História natural dos tumores mesenquimatosos do tubo digestivo superior e
ecoendoscopia
História natural dos tumores mesenquimatosos do tubo digestivo superior e
ecoendoscopia
INTRODUÇÃO
Os tumores mesenquimatosos constituem o maior grupo de neoplasias digestivas
não epiteliais. Apesar de se admitir que representam apenas cerca de 1% dos
tumores digestivos primários
1-2
e que o número de novos casos anuais estará entre os 10 e os 20 por milhão de
pessoas, a sua verdadeira incidência é difícil de determinar e está, muito
provavelmente, subestimada. Kawanowae colaboradores, num trabalho publicado em
2006, constataram que a frequência de tumores do estroma gastrointestinal
(GIST) e leiomiomas microscópicos em estômagos ressecados de doentes com cancro
do estômago era muito superior – 35 e 28 em 100, respectivamente. Admitiram que
dada a reduzida incidência descrita na literatura, poucos dos GISTs e
leiomiomas microscópicos adquirem dimensão clinicamente relevante
3
.
Apesar de assintomáticos e benignos na sua maioria (apenas 10 a 30% dos GIST
têm comportamento maligno)2, a evolução dos tumores mesenquimatosos digestivos
é muito heterogénea e impossível de definir pré-operatoriamente. As várias
tentativas de predizer o comportamento destas lesões com base nas suas
características ecoendoscópicas, sugerem que aquelas com mais de 3 a 4 cm,
contornos irregulares e heterogéneas (focos hipo ou hiperecóicos) terão, mais
provavelmente, um comportamento agressivo4-6. O exame imunohistoquímico de
amostras colhidas por punção aspirativa com agulha fina é, geralmente,
determinante no diagnóstico das lesões subepiteliais. Mas, actualmente, a sua
utilidade é reduzida na definição do comportamento biológico dos GISTs. A
maioria é difícil de penetrar pela agulha7 e, de acordo com o trabalho de
AkahoshiK et al, a quantidade de tecido colhida foi suficiente em apenas 71%
das lesões com menos de 2 cm8. Além disso, a amostra é, geralmente,
insuficiente para o cálculo do índice mitótico
9-11
.
A história natural dos tumores mesenquimatosos também não está bem
estabelecida, ainda mais a dos pequenos e com características ecográficas ditas
menos agressivas. Por outro lado, por definição de consenso do
NationalInstitute of Health, em 2001, todos os GIST comportam potencial
malignidade
12
.
Este conjunto de factores torna difícil e controversa a decisão terapêutica em
muitos destes doentes, nomeadamente nos tumores sem clara indicação cirúrgica.
Alguns autores sugerem a sua exérese, independentemente das suas
características, visto que mesmo pequenos tumores podem metastizar8,
13-14
. Todavia, esse risco é reduzido na maioria desses casos e a cirurgia seria
excessivamente agressiva e onerosa. Assim, a generalidade dos centros pratica
uma abordagem conservadora, com vigilância das lesões sem características
ecoendoscópicas agressivas ou em doentes em que o risco cirúrgico seja
considerado excessivo
15
. Contudo, a estratégia de vigilância e os seus riscos não estão estabelecidos,
em parte pelo desconhecimento da evolução natural destas lesões não ressecadas.
Assim, os objectivos deste trabalho são avaliar a evolução das lesões do tubo
digestivo superior com características ecoendoscópicas de tumor mesenquimatoso
não sujeitas a exérese e definir quais dessas características se associam a
alteração da lesão.
MATERIAL E MÉTODOS
Analisámos retrospectivamente os relatórios das ecoendoscopias e os processos
clínicos dos doentes com diagnóstico ecoendoscópico de tumor mesenquimatoso do
tubo digestivo superior feito entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2008. Nesse
período, no Hospital Geral de Santo António, diagnosticámos tumor
mesenquimatoso em 141 doentes. Excluímos os 17 doentes com indicação cirúrgica
no momento do diagnóstico e outros 28 que não foram seguidos naquele hospital.
Foram perdidos durante o seguimento (antes do trigésimo mês) 14 doentes.
Realizámos vigilância ecoendoscópica das lesões em 82 doentes por um período
mínimo de 30 meses ou até indicação cirúrgica. A duração média do seguimento
foi de 34,4 ± 11,9 (6 a 60) meses.
As características ecoendoscópicas com possível interesse prognóstico estudadas
foram as seguintes:
Localização: esófago, fundo, corpo e antro gástricos e duodeno;
Dimensão (considerado o maior diâmetro transversal em milímetros);
Camada de dependência: muscular da mucosa, submucosa, muscular própria;
Padrão: homogéneo ou heterogéneo;
Regularidade dos contornos.
Para todos os doentes foi feito o registo das características no momento do
diagnóstico e da sua evolução ao longo do período de seguimento. Considerou-se
significativo o aumento superior a 5 mm no diâmetro das lesões. A alteração das
restantes características ecoendoscópicas foi considerada mediante a avaliação
subjectiva do endoscopista.
ESTRATÉGIA DE VIGILÂNCIA
Como exposto na introdução deste texto, e em consequência de alguns dos motivos
referidos, a decisão terapêutica pode ser controversa não existindo linhas de
orientação bem definidas e consensuais num grande número destes doentes.
De forma geral, a abordagem dos doentes incluídos neste estudo obedeceu ao
esquema da Fig. 1. Aos doentes sintomáticos ou com tumores de dimensões
superiores a 30 mm ou outras características ecoendoscópicas sugestivas de
comportamento agressivo e sem contraindicação cirúrgica foi proposta exérese.
Aqueles com lesões de menores dimensões, aspecto ecoendoscópico favorável ou
com risco cirúrgico excessivo iniciaram programa de vigilância com
ecoendoscopia aos 6 e aos 12 meses após o diagnóstico.
Fig. 1.Diagnóstico de tumor mesenquimatoso. PAAF – Punção aspirativa com
agulha fina.
Perante a manutenção das características ecoendoscópicas, o intervalo dos
exames foi alargado até completar 5 anos de seguimento, altura em que, perante
lesões de características estáveis e favoráveis, a maioria dos doentes terminou
o follow-up. Quando as lesões sofreram aumento significativo das suas dimensões
ou adquiriram outras características sugestivas de agressividade, foi sugerida
exérese cirúrgica. Nos restantes casos, sem clara indicação para ressecção nem
características francamente favoráveis, no momento do diagnóstico ou durante o
seguimento, foi realizada colheita para exame citológico/imunohistoquímico por
punção aspirativa com agulha fina (PAAF).
ANÁLISE ESTATÍSTICA
A análise estatística foi feita com recurso ao programa SPSS, versão 15. Foram
utilizados o teste χ2 e o teste exacto de Fisherpara estudar a relação entre as
variáveis cosideradas e a evolução das lesões. As variáveis significativas nos
testes anteriores foram incluídas em análise multivariada por regressão
logística para identificar as variáveis independentes associadas a lesão
instável. Considerou-se estatisticamente significativo um p < 0,05.
RESULTADOS
Seguimos, com ecoendoscopia, 82 doentes (39 homens e 43 mulheres) com idade
média de 54 ± 13,5 anos (18 a 83).
As características ecoendoscópicas e a localização das lesões estão descritas
no Quadro 1. Setenta, (85,4%), das lesões mantiveram essas características
inalteradas. Dos 12 doentes cujas lesões se alteraram, em 8 essa alteração
ocorreu nos primeiros 12 meses após o diagnóstico e ocorreu à custa do aumento
das dimensões (5 doentes), do ganho ou aumento de heterogeneidade (6 doentes)
ou de irregularidade dos contornos (4 doentes). Oito destes doentes realizaram
punção aspirativa por agulha fina. Seis doentes tiveram indicação para exérese
das suas lesões sendo que apenas 4 foram operados no Hospital Geral de Santo
António.
Quadro 1.Caracterização ecoendoscópica das lesões no momento do diagnóstico.
Os exames histológicos e imunohistoquímicos identificaram um leiomioma no antro
(Fig. 2) e 3 GISTs no corpo, antro e esófago, todos com baixo risco de
malignidade de acordo com os critérios de consenso internacional12, Fig. 3 e
Quadro 2.
Fig. 2.Leiomioma do antro em doente de 67 anos. À esquerda, lesão inicial com
23 mm de diâmetro transversal. À direita, lesão 6 meses após o diagnóstico,
mais heterogénea e com irregularidade dos contornos (doente 4, Quadro 2).
Fig. 3.Representação da evolução dos tumores mesenquimatosos sujeitos a
vigilância ecoendoscópica.
Quadro 2.Caracterização das lesões com alteração das características
ecoendoscópicas.
Associaram-se a alteração das características ecoendoscópicas das lesões a
localização no antro, o padrão heterogéneo e a dimensão superior a 20 mm.
Contrariamente, as lesões do esófago apresentaram menos alterações das suas
características. Por outro lado, a evolução das lesões não se relacionou com a
camada de dependência nem com a irregularidade dos contornos (presente em
apenas 3 doentes). (Quadro 3).
Quadro 3.Correlação das características ecoendoscópicas com a evolução das
lesões.
A análise multivariada mostrou que as variáveis que melhor predizem a evolução
das lesões são a localização no esófago (evolução mais favorável) e o padrão
heterogéneo.
DISCUSSÃO
O acesso generalizado e fácil à endoscopia digestiva aumentou grandemente o
número de diagnósticos de tumores subepiteliais do tubo digestivo,
assintomáticos e benignos na sua maioria. Apesar de a estratégia terapêutica
ser controversa, na maioria dos centros, tem sido preferida uma abordagem
conservadora com vigilância das lesões com menor potencial de comportamento
maligno. A ecoendoscopia desempenha aqui um papel que, actualmente, pode
considerar-se insubstituível na medida em que tem mostrado ser o método com
melhor acuidade na caracterização, no diagnóstico e na determinação da
terapêutica dos tumores digestivos subepiteliais
16-19
. Contudo, a estratégia de vigilância (frequência, duração e mesmo o método de
avaliação) assim como os riscos e a relação custo/benefício não estão
validados. Como referido na introdução deste texto, talvez a principal causa
desta indefinição seja o pouco conhecimento da evolução natural destas lesões
não ressecadas. Neste contexto, algumas séries foram publicadas nos últimos
anos, a maior com 70 doentes e com períodos médios de seguimento entre 17,3 e
37 meses
20-25
. A conclusão comum a todos os trabalhos é que uma minoria (entre 0 e 20%) das
lesões sofre alteração das suas características. Nesse aspecto, os nossos
números (alteração das características iniciais em 14,6% das lesões) são muito
próximos dos resultados dos 3 trabalhos mais recentes: Ka-Holoket alreportaram
13%22, GillK Re colaboradores 13,7%20 e 10,2% no estudo de
Bruno M
21. Na outra série de 2008, de LachterJ, essa percentagem foi de 20%, mas foram
apenas incluídos GIST
23
enquanto no trabalho com 100% de lesões inalteradas foram seguidas apenas as
lesões com menos de 20 mm
25
A maioria (8 de 12) das alterações ecoendoscópicas ocorreu nos primeiros 12
meses após o diagnóstico. Atendendo a este facto e sabendo que a maioria das
lesões mantém as suas características e tem um comportamento benigno, é
questionável a custo-efectividade dum follow-uppor tempo indefinido. Admitimos
que, perante tumores de características favoráveis e estáveis, um seguimento de
5 anos pode ser adequado.
Outro dado de relevo nas seis séries referidas20-25 é que dessa minoria de
lesões que sofrem alterações e que são ressecadas, somente um reduzido número
constitui lesões com alto risco de comportamento maligno. No nosso trabalho,
todas as lesões removidas corresponderam a lesões com baixo risco (3 GIST) ou
sem risco de malignidade (1 leiomioma). A alteração das características
ecoendoscópicas não é sinónimo de comportamento maligno. Atendendo ao número de
exames necessário para tão raros casos de lesões agressivas e, por vezes, à
baixa adesão ao exame, Ka-HoLoke colaboradores põem em causa a custo-
efectividade da ecoendoscopia na vigilância destas lesões22. Outros métodos de
seguimento foram avaliados, nomeadamente a ecografia transabdominal, menos
onerosa e invasiva. Mas a sensibilidade deste exame na detecção de lesões
subepiteliais com menos de 3 cm é muito reduzida
26-28
.
No sentido de diferenciar a vigilância, ou mesmo a terapêutica, para cada caso,
optimizando os recursos e os custos, pretendemos, no nosso trabalho, além de
descrever a evolução natural dos tumores mesenquimatosos, identificar as
características ecoendoscópicas basais que se associaram a um comportamento
menos favorável. As lesões do antro, as heterogéneas e aquelas com mais de 20
mm sofreram mais frequentemente alteração das suas características sendo a
heterogeneidade o principal determinante dessa evolução. Pelo contrário, a
localização no esófago associou-se à manutenção das características
ecoendoscópicas. A maior heterogeneidade e dimensões têm sido associadas a
maior agressividade em vários trabalhos que incluíram tumores do estroma
operados4-6, mas não encontramos dados publicados relativamente a lesões de
menores dimensões (< 3 cm) não sujeitas a exérese. Outros estudos referem a
relação entre o prognóstico e a localização
29-31
independentemente da dimensão e índice mitótico do tumor e da idade do doente
30
, sugerindo a maior agressividade das lesões do intestino delgado em oposição
às esofágicas. Uma explicação possível reside no facto de a maioria dos tumores
do esófago serem leiomiomas benignos. Contudo, também é referido o
comportamento menos agressivo dos GISTs esofágicos30. Tendo em conta estes e os
nossos resultados, a potencial malignidade de todos os GISTs, a impossibilidade
de predizer com rigor o seu comportamento biológico e as indefinições em torno
da sua vigilância, pensamos ser preferível, nos casos em que o risco cirúrgico
o não contra-indique, a exérese dos tumores mesenquimatosos do antro,
heterogéneos e com mais de 20 mm relativamente a uma vigilância prolongada,
indefinida e onerosa que, regra geral, não evita alguma ansiedade associada.
Por outro lado, pode ser razoável alargar o intervalo dos exames no seguimento
das lesões homogéneas e pequenas do esófago.
Acreditamos que o reduzido número de lesões do duodeno na nossa série poderá
justificar a ausência de associação desta localização com o tipo de
comportamento. Essa reduzida dimensão da amostra, apesar de ser a maior série
descrita neste contexto, constitui a grande limitação do nosso trabalho,
retirando significância estatística a alguns resultados. De facto, a baixa
incidência dos tumores mesenquimatosos digestivos justifica, no futuro, a
realização de estudos multicêntricos em maior escala que permitam melhor
sustentação dos resultados. A par disso, o desenvolvimento da análise molecular
das mutações dos genes c-kit, PDGFRA e p53 ou de marcadores de proliferação
celular como o Ki-67, em material obtido por punção aspirativa por agulha fina,
poderá facilitar a decisão clínica num futuro próximo
32-33
.
Concluímos, dos nossos resultados, que a maioria das lesões manteve, durante o
período de seguimento, as suas características ecoendoscópicas inalteradas,
nomeadamente as localizadas no esófago. As lesões do antro, heterogéneas e com
mais de 20 mm apresentaram um comportamento mais agressivo. Em face disso, da
indefinição da estratégia e duração da sua vigilância e da potencial
malignidade de todos os GISTs, os tumores mesenquimatosos com estas
características deverão ser considerados para exérese ou merecer vigilância
mais estreita principalmente nos primeiros 12 meses.