal difusa tipo
cólica, distensão abdominal e diarreia, de frequência crescente. Ao exame
objectivo (Fig. 1) apresentava hipertrofia da hemiface direita, hipertrofia e
edema duro dos membros superior e inferior esquerdos. O abdómen era globoso,
timpanizado, com baço palpável cerca de 2-3 cm abaixo do rebordo costal
esquerdo, fígado palpável 2 cm abaixo do rebordo costal direito.
Analiticamente, apresentava hipoproteínemia (34 g/dl), hipoalbuminemia (17 g/L)
com electroforese normal, hipogamaglobulinemia com imunoglobulina A e M
normais. A função hepática e o exame sumário de urina não revelaram alterações.
O restante estudo analítico (hemograma, ionograma, cálcio, fósforo, colesterol
total, triglicerídeos, velocidade de sedimentação, estudo do complemento,
anticorpos antigliadina e antitransglutaminase, alfa-1-antitripsina) também foi
normal. A endoscopia digestiva alta revelou mucosa edemaciada na segunda e
terceira porções do duodeno, pregas grossas e revestidas a pontuado branco
leitoso sugestivo de linfangiectasia (Fig. 2). O exame histológico das biópsias
duodenais confirmou o diagnóstico revelando grande deformação das vilosidades
na dependência de expansão de capilares linfáticos que chegavam a assumir
proporções microcísticas. (Fig. 3). O estudo radiológico do intestino delgado
por trânsito mostrou edema e espessamento das pregas em todo o intestino
delgado (Fig. 4).
Fig. 1. Aos 3 anos de idade é notória a assimetria das extremidades, abdómen
proeminente e edema generalizado.
Fig. 2. Pregas espessas, edemaciadas, de tonalidade rosa claro com múltiplas
formações de coloração branco leitoso que ocupam quase toda a superfície.
Fig. 3. Peça de biópsia duodenal: mucosa com vasos linfáticos edemaciados com
aparência microcística (coloração hematoxilina).
Fig. 4. Rx EGD: áreas de espessamento e edema da mucosa intestinal (setas).
Iniciou dieta hiperproteica com baixo teor de gordura e de ácidos gordos de
cadeia-longa e suplementação com triglicerídeos de cadeia média. Até aos 6 anos
manteve episódios de diarreia e distensão abdominal e necessidade de perfusões
regulares de albumina. A melhoria clínica foi significativa com desaparecimento
progressivo do edema, normalização dos valores analíticos e boa evolução
estaturo-ponderal. Desde então assintomático e sem registo de alterações
electrolíticas ou proteicas significativas apesar de ter cometido alguns erros
dietéticos.
Aos 16 anos encontrava-se no percentil 75 de peso e 10 altura, detectando-se ao
exame objectivo assimetria corporal caracterizada por hipertrofia da hemiface
direita e dos membros superior e inferior esquerdo. Os exames laboratoriais
revelavam proteínas totais e albumina dentro dos valores normais e
hipogamaglobulinemia (lgG: 317 mg/dl (N: 639-1349)). A endoscopia digestiva
alta mostrava Duodeno com pregas hipertrofiadas e edemaciadas com pontuado
branco difuso abundante e distribuição irregular até à 3ª porção e o exame
histológico:...numerosas linfangiectasias e hiperplasia dos folículos
linfóides. A densitometria óssea era normal para a idade. Trata-se de um
adolescente com um QI dentro da média. Apesar de manter edema assimétrico da
face e membros tem um estilo de vida semelhante aos adolescentes saudáveis da
sua idade.
DISCUSSÃO
A incidência da LIP, embora baixa, é ainda desconhecida uma vez que pode ser
assintomática até à idade adulta2. As manifestações clínicas variam desde as
formas assintomáticas até alterações graves com anasarca e ascite quilosa, que
aparecem habitualmente de uma forma episódica
1,2,5,7
. Associa-se muitas vezes com edema linfático da face, membros e órgãos
genitais, podendo este preceder o aparecimento dos sintomas gastro-
intestinais1. A incidência é igual em ambos os sexos e ocorre habitualmente
durante o primeiro ano de vida4. Embora esteja relacionada com alterações
significativas do sistema imunitário (linfopenia e hipogamaglobulinemia), as
infecções graves não são frequentes4. Esta patologia pode cursar com tetania,
má evolução estato-ponderal e dismorfias devidas ao edema linfático4. Para além
de uma dieta permanente1,2,4,6,7 rica em proteínas, com baixo teor de gorduras
e com triglicerídeos de cadeia média, cálcio e vitaminas lipossolúveis, podem
ser necessárias perfusões de albumina e nos casos de lesões focais a exérese
cirúrgica do segmento intestinal afectado pode ser curativa2. Tratamentos com
antiplasmina, corticóides e octreótido não são ainda consensuais1,2,4,6.
Perante uma criança com edemas generalizados, excluídas as hipóteses de
malnutrição, insuficiência cardíaca ou hepática e síndrome nefrótico, deve ser
considerada a possibilidade de uma enteropatia com perda de proteínas.
A hipoproteinemia ocorre quando a perda intestinal é o dobro do normal,
considerando que a síntese hepática não compensa a perda entérica e a síntese
de imunoglobulinas não aumenta de forma compensadora.
No caso descrito o nível sérico de IgG estava diminuído mas a linfopenia
característica, devida à exsudação pelos canais linfáticos não se observou.
Neste doente a co-existência de hemihipertrofia facial e edema linfático das
extremidades levou à suspeita de Linfangiectasia Intestinal Primária uma vez
que neste doente tinham sido já excluídos outras síndromes na consulta de
genética. O diagnóstico foi confirmado pelas imagens características da
endoscopia e pelos achados histológicos. As múltiplas amostras de biópsia
jejunal permitiram estabelecer o diagnóstico, o que nem sempre acontece em
especial quando as lesões não são difusas4. O exame endoscópico é extremamente
importante para localizar as lesões e biopsá-Ias1-4. O estudo radiológico do
intestino delgado e mais recentemente a videocápsula endoscópica permitem
conhecer a extensão das lesões.
O objectivo do tratamento médico é compensar a perda entérica de proteínas, com
dieta com elevado teor proteico e reduzir o fluxo nos vasos linfáticos com
suplementação com triglicerídeos de cadeia média1-4. Pode ser necessário a
administração de vitaminas lipossolúveis e suplementos de cálcio.1,2,4
Habitualmente obtêm-se melhores resultados quando a lesão está limitada à
lâmina própria. Em muitos casos em que não se verifica melhoria com esta
terapêutica é necessária nutrição parentérica.1,2 O tratamento cirúrgico está
indicado nas pequenas lesões intestinais localizadas, no envolvimento pleural
ou pericárdico e em casos de falência da terapêutica médica1,2,4.
O prognóstico é muito variável dependendo da resposta à terapêutica e da
extensão de intestino afectado bem como do grau de imunodeficiência celular ou
humoral do doente. Varia desde a remissão espontânea ou boa tolerância às
gorduras, até casos de deterioração total com anasarca e caquexia2,4. A
principal complicação é o edema linfático dos membros inferiores que pode vir a
infectar necessitando de cuidados específicos e pode levar a deterioração da
qualidade de vida por dificuldades na locomoção. Outras complicações que podem
ser ameaçadoras são o derrame pericárdico e pleural. Está descrito aumento da
incidência de neoplasias (especialmente linfoma). Apesar do acentuado
envolvimento da mucosa intestinal no doente apresentado verificou-se uma boa
resposta à dieta. A vigilância clínica destes doentes é muito importante não só
pelo estado nutricional do doente como também pela possibilidade de
desenvolvimento de neoplasias linforecticulares que pode ocorrer ao longo dos
anos
2-4,8
.