Hemangioendotelioma epitelióide do pulmão: Raridade, dificuldades diagnósticas
e terapêutica
Introdução
O hemangioendotelioma epitelioide e um tumor vascular raro, de baixo grau de
malignidade, com origem nas células endoteliais, que se pode desenvolver em
qualquer tecido.
Os tumores vasculares de alto grau são denominados angiossarcomas epitelioides.
Quando estes tumores surgem no pulmão sao habitualmente o resultado de
metástases de um tumor primário da pele, coração, mama ou figado
1
. O tumor primário do pulmão e extremamente raro, tendo sido descrito pela
primeira vez por Dail e Liebow, em 1975, com a denominação de intravascular
sclerosing bronchioalveolar tumor
2
.
Até ao momento nao foram encontradas estratégias terapêuticas eficazes para
este tipo de tumor, sendo que o seu prognostico e geralmente reservado.
Caso clínico
Os autores descrevem o caso clínico de um doente do sexo masculino, 51 anos,
caucasiano, mecânico de automóveis, não fumador e sem antecedentes pessoais
relevantes. Aparentemente saudável ate Novembro de 2007, quando iniciou um
quadro clínico caracterizado por tosse seca, não associada ao esforço físico.
Esta tosse manteve-se, apesar das várias terapêuticas instituídas, com fármacos
antialergicos, inibidores da bomba de protoes e anti-inflamatórios. Em Janeiro
de 2008 associaram-se outros sintomas, como sudorese nocturna, anorexia e perda
ponderal (cerca de 12 kg em 2 meses), cansaço fácil e dispneia de agravamento
progressivo. No mês seguinte foi referenciado para a consulta de Pneumologia do
Hospital de Pulido Valente.
Ao exame objectivo, o doente apresentava-se emagrecido e com mucosas
ligeiramente descoradas. Eupneico em repouso e ligeiramente dispneico com
pequenos esforços. A Auscultação cardíaca nao apresentava alterações e a
auscultação pulmonar revelou sibilos bilaterais.
Dos exames complementares de diagnostico, efectuados em Fevereiro de 2008,
salientam-se os seguintes:
1) Radiografia de torax(Fig. 1), que evidenciou a presença de múltiplas lesões
nodulares pulmonares bilaterais, e tomografia computorizada (TC) torácica(Fig.
2) que revelou a presença de alterações reticulonodulares, que interessavam
maioritariamente o pulmão cortical.
Fig. 1 – Radiografia de tórax (Fevereiro/2008): múltiplos nódulos pulmonares
bilaterais
Fig. 2 – TC torácica (Fevereiro/08): alterações retículo-nodulares interessando
maioritariamente o pulmão cortical
2) Analiticamenteverificou-se a presença de anemia microcitica (Hb 10,8 g/dL;
VGM 82,9 fL; HGM 27,4 pg), sendo que a PCR, a função renal, o ionograma e a
função hepática não apresentavam alterações.
3) Provas funcionais respiratóriasque mostraram um padrão de restrição pulmonar
moderada e difusão do monóxido de carbono normal [FVC 3,08 L (67 %); FEV1 2,63
L (71 %); FEV1/FVC 85 %; RV 1,37 (61 %); TLC 4,45 L (62 %); DLCO 79 %, com
DLCO/VA 92 %]. Gasimetria arterial(ar ambiente) apresentava normoxemia com
normocapnia (pH 7,45; pCO2 41,2 mmHg; pO2 91,0 mmHg; HCO3 28,1 meq/L; Sat.O2
97,3 %).
4) Broncofibroscopia, cujo exame endoscópico foi normal. A citologia e a
micobacteriologia do lavado broncoalveolar foram negativas. A biopsia pulmonar
transbronquica, ao nível do lobo inferior direito, revelou a presença de um
infiltrado inflamatório no parenquima pulmonar, de predomínio linfocitario, sem
granulomas nem tecido neoplasico. A marcação imunoistoquimica foi negativa na
pesquisa de células neoplasicas.
Perante o agravamento do quadro clínico e a ausencia de diagnostico, foi
submetido a biopsia pulmonar e pleural por VATS (video-assisted thoracoscopic
surgery), em Marco de 2008.
Na peça de ressecção pulmonar (4,5 × 2 × 1 cm) observava-se um nódulo com 0,7
cm de diametro. Microscopicamente tratava-se de parenquima pulmonar com
numerosos granulomas epitelioides com necrose central. A coloração de
Ziehl–Nielsen não revelou BAAR. O fragmento de pleura mostrava um infiltrado
inflamatório crónico e esboço de granulomas. Foi admitido o diagnóstico de
tuberculose pulmonar e pleural e iniciou terapêutica antibacilar em Abril de
2008. Contudo, por agravamento dos sintomas constitucionais, da dispneia e do
aparecimento de pieira, associados a insuficiência respiratória parcial (PaO2 =
55 mmHg), com agravamento radiológico, foi internado, a 30 de Abril de 2008,
para esclarecimento da situação clínica.
O exame bacteriológico da expectoração, directo e cultural, foi negativo. Os
marcadores tumorais, Cyfra 21 e CEA, apresentavam valores normais.
A TC torácica, de 6 de Maio de 2008 (Fig. 3), mostrou agravamento numérico e
volumétrico das alterações reticulonodulares, bilateralmente, em comparação com
a TC torácica realizada em Fevereiro de 2008. Foi notório ainda o espessamento
pleural e áreas com calcificação, particularmente no componente cisural a
direita. Nao apresentava áreas de perda de substancia nem adenomegalias
valorizáveis.
Fig. 3 – TC torácica (Maio/08): agravamento numérico e volumétrico das
alterações reticulo-nodulares, bilateralmente
A TC abdominal (6 de Maio de 2008) não revelou alterações (“...homogeneidade
dos coeficientes de atenuação dos parenquimas hepático, pancreático e
esplénico. Rins com normal volumétrica, com adequada espessura parenquimatosa,
sem ectasia do excretor ou sinais de litiase. Ausência de ascite. Sem
adenomegalias.”) Perante este agravamento clínico fugaz, e sob terapêutica
antibacilar durante três semanas, foi discutido novamente o caso com a anatomia
patológica, que fez a revisão das biopsias pulmonar e pleural obtidas por VATS.
O relatório anatomopatologico pulmonar descreve uma lesão granulomatosa,
constituída por células epitelioides pleomorficas, de núcleos vesiculosos com
nucleolos por vezes visíveis a rodearem áreas de necrose (Fig. 4). As células
demonstraram positividade fraca para AE1, AE3 e CK7, forte para vimentina e
CD34 (Fig. 5). Concluiu-se assim, em Maio de 2008, que os aspectos morfológicos
conjugados com o estudo imunoistoquimico favoreciam o diagnostico de
hemangioendotelioma epitelioide de alto grau /angiossarcoma.
Fig. 4 – HEx100: nódulos constituídos por periferia celular e alguns com
necrose central. As células são ovais de núcleo redondo e núcléolo evidente
Fig. 5 – As células neoplásicas demostraram positividade para o CD-34
Por apresentar valores de gGT ligeiramente elevados, apesar de TC abdominal sem
alterações, realizou ecografia abdominal superior (14 de Maio 2008), que
revelou “...no parenquima hepático pelo menos três formações nodulares
hiperecoides bem circunscritas no lobo direito, com 17, 11 e 9 mm, todas elas
periféricas, ecograficamente compatíveis com hemangiomas...”, mas devido ao
contexto clínico foi sugerida avaliação complementar por ressonância magnética
devido a possibilidade de lesões secundarias.
O caso foi apresentado a unidade de oncologia pneumologica e o doente iniciou
quimioterapia (QT) com carboplatina (area under the curve(AUC) 5mg/mL,
endovenoso, no primeiro dia de cada ciclo) + etoposido (120mg/m2, endovenoso,
durante os três primeiros dias de cada ciclo), e bevacizumab (7,5 mg/kg de
peso, endovenoso, no primeiro dia de cada ciclo), a cada 21 dias. Verificou-se
uma ligeira melhoria sintomática, apesar da necessidade de oxigenoterapia, e o
doente teve alta para o domicílio. Fez mais dois ciclos de QT em regime de
Hospital de Dia (num período de seis semanas), com boa tolerância, mas foi-se
verificando uma deterioração clínica progressiva, com agravamento da
insuficiência respiratória. Faleceu cerca de sete meses após o aparecimento dos
primeiros sintomas respiratórios e apenas sete semanas depois do diagnostico
definitivo da doença.
Discussão
O HEE e um tumor vascular raro, com origem nas células endoteliais. Existe um
sítio na Internet destinado ao registo de todos os casos (http://
www.lookfordiagnosis.com/
cases.php?term=Hemangioendotelioma+Epiteli%C3%B3ide&lang=3).
O HEE primario do pulmao esta descrito em pouco mais de 50 casos na literatura
e, quando se fala em angiossarcoma epitelioide do pulmão (o tipo de HEE de alto
grau de malignidade), esse numero reduz-se apenas a alguns casos documentados.
A maioria dos doentes com HEE e do sexo feminino (3/4 dos casos), com a idade
da primeira apresentação da doença variável (entre os 12 e os 61 anos), mas 40
% tem idade inferior a 30 anos2.
Em relação aos factores de risco, pouca informação existe na literatura, mas há
um artigo publicado que relaciona a exposição a asbestos com o aparecimento
desta neoplasia vascular
3
. Este doente era mecânico de automóveis, estando regularmente exposto a
asbestos (na reparação de calcos de travões contendo amianto, sobretudo dos
veículos mais antigos). Deste forma, e possível estarmos perante um caso de
neoplasia de etiologia profissional por exposição aos asbestos.
Contudo, e necessária mais investigação para se poder estabelecer realmente uma
associação entre o HEE e a exposição aos asbestos.
O HEE primário do pulmão caracteriza-se por um crescimento insidioso e
silencioso, com mais de metade dos doentes assintomáticos, motivo pelo qual
habitualmente ja apresenta invasão local e metastização hematogenica aquando
das primeiras manifestações clínicas e do diagnostico. Alguns doentes
apresentam dor pleuritica, dispneia, tosse seca ou hemoptises. Cerca de 10% tem
derrame pleural.
O diagnostico precoce não e comum devido a raridade do tumor, o que faz com que
o índice de suspeição seja baixo. No caso aqui descrito comprovou-se o curso
insidioso da doença, tendo o doente como primeiro sintoma apenas tosse seca,
seguida, após algumas semanas, de sintomas constitucionais e dispneia de
agravamento progressivo.
Em termos imagiologicos manifesta-se, habitualmente, por múltiplas lesões
pulmonares nodulares bilaterais, de pequenas dimensões (menos de 1 cm; mas
podem atingir mais de 2 cm), apesar de, por vezes, poder surgir como um único
nódulo ressecável cirurgicamente.
No caso descrito, a primeira radiografia de tórax evidenciava a presença de
múltiplos nódulos pulmonares dispersos bilateralmente, confirmados pela TC
torácica, inviabilizando qualquer abordagem cirúrgica para ressecção dos
mesmos.
O diagnostico definitivo só e possível através do exame histopatologico e
confirmado com estudo imunoistoquimico de fragmentos obtidos por biopsia
endoscópica ou, na maioria dos casos, cirúrgica das lesões nodulares.
Os achados mais comuns e mais precoces são o infiltrado inflamatório alveolar
intersticial de predomínio linfocitario. Progressivamente os nódulos
(arredondados ou ovais) vão adquirindo um centro com necrose, ou seja, tomam o
aspecto de granulomas epitelioides com necrose central.
Nesta fase, o aspecto histopatologico pode ser facilmente confundido com o da
tuberculose pulmonar, que foi o que aconteceu no caso aqui descrito, ainda para
mais sendo esta patologia tão frequente em Portugal.
Tipicamente, as células são arredondadas, com citoplasma abundante, e os
núcleos são redondos ou ovais. O aparecimento de figuras mitoticas e raro,
assim como os núcleos dismorficos, mas quando surgem são sinais de mau
prognóstico. A imunoistoquimica tem nestes casos um papel fundamental para o
diagnóstico definitivo.
Recorre-se a marcadores específicos para tumores derivados do endotélio, como
CD34, CD31 e factor VIII (factor von Willebrand)
4
. No caso aqui discutido, o diagnóstico definitivo foi realmente conseguido
após se ter comprovado a fraca positividade das células para AE1, AE3 e CK7
(excluindo-se o carcinoma do pulmão) e a forte positividade para o CD34. Como
as células se mostraram francamente pleomorficas, de núcleos vesiculosos e com
nucleolos por vezes visíveis, verificou-se estar perante um alto grau de
malignidade e, assim, conjugando todos os achados, chegou-se ao diagnostico de
HEE de alto grau/angiossarcoma.
A disseminação deste tipo de tumor pode ocorrer por via hematogenica ou
linfática e para a pleura por continuidade (o que também ocorreu neste caso).
Raramente há metastização a distância (provavelmente por via hematogenica) para
o fígado, pele, rim, baço e cavidade retroperitoneal. Em relação as ofertas
terapêuticas, a única eficaz e a excisão cirúrgica de uma lesão pulmonar
isolada, sem metastização.
No caso, a presença de lesões reticulonodulares múltiplas bilaterais, e
posteriormente a documentação de metastizaçao (pleural e eventualmente
hepática), as possibilidades terapêuticas são reduzidas e com poucas evidencias
de sucesso.
Este tipo de tumor parece ser pouco sensível a quimioterapia (existem vários
artigos que relatam tentativas de tratamento com mitomicina C, 5-fluoruracilo,
ciclosfosfamida, vincristina ou cisplatina), tendo-se verificado sucesso
terapêutico em apenas um caso de HEE, em que se recorreu a carboplatina e
etoposido
5
.
Em relação ao angiossarcoma, há um caso de sucesso com recurso a combinação de
radioterapia com imunoterapia (IL-2 recombinante)1. Contudo, a resposta deste
tumor a radioterapia isolada e precária e esta e uma técnica só possível para
lesões isoladas ou em pequeno numero.
Uma terapêutica promissora, mas que necessita de mais estudos, e o recurso a
fármacos antiangiogenicos, que poderão ser eficazes mesmo como agentes únicos,
e até em doentes submetidos a rádio e/ou quimioterapia previas. Existe pelo
menos um caso relatado de sucesso com terapêutica com bevacizumab no HEE
6
. Com base nesta informação, avançou-se, no caso descrito, para uma oferta
terapêutica com um antiangiogenico (bevacizumab) associada a carboplatina e
etoposido, por ja terem mostrado eficacia5,6.
Nos casos de HEE de baixo grau, a sobrevivência pode atingir algumas décadas
após o diagnóstico (um caso documentado com 24 anos de sobrevivência), mas nos
de alto grau de malignidade, como se verifica no angiossarcoma, a sobrevivência
não ultrapassa as poucas semanas após o diagnostico.
Num estudo publicado por Kitaichi e Negai
7
documentaram-se três casos de HEE de baixo grau com regressão parcial
espontânea, o que e muito raro.
Alguns dos factores de mau prognostico são a presença de sintomas respiratórios
aquando do diagnostico, a metastização hepatica
8
e os já descritos em relação a histologia. Todos estes factores estavam
presentes neste doente.
Em conclusão, o HEE e um tumor vascular raro que se pode desenvolver em
qualquer tecido. No pulmão surge habitualmente como secundário, mas também pode
surgir como primário, o que e extremamente raro.
Os HEE de alto grau de malignidade apresentam um crescimento insidioso e
silencioso, o que condiciona atraso na manifestação clínica e no diagnóstico.
O diagnóstico definitivo só e possível através do exame histopatologico e
confirmado pelo estudo imunoistoquimico. Alguns dos aspectos histológicos
(presença de granulomas epitelioides com necrose central) podem ser facilmente
confundidos com tuberculose pulmonar, o que pode condicionar maior atraso do
diagnóstico.
Relativamente a estratégia terapêutica, e na doença metastizada, tem sido usada
QT combinada, com baixa resposta tumoral.
Pelo carácter vascular destes tumores tem sido preconizado o uso de fármacos
antiangiogenicos, mas ainda com poucos casos relatados e com uma resposta
modesta nos resultados publicados. E assim necessário desenvolver novas
soluções terapêuticas mais eficazes para este tipo de tumor.