Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de ácido acetilsalicílico e de
anti-inflamatórios não-esteróides em Portugal Resultados do estudo PARAINES
Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de ácido acetilsalicílico e de
anti-inflamatórios não-esteróides em Portugal
Resultados do estudo PARAINES
INTRODUÇÃO
O ácido acetilsalicílico (AAS) e os anti-inflamatórios não esteróides (AINE)
encontram-se entre os fármacos mais prescritos em todo o mundo. Em Portugal,
cerca de 800 000 pessoas tomam, diariamente, AINE1. Estes fármacos representam
mesmo 7,6% do total da despesa com medicamentos no nosso país, só superados
pelos psicofármacos e hipotensores2.
Do consumo de AINE resulta o risco acrescido de úlcera péptica (UP) e erosões
gastro-duodenais, que têm como complicações principais a hemorragia digestiva
alta e a morte. Estima-se que o risco de complicações gastrintestinais
associado ao consumo de AINE seja 4 a 5 vezes superior ao da população que não
consome estes fármacos e ainda mais elevado em idosos e/ou indivíduos com
antecedentes de UP3. O consumo de AINE foi encontrado em 56% das UP sangrantes
numa série dinamarquesa recente, contra 37% 10 anos antes4. Nos Estados Unidos
estimam-se em 100 000 hospitalizações/ano e 16 500 mortes/ano por UP sangrante
associada a AINE5. Num estudo espanhol, recente, estimou-se em 15/ano o número
de mortes por 100 000 consumidores de AINE (todos os eventos
gastrintestinais)6, embora alguns dados do Reino Unido e dos Estados Unidos,
tenham demonstrado valores ainda mais elevados, de 25 e 44 mortes/ano por 100
000 consumidores de AINE7-8.
O desenvolvimento de estratégias para minimizar estes efeitos adversos dos
AINE, actualmente, incluem a sua indicação criteriosa em função do risco
individual, a erradicação do Helicobacter pylori, o uso de agentes com melhor
perfil de segurança (AINE mais selectivos na inibição da COX-2 e coxibes) e a
protecção gástrica, preferencialmente com recurso aos inibidores da bomba de
protões (IBP)3, 9.
Existem poucos estudos em Portugal sobre a expressão e consequências das
complicações gastrintestinais associadas ao consumo de AINE, bem como sobre a
profilaxia e tratamento destas complicações. Neste estudo retrospectivo, de
âmbito nacional, multicêntrico, pretendeu-se rever os processos dos doentes
admitidos por hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS e AINE
durante o ano de 2006, procurando contribuir para conhecer a dimensão e
gravidade deste problema no nosso país.
MATERIAL E MÉTODOS
O estudo PARAINES foi um estudo retrospectivo que visou a recolha de dados dos
processos clínicos de internamento dos doentes admitidos por hemorragia
digestiva alta associada ao consumo de AAS/AINE em 9 centros hospitalares do
país no ano de 2006.
Usaram-se os registos administrativos hospitalares para identificação desses
doentes. Não foram consultados os registos do bloco operatório nem certidões de
óbito. Do total de processos, fez-se uma análise mais detalhada, de acordo com
o protocolo, daqueles em que a hemorragia foi atribuída ao consumo de AINE/AAS.
Recolheram-se os dados demográficos dos doentes, os antecedentes pessoais
relevantes para a doença actual, nomeadamente a história detalhada ' tanto
quanto possível ' do consumo recente de fármacos potencialmente ulcerogénicos,
e a descrição da evolução do episódio de hemorragia digestiva alta e suas
consequências (incluindo morte intra-hospitalar).
A população de referência dos centros hospitalares foi-nos dada pelos
investigadores principais e/ou confirmada por consulta dos sítios oficiais dos
centros hospitalares e Ministério da Saúde na internet, embora a assistência
possa não ser exclusiva.
Fez-se uma análise estatística descritiva dos dados obtidos.
RESULTADOS
Os 9 centros hospitalares relataram 291 admissões por hemorragia digestiva alta
associada ao consumo de AAS/AINE durante o ano de 2006, relativas a 280
doentes. Estas admissões representaram 20% do total de internamentos por
hemorragia digestiva alta (dados de 6 centros).
Atendendo à população das áreas de referência dos 9 centros hospitalares (2,493
milhões), a incidência anual de hemorragia digestiva alta associada ao consumo
de AAS/AINE foi de 11,6 por 100 000 habitantes (ou 145,5 por 100 000
consumidores de AAS/AINE, considerando 800 000 consumidores de AINEs em
Portugal1. Assumiu-se que os dados eram relativos a todos os doentes admitidos
com este diagnóstico no hospital.
Fizeram parte da amostra 64,4% doentes do sexo masculino. A média de idades foi
de 71 ± 16 anos [16 - 98 anos]. Quanto à presença de factores de risco de
complicações gastro-duodenais associadas aos AINE, 68,7% dos doentes tinha mais
de 65 anos e em 24,1% dos casos havia história prévia de úlcera péptica (61% na
forma de hemorragia digestiva alta).
A generalidade dos doentes apresentava co-morbilidade importante, sobretudo
hipertensão arterial e outras doenças cardio e cerebro-vasculares e diabetes
mellitus. A profilaxia cardiovascular e a patologia osteo-degenerativa foram as
causas principais da administração de AINE e anti-agregantes plaquetários (AAP)
(Quadro I). Quinze por cento da amostra fazia protecção gástrica, em ¼ dos
casos com recurso a anti-ácido, sucralfato e/ou ranitidina. A percentagem
estimada de doentes de risco (idade superior a 65 anos e/ou história de UP) que
dizia fazer protecção gástrica com um IBP foi de 15%.
Quadro I. AAS/AINE e outros medicamentos potencialmente ulcerogénicos
relatados.
O episódio de hemorragia digestiva alta que determinou o internamento não foi
precedido de queixas dispépticas em 68,4% dos casos e foi acompanhado de
instabilidade hemodinâmica em 43,1% dos casos. A hemoglobina média na admissão
foi de 9,2 ± 2,6 g/dL [4,1 - 19,2 g/dL] e 62,7% dos doentes necessitaram de
suporte transfusional, recebendo em média 3,1 ± 2,7 unidades de concentrado
eritrocitário [1 - 22].
Dados os critérios de selecção, praticamente todos os doentes desta amostra
foram submetidos a endoscopia digestiva alta 14,4 ± 23,4 horas [0 - 216] após a
admissão hospitalar. As principais lesões endoscópicas encontradas foram a
úlcera péptica (n = 237) e a gastropatia erosivo-hemorrágica (n = 83). As
úlceras foram duodenais (46%), gástricas (42,2%) ou presentes em ambas as
localizações (11,8%). A Fig. 1 mostra a distribuição das úlceras segundo a
classificação de Forrest. A pesquisa de Helicobacter pylorifoi realizada em
15,3% dos casos, a maioria por biópsia gástrica (19/44 positivos; 43%).
Fig. 1. Distribuição das úlceras segundo a classificação de Forrest(n=187).
As úlceras passíveis de tratamento endoscópico (ForrestI, IIa e IIb),
representaram metade das úlceras classificadas nesta amostra (51%; 96 em 187),
sensivelmente a mesma percentagem em que foi feita a hemostase endoscópica no
conjunto de todas as úlceras pépticas registadas (121 em 237). A terapêutica
endoscópica utilizada foi a injectável (na maioria adrenalina 1:10 000 e um
esclerosante), em 77,2% dos casos, a termocoagulação (e árgon plasma), em 7,9%,
ambas as modalidades, em 9,6%, e os clipshemostáticos, em 5,3%.
A terapêutica concomitante com IBP (quase sempre intravenosa (IV), pelo menos
no início do internamento), foi usada em 244 doentes, em geral em bólus mas com
recurso a perfusão contínua em altas doses em 40 casos (33% dos doentes
submetidos a hemostase endoscópica).
Ocorreram 9 falências terapêuticas (até às 24 horas) e 15 recidivas, a maior
parte nos 2º e 3º dias de internamento. Fez-se novo tratamento endoscópico na
maioria dos casos: apenas 2 doentes que recidivaram foram enviados para
cirurgia antes da segunda endoscopia. No total da amostra foram enviados para
cirurgia 10 doentes (3,6%). A demora média dos internamentos foi de 8,4 ± 7,8
dias [1 - 77].
Faleceram, durante o internamento hospitalar, 10 doentes desta amostra (3,6%).
Como a população de referência dos 9 centros estudados constitui cerca de 25%
da população portuguesa (e dos consumidores de AINE), a mortalidade por
hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS/AINE em Portugal parece
ter uma incidência de 5 por cada 100 000 consumidores de AINE/ano.
DISCUSSÃO
Os nossos resultados revelam incidências de internamento e mortalidade por
hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS/AINE inferiores aos
relatados no mundo ocidental; muito baixo número de doentes de risco a fazer
protecção gástrica e algum espaço para optimizar a terapêutica da hemorragia
digestiva alta por UP, de acordo com a evidência actual.
1-INCIDÊNCIAS DE INTERNAMENTO E DE MORTALIDADE POR UP SANGRANTE
A hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS/AINE em Portugal, de
acordo com a nossa série, apresenta uma incidência e mortalidade estimadas por
número de consumidores/ano inferiores às relatadas noutras séries: a título de
exemplo, a mortalidade na nossa amostra é 3 vezes inferior à relatada em
Espanha6 (todos os eventos gastrintestinais relacionados com AINE).
É difícil explicar estas baixas incidência e mortalidade relativas dado o
crescimento da população idosa com múltiplas patologias, o elevado consumo de
AAS/AINE no nosso país (o dobro da União Europeia; comunicação pessoal da IMS,
2007) e a elevada prevalência da infecção pelo Helicobacter pylori.
Mais, encontrámos na nossa série um maior número de UP com estigmas de alto
risco e uma baixa percentagem de doentes de risco a fazer protecção gástrica.
Algumas das limitações deste estudo podem dever-se à análise, unicamente, da
mortalidade hospitalar. Por outro lado, sendo um estudo retrospectivo e muito
dependente da qualidade dos dados registados nos processos clínicos e da
codificação hospitalar, há uma probabilidade real de subnotificação. Estes
resultados deverão ser confirmados por estudos prospectivos.
2-GASTROPROTECÇÃO EM DOENTES DE RISCO
O risco de UP, e hemorragia digestiva, associado ao consumo de AAS/AINE está
hoje perfeitamente estabelecido. Este risco é reduzido pela administração de
inibidores selectivos da COX-2 (os coxibes) e/ou pela protecção gástrica com
misoprostol ou IBP3, 11. A preocupação com os efeitos adversos cardiovasculares
dos coxibes faz com que a avaliação do risco cardiovascular do doente tome
parte da decisão de os administrar, tal como a redução da sua vantagem em
doentes a fazer aspirina. Quanto à coterapia, o misoprostol é pior tolerado que
os IBP e recomendações recentes sugerem mesmo que os IBP são a melhor forma de
protecção gástrica9. Quando indicado, a melhor estratégia demonstrou mesmo ser
a associação de um coxibe a um IBP em doentes de alto risco gastrintestinal11-
13.
Na nossa série predominaram doentes sob AAS, em doses iguais ou superiores a
100 mg/d, manifestamente gastrotóxicas e obrigando a protecção gástrica com IBP
nos doentes de risco9. Os IBP têm demonstrado reduzir significativamente o
risco de UP nos doentes sob AAS14-15 e a associação do esomeprazol à AAS
revelou-se mais eficaz que a substituição da AAS pelo clopidogrel em doentes de
risco16-17.
Na nossa série, apenas 15% dos doentes de risco (idade superior a 65 anos e/ou
história de UP) diziam fazer protecção gástrica com IBP. Esta baixa percentagem
corresponde à que vem sendo descrita em outras séries recentes, com valores
entre 10 e 17% (em geral em doentes com 1 factor de risco)
10,18-20
, mais elevada quando se estudam os doentes com 2 ou mais factores de risco,
mas ainda assim inferior a 50%20-21. Num inquérito aos médicos de Medicina
Geral e Familiar portugueses, verifica-se que existe conhecimento generalizado
da necessidade de protecção gástrica em certos doentes sob AAS/AINE mas a
efectiva protecção gástrica dos doentes de risco ocorre (quando muito) em 40%
dos casos22. Deve reforçar-se a mensagem que a relação custo-eficácia da
protecção gástrica nos doentes de risco é favorável e dedicar especial atenção
à auto-medicação com AAS/AINE nos doentes de risco e, sobretudo, à não adesão à
terapêutica profilática, frequentemente por motivos económicos. Mesmo se a
mortalidade nesta amostra não foi muito importante, pode especular-se que
muitos dos 85% dos doentes de risco e sem protecção gástrica podiam não ter
sequer chegado a ter uma hemorragia digestiva alta caso estivessem a fazer
profilaxia com um IBP.
Um outro factor de risco que interessa eliminar, sobretudo nos doentes com
indicação para fazer AINE cronicamente e que os começam a tomar, é a
erradicação do Helicobacter pylori. Na nossa série ele foi raramente testado na
endoscopia inicial. Este facto tem sido descrito em outras séries18 e, em
parte, pode dever-se à demonstrada baixa sensibilidade da biopsia no
diagnóstico desta infecção no contexto da UP sangrante
23
. Pode acontecer, no entanto, que o diagnóstico seja procurado mais tarde ou
que, em alguns casos, o Helicobacter pyloriseja tratado empíricamente ou com
base em serologias positivas em doentes naïve.
3-TERAPÊUTICA ENDOSCÓPICA E IBP IV EM ALTAS DOSES
A prevalência das diferentes classes de Forrestda UP sangrante na nossa série
revela maior prevalência de úlceras com estigmas de alto risco de hemorragia do
que aquela que tem sido descrita na literatura24. Se admitirmos que as 50 UP
não classificadas são maioritariamente ForrestIII, os nossos resultados
aproximam-se mais dos da literatura mas mesmo assim a prevalência das UP
ForrestI e IIa mantém-se o dobro da relatada por Lau. Uma das razões da
diferença, além da étnica, pode residir no facto que Lauincluíu UP em geral e
não apenas associadas aos AINE.
As UP com estigmas de alto risco, na nossa série, foram em geral todas tratadas
endoscópicamente e de forma relativamente rápida.
Mesmo as UP Forrest IIb, relativamente às quais o tratamento endoscópico,
sobretudo nesta era do uso dos IBP IV em altas doses, parece mais
controverso25. A terapêutica injectável, em geral dupla, foi a preferida,
possivelmente por ser a mais prática e barata e onde a experiência é maior mas
também porque se sabe que a terapêutica dupla é mais eficaz que a injecção de
adrenalina apenas, independentemente da segunda técnica usada26. Duas outras
meta-análises, no entanto, sugerem que a terapêutica térmica e mecânica,
isoladamente, poderão ser mais eficazes27-28.
Os IBP, em particular IV em altas doses (bólus 80 mg + perfusão contínua 8 mg/
h, por 72h), como complemento da hemostase endoscópica no tratamento da UP
sangrante, associaram-se a diminuição da recidiva hemorrágica, número de
cirurgias e mesmo da mortalidade em doentes de alto risco29-30.
A utilização das altas doses é recomendada desde 2002/200331-32, sobretudo na
sequência dos resultados do estudo de Lau33. A sustentar a eficácia deste
regime, o esomeprazol demonstrou mesmo, recentemente, e pela primeira vez numa
população caucasiana, uma redução significativa da recidiva hemorrágica de 43%
no final do 3º dia de perfusão IV34.
Na nossa série, os IBP IV foram usados por regra mas, em perfusão, em apenas 1/
3 dos doentes potencialmente elegíveis.
Começam a surgir agora estudos comparativos com regimes alternativos de IBP no
tratamento da UP sangrante, mas sabe-se que a perfusão de IBP IV em altas doses
como complemento da hemostase endoscópica é a estratégia terapêutica melhor
documentada no momento.
CONCLUSÕES
Os nossos resultados permitem concluir que a incidência de hemorragia digestiva
alta e a mortalidade associadas ao consumo de AAS/AINE em Portugal são
inferiores aos restantes países ocidentais, embora isto se possa dever a uma
limitação do estudo pelo facto de ser retrospectivo.
Apenas 15% dos doentes de risco gastrintestinal estão a fazer protecção
gástrica com IBP. A evidência científica actual e as recomendações existentes
demonstram que a há uma favorável relação custo-eficácia na utilização da
protecção gástrica nestes doentes, mesmo nos que fazem AAS em baixas doses.
Por fim, as indicações e o tratamento endoscópico são, à luz das recomendações
actuais, correcta e rapidamente aplicados embora ainda possa haver espaço para
optimizar a hemostase endoscópica, com maior recurso aos meios térmicos e
mecânicos, e se possa inibir mais eficazmente a secreção ácida em complemento
da hemostase endoscópica.