Correlação dos achados clínicos com os parâmetros funcionais em idosos
portadores de asma
Introdução
A asma é uma doença inflamatória crónica, caracterizada por hiperresponsividade
das vias aéreas inferiores e por limitação variável ao fluxo aéreo, reversível
espontaneamente ou com tratamento, manifestando-se clinicamente por episódios
recorrentes de sibilância, dispneia, aperto no peito e tosse, particularmente à
noite e pela manhã ao despertar. Resulta de uma interacção entre genética,
exposição ambiental a alergénios e irritantes, além de outros factores
específicos que levam ao desenvolvimento e à manutenção dos sintomas1,2.
A prevalência da asma no idoso é semelhante à dos grupos jovem e de meia idade,
oscilando entre 6 e 10%
3
. Entretanto, a doença é frequentemente subdiagnosticada e subtratada no idoso.
Isto pode dever-se a critérios diagnósticos inadequados ou ao pouco relato dos
sintomas pelo doente4. A classificação quanto à gravidade, de reconhecimento
internacional e mais actualizada, é a do documento Global Initiative for Asthma
(GINA), cujos critérios se baseiam na frequência e na intensidade dos sintomas,
na necessidade de uso de broncodilatadores de resgate e nos seguintes
parâmetros funcionais: volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) e
pico de fluxo expiratório (PFE)
5
.
Apenas um pequeno número de trabalhos, com poucos doentes, relataram as
características de doentes idosos com asma
6-8
. Um estudo, comparando os doentes mais jovens com os maiores de 65 anos,
concluiu que os mais velhos, particularmente os com longo período de doença, se
queixam menos sobre os sintomas de asma
8
. Outro estudo mostrou que a percepção de dispneia é prejudicada no idoso,
facto que pode estar relacionado com a maior mortalidade por asma nesta faixa
etária9.
Apesar de as directrizes sobre asma definirem o idoso como factor de risco para
má percepção de sintomas, gravidade e mortalidade pela doença, existem poucos
trabalhos onde a relação entre função respiratória e asma seja analisada
especificamente na faixa etária mais avançada4,10,
11
. Enright e colaboradores mostraram que doentes idosos, particularmente aqueles
com doença de longa evolução, têm obstrução mais grave do que doentes com
doença recente11.
Tendo em conta o pequeno número de publicações sobre função respiratória em
idosos com asma e o grande potencial de complicações nesta faixa etária, os
objectivos deste estudo foram: 1) avaliar o percentual de dissociação entre a
classificação clínica e a funcional, ambas determinadas pelo GINA;2)
caracterizar os subgrupos de maior risco para esta dissociação.
Metodologia
Doentes
Estudo transversal, onde foram avaliados 41 doentes idosos oriundos do
ambulatório de asma do Serviço de Pneumologia e do Ambulatório de alergia e
imunologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), pertencente à
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estes doentes foram
seleccionados de forma aleatória, de acordo com a sua entrada na consulta
agendada, e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido,
previamente aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da nossa instituição.
Considerando os objectivos do trabalho, foram adoptados como critérios de
inclusão: 1) diagnóstico de asma previamente estabelecido por parâmetros
clínicos e funcionais; 2) idade igual ou superior a 60 anos
12
.
Métodos
Avaliação clínica
Após a elegibilidade para o estudo, responderam, através de um investigador, a
um questionário com perguntas relativas à história clínica, ao uso de
medicamentos, à presença de comorbidades e ao grau de escolaridade. Esta última
variável recebeu a seguinte escala de pontuação: 1) analfabeto; 2) 1 a 4 anos
completos de estudo; 3) 5 a 8 anos completos de estudo; 4) maior ou igual a 9
anos completos de estudo.
Após a recolha destes dados, os doentes foram subdivididos em quatro
categorias, de acordo com a classificação clínica para a gravidade da asma,
conforme tabela do documento GINA5, excluindo-se a avaliação funcional. Neste
trabalho, os critérios que definiram a classificação foram sempre os de maior
gravidade.
Avaliação funcional
A avaliação da função pulmonar foi realizada através de dois aparatos técnicos
diferentes (medida do pico de fluxo expiratório e espirometria), conforme se
demonstra a seguir:
Medida do pico de fluxo expiratório:foram efectuadas três manobras manuais
com aparelho portátil de PFE, cuja diferença entre essas medidas não poderia
ultrapassar 10%. Foi escolhido o melhor valor para ser registado;
Espirometria:através de um sistema computadorizado, modelo Collins Plus
Pulmonary Function Testing Systems (Warren E. Collins, Inc.), do Sector de
Provas de Função Pulmonar do Serviço de Pneumologia do HUPE/UERJ, foram
realizadas as manobras espirométricas. Todos estes testes seguiram a
padronização da American Thoracic Society
13
,
14
, analisando-se: capacidade vital forçada (CVF%), VEF1%, relação VEF1/CVF%,
fluxo expiratório forçado entre 25-75% da CVF (FEF25-75 ) e relação FEF25-75%/
CVF%.
Foram adoptados os padrões de normalidade para a população brasileira
15
. A formação do grupo de doentes com dissociação clinicofuncional foi realizada
substituindo-se a classificação clínica pela representação numérica do VEF1% de
cada doente.
Depois, selecionaram-se os doentes cujo valor do VEF1% se não enquadrava na
faixa correspondente à sua classificação clínica.
Análise estatística
Foi utilizado o coeficiente de correlação de Pearson para verificar a
associação entre o VEF1% e as seguintes variáveis: idade, tempo desde o
diagnóstico da doença, PFE%, CVF%, VEF1/CVF%, FEF25-75% e FEF25-75%/CVF%. Com o
intuito de verificar a existência de relacionamento entre a variável VEF1 e as
variáveis demográficas e clínicas, foi calculado o coeficiente de correlação
point biserial. Com o intuito de verificar a existência de relação entre a
variável VEF1% e a obesidade e o sexo, aplicou-se um modelo de regressão linear
múltipla. Foi realizado o teste de Komogorov-Smirnov para verificar se a
variável dependente VEF1% possuía uma distribuição normal (pressuposto do
modelo de regressão linear). Foram aplicados os testes exacto de Fisher e do
qui-quadrado, com o objetivo de verificar a existência de relação entre a
variável dissociação clinicofuncional e as variáveis sexo, obesidade, tabagismo
e tempo desde o diagnóstico da doença. Ainda com o objectivo de verificar a
relação entre a variável dissociação clinicofuncional e as variáveis sexo,
obesidade, tabagismo e tempo desde o diagnóstico da doença, foi ajustado um
modelo de regressão logística. Foram consideradas significativas e incluídas no
modelo final as variáveis com p-valor inferior a 0,05.
Resultados
Foram avaliados 41 doentes, com média de idade de 68,2 (±6,9) anos, sendo 80,5%
mulheres, 31,7% fumadores e 70,6% com baixa escolaridade (14,6% de analfabetos
e 56% com até 4 anos de estudo completos). Apenas 7,3% não apresentavam
comorbidades.
Em relação à classificação clínica, 17% apresentava asma leve intermitente,
29,2% asma persistente leve, 24,3% asma persistente moderada e 29,2% asma
persistente grave.
A grande maioria (73,2%) apresentava dissociação clinico funcional, com poucos
sintomas, e função pulmonar ruim.
Enquanto o tempo médio de duração da doença foi de 41 (±21,7) anos, a taxa de
obesidade deste grupo foi de 31,7% e o valor médio do índice de massa corpórea
(IMC) de 28,15 (±5,68 ) kg/m².
Quanto ao uso de medicamentos, 12,1% não usava medicação alguma ou fazia
irregularmente, e 73,1% usava corticóide e broncodilatador de longa acção
inalatórios (com ou sem uso de broncodilatador de curta acção associado).
A média e o desvio-padrão dos índices espirométricos são apresentadas no Quadro
I, enquanto no Quadro II podem ser observados os resultados do cálculo do
coeficiente de correlação de Pearson entre a variável VEF1% e as demais
variáveis clínicas e funcionais.
Quadro I– Média e desvio-padrão dos índices espirométricos
Quadro II – Coeficiente de correlação de Pearson entre o volume expiratório
forçado no primeiro segundo (VEF1%) e os demais índices espirométricos e as
variáveis clínicas
Observou-se correlação positiva e estatisticamente significativa em relação às
variáveis PFE%, CVF%, VEF1/CVF%, FEF25-75% e FEF25-75%/CVF. Quanto ao tempo
desde o diagnóstico da doença, este mostrou-se negativamente correlacionado com
o VEF1%.
Nos Quadros III e IV são apresentados os resultados da correlação point
biserialentre a variável VEF1% e as variáveis demográficas e clínicas e o
modelo de regressão linear múltipla ajustado aos dados do (VEF1%).
Quadro III – Coeficiente de correlação point biserial entre o volume
expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1%) e as variáveis demográficas e
clínicas
Quadro IV – Modelo de regressão linear múltipla ajustado aos dados do volume
expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1%)
Não houve qualquer correlação estatisticamente significativa entre a variável
VEF1% e as outras variáveis estudadas.
No Quadro V são mostrados os resultados dos testes exato de Fisher e do qui-
quadrado. Nota-se que não há correlação significativa entre a variável
dissociação clinicofuncional e as variáveis sexo, obesidade, tabagismo e tempo
de doença.
Quadro V– Relação da variável dissociação clinicofuncional com as variáveis
demográficas e clínicas
Observa-se, no Quadro VI (modelo de regressão logística ajustado aos dados da
variável dissociação clinicofuncional) que os indivíduos do sexo feminino
possuem um risco 8,6 vezes maior que os indivíduos do sexo masculino de ter
dissociação clinicofuncional. Já os indivíduos com baixa escolaridade possuem
um risco 9,3 vezes maior em relação aos indivíduos com maior escolaridade.
Quadro VI – Modelo de regressão logística ajustado aos dados da variável
dissociação clinicofuncional
Discussão
Esse estudo mostra que os doentes idosos, portadores de asma apresentam o tempo
de duração da doença correlacionado negativamente ao grau de obstrução (VEF1%),
enquanto não foram achadas correlações estatísticas entre o VEF1% e outras
variáveis como sexo, idade, nível de escolaridade, obesidade e tabagismo.
Todos os parâmetros espirométricos estudados mostraram forte correlação com o
VEF1%, considerado atualmente o padrão-ouro de avaliação da classificação
funcional de gravidade da síndroma obstrutiva brônquica. Isto reforça a
importância do PFE% como medida funcional substitutiva à espirometria para
avaliações imediatas no consultório médico, pois é um dispositivo portátil, de
fácil execução e de baixo custo16. Por outro lado, a espirometria não perde o
seu papel principal na asma, pois é um exame muito mais completo, capaz de
avaliar importantes detalhes da fisiologia respiratória, como a reversibilidade
das vias aéreas e as manifestações de pequenas vias aéreas.
A dissociação entre os sintomas e o grau de obstrução das vias aéreas é
variável em asmáticos, sendo observado em 15 a 84% dos doentes em diversos
estudos8-11,
17
. Neste trabalho, a taxa de dissociação clinicofuncional, em idosos, foi de
73,17%. Apesar de não terem sido encontradas referências numéricas a respeito
da taxa de dissociação nessa faixa etária, mostra-se bem clara na literatura
médica a definição do idoso como grupo de risco5,8. Isto ressalta a necessidade
da realização de um método objectivo para avaliar a classificação do asmático
em idade avançada. Tendo em vista as distorções comuns na percepção de queixas
respiratórias nos idosos, alguns casos em relação à supervalorização e outros
relacionados com o pobre relato de sintomas, torna-se importante caracterizar o
grupo de doentes com dissociação clinicofuncional.
Comorbidades variadas e limitação física própria da idade são comuns no doente
idoso e podem levar a queixas respiratórias não relacionadas directamente com a
obstrução brônquica, assim como a depressão também pode estar associada à
supervalorização destes sintomas
18
. Doentes idosos e com doença de longa evolução queixam-se menos dos sintomas
de asma, o que pode resultar de um menor número ou actividade diminuída dos
receptores estique (mecanorreceptores responsivos à distensão do tórax, sendo
neurologicamente ligados à medula), além de uma baixa sensibilidade dos
quimiorreceptores para hipóxia na idade avançada
19
. Após análise dos subgrupos sexo, tabagismo, nível de escolaridade e
obesidade, encontrou-se correlação num modelo de regressão logística ajustado.
Os indivíduos do sexo feminino apresentaram risco 8,6 vezes maior do que os
indivíduos do sexo masculino de dissociação clinicofuncional e os indivíduos
com baixa escolaridade (doentes com até quatro anos completos de estudo) um
risco 9,3 vezes maior em relação aos indivíduos com maior escolaridade. Akeramn
et al., avaliando a percepção dos sintomas em doentes asmáticos, observaram que
esta foi inferior nos idosos, particularmente naqueles com baixos rendimentos e
asma de menor gravidade
20
. Assim, mostra-se de suma importância a avaliação quanto à real correlação das
medidas funcionais respiratórias com a classificação clínica da asma,
especialmente no doente idoso, tendo em vista que o diagnóstico correcto sobre
o estádio da doença propicia adequado uso do grande arsenal terapêutico hoje
disponível.
É pertinente uma análise crítica dos resultados do presente estudo e das suas
limitações.
A ausência de um grupo-controlo, constituído por asmáticos jovens, dificulta a
interpretações dos dados, pois particularidades geográficas e ambientais podem
influenciar todos os grupos de asmáticos, independente da faixa etária. Outra
limitação é a análise da possível influência do tratamento, embora o nosso
serviço siga as directrizes recomendadas para a terapêutica da asma, de acordo
com o grau de classificação da doença.
Não obstante a pequena amostra estudada, talvez se possa transpor estes dados
para a população geral e incorporar a orientação médica da realização de medida
funcional como essencial na avaliação da classificação de gravidade da asma no
idoso. Isto é particularmente importante nos idosos do sexo feminino e nos
idosos com baixa escolaridade, já que estes podem apresentar maior risco de
dissociação clinicofuncional.