Tuberculose musculoesquelética - A propósito de um caso clínico
Introdução
A tuberculose musculoesquelética ocorre em 1% a 3% dos doentes com diagnóstico
de tuberculose
pulmonar. A parede torácica está envolvida em 1% a 5% de todos os casos de
tuberculose musculoesquelética, representando 1% a 2% da totalidade dos casos
de tuberculose1.
A seguir às metástases, constitui a segunda causa de destruição de costela e a
mais frequente lesão inflamatória das costelas. A forma de apresentação
multifocal é rara
2
, mesmo nos países em que a tuberculose é endémica, e em apenas um terço dos
doentes existe concomitantemente doença pulmonar
3
,
4
.
A apresentação clínica inclui tumefacção subcutânea da parede torácica, dor
local, febre e emagrecimento. Se existe envolvimento da coluna vertebral, pode
existir rigidez do tronco, espasmo muscular e sinais neurológicos.
A radiografia torácica pode complementar o estudo diagnóstico e evidenciar
envolvimento concomitante do parênquima pulmonar, mas não existem achados
patognómicos neste tipo de tuberculose. A tomografia axial computadorizada
(TAC) mostra habitualmente um processo de osteólise da costela, envolvimento
das partes moles endo ou extratorácicas, com uma densidade quística ou líquida,
reacção do periósteo e/ou sequestro
5
,
6
. Este exame é fundamental para uma adequada investigação das lesões das
costelas, mostrando os tecidos e estruturas envolvidas e permitindo orientar
biópsias dirigidas
7
. As confirmações bacteriológica aspirativa (PA) da massa a técnica utilizada
na aquisição de material
8
,
9
.
O tratamento deve incluir a terapêutica antibacilar de primeira linha com
isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol durante dois meses seguida de
sete a dez meses de isoniazida e rifampicina, bem como a remoção cirúrgica do
abcesso, embora a terapêutica mais adequada seja ainda controversa.
A propósito desta entidade clínica, os autores descrevem o caso de um homem
imunocomprometido, com diagnóstico de tuberculose miliar e uma forma de
apresentação rara de tuberculose musculoesquelética, um abcesso da costela com
destruição óssea.
Caso clínico
Doente do sexo masculino, 36 anos, raça caucasiana, natural da ilha do Faial,
Açores, e residente em Lisboa, fumador de 20 UMA, toxicofilia inalada e
endovenosa durante 15 anos, em programa de substituição de opiáceos deste
Setembro de 2007 e infecção VIH-1 conhecida desde há cerca de 12 meses, sem
profilaxia ou terapêutica antirretroviral. Recorre ao serviço de urgência do
Hospital de Santa Maria (HSM), Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN-EPE), por
quadro com um mês de evolução de tosse com expectoração mucosa, por vezes
mucopurulenta, febre não quantificada, dispneia de esforço, toracalgia
incaracterística no terço médio do hemitórax direito, acompanhados de astenia,
adinamia e perda ponderal de cerca de 10 kg.
Como antecedentes pessoais, referência a pneumonia bilateral em 1997 e infecção
crónica ao vírus da hepatite C. Sem antecedentes familiares relevantes.
Ao exame objectivo, o doente apresentava-se consciente, orientado, colaborante,
emagrecido, polipneico, acianótico, subfebril, com saturação periférica normal,
subfebril (TT–38,2ºC), descorado mas hidratado e hemodinamicamente estável.
À auscultação pulmonar tinha diminuição do murmúrio vesicular nas bases, alguns
sibilos bilaterais e a auscultação cardíaca era rítmica e sem sopros audíveis.
A nível abdominal apresentava uma hérnia umbilical, redutível e indolor, e
hepatomegalia dolorosa.
Analiticamente tinha anemia microcítica (Hb – 9,2 g/dl, VGM – 69,1 fl), PCR de
8,2 mg/dl, sem leucocitose, LDH de 1112 U/l e hiponatremia de 127 mEq/l.
A gasometria arterial (FiO2 – 21 %) evidenciava uma alcalose respiratória
ligeira, com hipoxemia (pH – 7,47; pCO2 – 33,2 mmHg; pO2 – 64,9 mmHg; sat O2 –
94%).
A radiografia do tórax (PA) mostrava um padrão micronodular/miliar difuso em
ambos os campos pulmonares e imagem de hipotransparência no terço médio à
direita, com extensão à pleura e parede torácica (Fig. 1).
Fig. 1– Radiografia tórax (PA) – Padrão miliar difuso, hipotransparência do
terço médio à direita, com extensão à pleura e parede torácica
A pesquisa de bacilos ácido-alcool resistentes (BAAR) em exame directo da
expectoração foi negativa.
O doente é admitido e transferido para a unidade de imunodeficiência do
Hospital de Pulido Valente, CHLN, EPE, com a hipótese de infecção respiratória
no contexto de infecção VIH. Foi medicado empiricamente com levofloxacina e
cotrimoxazol e pedida broncofibroscopia que não evidenciou alterações
endobrônquicas.
O líquido da lavagem broncoalveolar (LLBA) foi negativo, quer para pesquisa de
bacilo de Koch (BK) em exame directo, quer para pesquisa de Pneumocystis
jiroveci, quer ainda no exame bacteriológico, directo e cultural.
A biópsia brônquica revelou um processo inflamatório crónico inespecífico.
Dos exames solicitados durante o internamento, destaca-se o seguinte:
– Antigenúrias para o Streptococcus pneumoniaee para a Legionellaserotipo 1
negativas;
– Hemoculturas em aerobiose e anaerobiose negativas;
– Uroculturas negativas;
– TAC torácica, que revelou padrão de disseminação miliar, em provável relação
com processo específico e imagem de densidade de partes moles (líquida), com
aparente destruição óssea da costela no hemitórax direito, que na janela óssea
apresentava corticalização (Fig. 2);
Fig. 2 – TAC tórax – Padrão de disseminação miliar, imagem de densidade de
partes moles com aparente destruição óssea da costela no hemitórax direito
– Punção lumbar, com saída de líquido cefalorraquidiano cristal-de-rocha, com
ADA normal (7UI/l), bioquímica com aumento das proteínas (0,74 g/l) e
diminuição da glicose (55 mg/dl). Os exames bacteriológico, directo e cultural,
bem como o micológico, foram negativos. O exame micobacteriológico directo e a
pesquisa de Mycobacterium tuberculosispor técnica de PCR foram negativos.
Verificou-se melhoria clínica e laboratorial progressiva, mas cerca de 15 dias
após o início do internamento o doente inicia febre.
Entretanto, o exame cultural para pesquisa de BK no LLBA e na expectoração vêem
positivos, pelo que o doente é transferido para o serviço de pneumologia III
(unidade de tuberculose) do mesmo hospital e inicia terapêutica antibacilar de
primeira linha com isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol, tal como
demonstrou o perfil de sensibilidade daqueles produtos biológicos.
Mais tarde estes exames são complementados pela positividade dos exames
culturais em meio de Lowenstein-Jensen, quer da expectoração, quer do LLBA.
Por persistência da toracalgia à direita e aumento discreto da imagem
radiológica de hipotransparência direita (Fig. 2), o doente é submetido a
punção aspirativa (PA) da colecção de partes moles, com saída de pus, cuja
pesquisa de BAAR foi positiva no exame directo, deduzindo tratar-se de um
abcesso de etiologia tuberculosa.
A TAC torácica de controlo, realizada cerca de um mês depois da primeira,
revelou aumento volumétrico da lesão (7×6 cm axiais), bem delimitada,
localizada na parede torácica direita, com crescimento para dentro do hemitórax
direito, associada a lise óssea do 5.º arco costal, para além de um ligeiro
agravamento da disseminação miliar da tuberculose a nível do parênquima
pulmonar (Fig. 3).
Fig. 3 – TAC tórax – Aumento do volume da lesão com crescimento para dentro do
hemitórax direito, lise óssea do 5.º arco costal. Agravamento da disseminação
miliar
Estabelecido assim o diagnóstico de abcesso costal com destruição óssea, o
doente foi submetido a empiemectomia com ressecção parcial do 4.º e 5.º arcos
costais à direita, ressecção atípica do LSD e da massa quística (abcesso). O
resultado anatomopatológico da peça operatória foi de empiema crónico.
O pós-operatório decorreu sem complicações, tendo o doente alta, melhorado e
mantendo terapêutica antibacilar durante um ano,com evolução favorável (Fig.
4).
Fig. 4 – Radiografia tórax – Resolução do abcesso após tratamento cirúrgico e
sob terapêutica antibacilar
Discussão
A tuberculose da parede torácica é uma entidade rara e constitui um desafio
diagnóstico e terapêutico, representando entre 1% a 2% da totalidade dos casos
de tuberculose.
A tuberculose óssea resulta da extensão directa da doença pleuropulmonar
subjacente
10
, disseminação hematogénea dos bacilos a partir de um foco de primoinfecção nos
pulmões11 ou da extensão directa de uma linfadenite da parede torácica
12
. A erosão óssea resulta do tecido de granulação que ao crescer leva a necrose
do osso, mas também pela acção directa e invasiva dos microrganismos.
As colecções extraparenquimatosas (subpleurais) são compostas de material
caseoso resultantes de gânglios linfáticos necrosados e designam -se “abcessos
frios”. Estes podem crescer e fazer procidência na parede torácica, formando
tumefações visíveis no exterior, sem causarem eritema ou dor, o que explica a
contiguidade destas lesões aos gânglios linfáticos afectados, em cerca de
metade dos doentes. Os gânglios da cadeia mamária interna são os mais
frequentemente envolvidos.
Os abcessos tuberculosos da parede torácica podem envolver, por ordem
decrescente de frequência, o esterno, as costelas, as articulações
costocondrais e costovertebrais e as vértebras. Em mais de metade dos casos não
existe destruição óssea. A associação de uma massa de partes moles, lesão
osteolítca e sequestro na TAC torácica sugere tuberculose da parede torácica6.
A dimensão destes abcessos varia habitualmente entre os 4 e os 10 cm, no seu
maior diâmetro
13
, e frequentemente pode surgir um ponto de drenagem espontânea, nomeadamente
nos doentes em que o início da terapêutica antibacilar é protelado.
A forma de apresentação mais característica é a de um abcesso frio, que se
traduz por uma massa sem inflamação, habitualmente única, tal como sucede neste
doente. Também pode ser dolorosa, palpável, de consistência mole a elástica ou
sólida, e pode ter flutuação
14
. A dor e o eritema local traduzem sobreinfecção.
Na série de Faure, em 83% dos casos existe história de tuberculose pulmonar,
estando activa em 33% dos doentes11. O doente apresentado tinha uma tuberculose
miliar activa que motivou o seu internamento, na sequência do qual foi
investigada a toracalgia que conduziria ao diagnóstico de abcesso costal.
O diagnóstico definitivo assenta na confirmação micobacteriológica ou
histológica de material colhido por PA8,9, embora nem sempre os doentes reúnam
condições clínicas para o fazer. Por vezes só o exame histopatológico da peça
cirúrgica fornece o diagnóstico.
A abordagem terapêutica continua a ser controversa. Estudos têm demonstrado que
o tratamento médico é insuficiente, pelo que se recomenda o desbridamento
cirúrgico associado aos fármacos antituberculosos8. A técnica cirúrgica mais
adequada inclui a ressecção alargada e completa da massa e costelas que
eventualmente possam estar envolvidas
15
, sendo o procedimento mais efectivo com baixo risco cirúrgico e mandatório, a
fim de evitar recidivas8,
16
. A duração aceitável da antibioterapia é de 9 a 12 meses
17
,18,
19
.
Conclusões
Com base neste caso, tecem-se algumas considerações no que diz respeito ao
diagnóstico de tuberculose musculoesquelética, valorizando a importância do
elevado grau de suspeição clínica, particularmente em áreas de alta prevalência
de tuberculose e SIDA.
Reforça-se a abordagem terapêutica mais adequada e a necessidade de tratamento
cirúrgico, complementados pela medicação antibacilar para a completa resolução
do abcesso costal e redução da taxa de recidivas.