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EuPTCVHe0872-81782011000300006

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National varietyEu
Year2011
SourceScielo

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Um Caso Raro de Peritonite Fúngica Espontânea em Doente com Cirrose Hepática Não-Hospitalizado

INTRODUÇÃO A peritonite espontânea é uma complicação grave e frequente da cirrose hepática avançada, com uma prevalência de 10 a 30% nos doentes hospitalizados com cirrose e ascite 1. É, habitualmente, uma infecção monobacteriana, sendo os bacilos Gram negativos os agentes mais frequentes1. Por sua vez, o isolamento de fungos é muito raro. Num estudo retrospectivo de 233 casos de peritonite espontânea, os fungos corresponderam a 2,7% dos agentes isolados2. ACandida albicans, um fungo comensal da cavidade oral, intestino, vagina e pele é o agente mais frequente, podendo apresentar patogenicidade oportunista em doentes com cirrose hepática3.

O isolamento de fungos no líquidoascítico encontra-se, classicamente, associado a casos deperitonite secundária4, sendo que, na ausência de diálise peritoneal, cirurgia abdominal recente, ou factores de risco para candidíase disseminada, favorece o diagnóstico de perfuração gastrointestinal3. Por outro lado, a cirrose hepática (ao contrário da infecçãoVIH) foi identificada como um factor de risco independente para peritonite por Cryptococcus (um fungo ubiquitário do solo)5,6 . São apontados como factores predisponentes para peritonite fúngica espontânea nos doentes cirróticos, a insuficiência hepática grave (Child-Pugh C), o internamento hospitalar e a realização de antibioterapia de largo espectro6,7. Em doentes com cirrose hepática não hospitalizados, a peritonite fúngica espontânea constitui uma entidade extraordinariamente rara, com um número limitado de casos descritos na literatura7-13. O habitual baixo índice de suspeição clínica desta entidade, associado às dificuldades no isolamento de fungos nos exames culturais (que, na generalidade, apresentam um crescimento lento), condicionam o atraso do seu diagnóstico e contribuem para a elevada mortalidade associada.

CASO CLÍNICO Uma mulher de 64 anos, empregada de limpeza, que vivia sozinha num ambiente higieno-sanitário precário, com história de consumo excessivo de álcool (superior a 150 g/dia), recorreu ao SU na sequência de um quadro clínico, de agravamento insidioso, de aumento do volume abdominal, icterícia, astenia e anorexia, com cerca de 1 mês de evolução. Havia ainda referência ao aparecimento de dor abdominal moderada, persistente, mais intensa nos flancos, sem factores de agravamento ou alívio, acompanhada de agravamento da astenia e mal-estar geral, nas 48 a 72 horas prévias ao internamento. Manteve até ao momento do internamento consumo excessivo de álcool. Negava a ocorrência de febre, alterações do trânsito intestinal ou das características das fezes. Não apresentava seguimento médico regular ou registo de internamentos anteriores.

Desconhece-se a toma de medicamentos, nomeadamente antibióticos.

Objectivamente, encontrava-se hipotensa (PA 88/61mmHg), taquicárdica, apirética, pálida, desidratada,ictérica, com hálito etílico, sintomas de encefalopatia hepática grau II e vários estigmas de doença hepática crónica. O abdómen eragloboso, com circulação colateral visível, facilmentedepressível, com dor moderada à palpação profunda (difusa), sem dor à descompressão, com timpanismo central emacicez nos flancos, sinal de onda líquida positivo e ruídos hidro-aéreos mantidos. Não apresentava alterações no toque rectal, tendo fezes de características normais. Analiticamente, apresentava: anemia macrocítica (hemoglobina 8,8 g/dL, VGM 112 fl), leucocitose (19.300 x 106/L) com neutrofília (91,2%), trombocitopenia (91.000 x 106/L), PCR elevada (15,2 mg/dL), prolongamento do tempo deprotrombina (26,2/11,0 s), hiperbilirrubinémia (9,2 mg/dL), hipoalbuminémia (2,0 mg/dL) e aumento das aminotransferases (AST 126 UI/L, ALT 29 UI/L). Na ecografia, salientavam-se aspectos sugestivos de cirrose hepática (fígado dismórfico, com atrofia relativa do lobo hepático direito e contornos bosselados), esplenomegália homogénea e ascite em quantidade moderada, sem alterações da vesícula, vias biliares, pâncreas, baço e rins. Radiograficamente (incidências AP e abdómen tangencial), apresentava pequeno derrame pleural bilateral, sem evidência de pneumoperitoneu. Foi realizada paracentese, com drenagem de líquido turvo, purulento, cuja análise revelou: 16.900 leucócitos/mm3 (69% neutrófilos), LDH 1740 UI/L, proteínas 3,3 g/dL, glicose 1,0 mg/dL, amilase e bilirrubina normais. O exame directo (coloração deGram) foi negativo.

Dada a evidência de peritonite complicada de choque séptico, em doente com cirrose e insuficiência hepática grave (com provável hepatite alcoólica sobreposta), a doente foi admitida na Unidade de Cuidados Intensivos de Gastrenterologia e Hepatologia. Por suspeita de peritonite secundária (com base na análise bioquímica do líquido ascítico)14, foi iniciada antibioterapia com meropenem (após colheitas para exames culturais). No entanto, a instabilidadehemodinâmica não permitiu a realização imediata de tomografia computadorizada (TC), iniciando-se reposição volémica e suporte aminérgico. As primeiras horas de internamento foram complicadas de falência respiratória (com insuficiência respiratória global) e renal (anúrica), comacidémia mista grave, pelo que foi iniciada ventilação mecânica invasiva e, posteriormente, hemodiafiltração veno-venosa contínua. Apesar de conseguida estabilização hemodinâmica (sob perfusão decatecolaminas), manteve-se dependente de elevadas concentrações de oxigénio (Fi O2 100%), com aparecimento de padrão radiológico de síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS). Analiticamente, manteve parâmetros inflamatórios elevados e alterações diagnósticas de coagulação intravascular disseminada. Dada a gravidade do quadro clínico, com falência multiorgânica ( sobantibioterapia de largo espectro), não foi repetidaparacentese às 48 horas. Registouse refractariedade do choque a doses sucessivamente mais elevadas de catecolaminas, tendo-se verificado o óbito ao dia de internamento.

Foi isolada em cultura de líquidoascítico (postmortem, 6 dias após a admissão) Candida albicans. Não foram isolados outros microrganismos (aeróbios/ anaeróbios). Aurocultura e hemoculturas foram negativas. A serologia VIH e o estudo etiológico para despiste de outras causas de doença hepática crónica (incluindo hepatites víricas) foram negativos. Foi realizada colheita percutânea de fragmento hepático postmortem, onde se observaram fragmentos de material fibrino-granulocitário com esporos e hifas de um fungo tipo Cândida.

Foi realizada autópsia (primariamente direccionada para a exclusão de uma potencial fonte de infecção peritoneal), que revelou aspectos macroscópicos de cirrose micronodular, com ascite não loculada (1800 cc), baço séptico, congestão e edema pulmonar, não tendo evidência de perfuração do tubo digestivo (parede gástrica e intestinal sem sinais de isquémia ou perfuração) ou outra causa identificável de peritonite secundária.

DISCUSSÃO A peritonite fúngica é uma entidade rara na prática clínica, reconhecendo-se como grupos de maior incidência os doentes em diálise peritoneal, os doentes com perfuração (primária ou iatrogénica) do tubo digestivo e os doentes com factores de risco para candidíase disseminada (doentes imunosuprimidos, habitualmente sob antibioterapia de largo espectro)4,7.

Se, por um lado, o isolamento de espécies deCandida no líquido ascítico aumenta a suspeita de peritonite secundária (por perfuração gastrointestinal)4, por outro lado, a presença de cirrose hepática avançada com ascite constituí o único factor de risco independente identificado para peritonite fúngica espontânea, em detrimento de outras causas de imunosupressão (nomeadamente, a infecção VIH)5,6. Aperitonite fúngica espontânea encontra-se, então, definida na literatura como uma complicação rara da cirrose com insuficiência hepática grave, na presença de elevados índices de gravidade, muitas vezes no contexto deantibioterapia prévia6,7. A Candida albicans constitui o agente etiológico mais frequente3, estando também descritas séries de casos de peritonite espontânea por Cryptococcus neoformans5,12 e casos clínicos isolados por Candida glabrata,Candida tropicalis eCandida parapsilosis7,8.

A exemplo do caso apresentado, as manifestações clínicas da peritonite fúngica espontânea são inespecíficas, surgindo no contexto de descompensação grave da cirrose hepática, sendo clinicamente indistinguível da peritonite bacteriana espontânea (ou de causa secundária) em doentes cirróticos6,7. Dado o habitual baixo índice de suspeição clínica, em conjugação com a maior dificuldade no isolamento de fungos nos meios de cultura (devido ao seu crescimento lento), cuja pesquisa não é realizada por rotina na maioria dos centros, a peritonite fúngica é habitualmentesubdiagnosticada ou de diagnóstico tardio6'8. No presente caso, o perfil bioquímico do líquido ascítico favorecia o diagnóstico de peritonite secundária14. Foi demonstrado prospectivamente14 que a presença de pelo menos 2 dos 3 critérios classicamente propostos para peritonite secundária (proteínas no líquido ascítico > 1 g/dL, glicose < 50 mg/dL, LDH > limite superior do normal no soro) é altamente sensível, mas pouco específico para peritonite secundária (especificidade, 45%), podendo estas alterações estar presentes naperitonite espontânea de diagnóstico tardio. No entanto, na sua presença torna-se necessário excluir uma causa secundária de peritonite14.

Neste caso, a autópsia excluiu peritonite perfurada e peritonite secundária não perfurante (dada a ausência de infecção intra-abdominal loculada). A presença de contagens muito elevadas de leucócitos no líquido ascítico é, igualmente, inespecífica em relação à etiologia da peritonite15, embora contagens mais elevadas sejam mais frequentes na peritonite secundária15. A punção aspirativa de líquido ascítico turvo, acastanhado ou purulento, com concontagens muito elevadas de leucócitos (de predomínio polimorfonuclear), encontra-se descrita em outros casos bem documentados de peritonite fúngica espontânea7,9,10. Cure et al 7, descreveu um caso de peritonite espontânea porCandida albicans numa doente com cirrose criptogénica, com uma contagem inicial de 20.000 leucócitos no líquido ascítico (95% dos quaispolimorfonucleados), tratada eficazmente comcaspofungina (50 mg/dia).

Considera-se que a hipótese de peritonite fúngica espontânea deve ser valorizada na ausência de uma resposta clínica e analítica à antibioterapia recomendada para aperitonite bacteriana espontânea, às 48 horas, e em que as culturas de líquido ascítico permanecem negativas10. Nestas condições e, particularmente, na presença de outros factores de risco para candidíase disseminada (como a realização deantibioterapia prévia), justifica-se o início de terapêutica anti-fúngica empírica9,10, bem como a pesquisa do antigénio criptocócico no soro e no líquido ascítico5. Salienta-se, no entanto, que não existem normas de consenso estabelecidas para o início da terapêutica anti- fúngica na cirrose hepática.

A terapêutica, no caso de suspeita ou confirmação de peritonite fúngica espontânea, também não está definida. A anfotericina B é o antibiótico de primeira linha na peritonite secundária porCandida albicans10. No entanto, o fluconazol (400 mg/dia)9 e, também, a caspofungina (70 mg/dose inicial e 35 mg/ dia, na insuficiência hepática)7 demonstraram ser eficazes, sendo alternativas empiricamente aceitáveis, dado que aCandida albicans constitui o agente mais frequente. Na peritonite criptocócica, a anfontericina B é o antibiótico mais usado6. Neste caso clínico, perante a suspeita clínica de peritonite secundária, foi iniciada monoterapia commeropenem, cuja eficácia foi demonstrada prospectivamente nas infecções intra-abdominais complicadas de peritonite16.

No caso apresentado, o baixo índice de suspeição (pela raridade da peritonite fúngica einespecificidade das manifestações), a gravidade da situação clínica subjacente (acuteon chronic liver failure, por hepatite alcoólica sobreposta) e o atraso no isolamento cultural, resultou na falência da terapêutica e morte.

Pela presença habitual dos factores mencionados, a taxa de mortalidade daperitonite fúngica espontânea reportada na literatura é muito elevada. Numa revisão recente de 33 casos de peritonite criptocócica em doentes cirróticos17, a taxa de mortalidade intra-hospitalar foi de 81,0%, com umasobrevida média de 13 dias. Num estudo retrospectivounicêntrico de 10 doentes com cirrose hepática eperitonite espontânea por espécies de Cândida3, a mortalidade intrahospitalar foi de 50% aos 6 meses de 90% e ao 1 ano de 100%. O maior índice de suspeição clínica desta entidade poderá diminuir a sua mortalidade a curto prazo. Neste caso, o recurso ao hospital numa fase tardia de evolução da doença, numa mulher com apoio social precário, foi determinante para a evolução desfavorável.


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