Caracterização de uma população com risco acrescido de DPOC
Introdução
A DPOC é uma causa importante de morbilidade e mortalidade em todo o mundo.
Prevê-se que em 2020 a DPOC seja a terceira causa de mortalidade a nível
mundial
1
.
A DPOC é definida actualmente pelas normas da Global Iniciative for Chronic
Obstructive Lung Disease (GOLD) como uma doença evitável e tratável com alguns
efeitos extrapulmonares significativos que podem para a sua gravidade em cada
doente individualmente. A limitação do fluxo aéreo, característica da DPOC,
começa por afectar as pequenas vias aéreas e é geralmente progressiva e
associada a uma resposta inflamatória anormal do pulmão a partículas ou gases
prejudiciais
2
.
Esta patologia progride de forma insidiosa e silenciosa. Frequentemente, quando
surgem os primeiros sintomas, nomeadamente dispneia para exercícios médios, já
ocorreu perda de cerca de 50 % da capacidade pulmonar do indivíduo, pelo que é
fundamental a identificação precoce dos doentes com DPOC.
Estima-se que a prevalência da DPOC nos adultos activos portugueses seja de
cerca de 5,3%. A prevalência aumenta com a idade, sendo mais elevada no sexo
masculino No entanto, a prevalência tem vindo a aumentar no sexo feminino, como
consequência de Portugal se encontrar actualmente na fase 2 da epidemia
tabágica, caracterizada por um aumento progressivo da prevalência do tabagismo
no sexo feminino
3,4
. No ano de 2005 foi criado um Programa Nacional de Prevenção e Controlo da
Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, que considera a DPOC em Portugal um
problema de saúde pública
3
.
Consideram-se factores de risco para o desenvolvimento de DPOC as seguintes
características: idade ≥ 40 anos, com história de tabagismo superior a 10 anos;
actividade profissional de risco respiratório comprovado, com exposição a
poeiras e a produtos químicos; tosse ou expectoração crónicas ou dispneia de
esforço; deficiência de alfa 1-antitripsina
5
.
Dos factores de risco enunciados, o principal e mais importante é o tabagismo,
estimando'se que cerca de 15-20% dos fumadores desenvolvam DPOC. Atendendo-se à
inexistência de um tratamento que permita restaurar a função pulmonar, a
resposta para prevenir o desenvolvimento de DPOC grave consiste na
identificação dos fumadores num estádio precoce da doença
1
. De acordo com dados obtidos pelos inquéritos nacionais de saúde (INS), a
prevalência total de consumo de tabaco em Portugal continental, na população
inquirida com 15 ou mais anos, era de 20,2% em 2005/06. O consumo de tabaco
continua a ter maior prevalência no sexo masculino ' 31,0% nos homens e 10,3%
nas mulheres
6
. Na faixa etária dos 45-64 anos, a prevalência de fumadores, em 2005/06, por
sexo, foi de 23,8% nos homens e de 5,3% nas mulheres
5
.
O impacto da DPOC está a aumentar e, consequentemente, o desempenho diagnóstico
a nível dos cuidados primários é cada vez mais um desafio. A colheita da
história clínica e a realização do exame físico fornecem importante informação
para o diagnóstico de DPOC a nível dos cuidados primários, contudo têm um baixo
valor preditivo
6
.
Os doentes que apresentam tosse crónica e produção de expectoração e têm
história de exposição a factores de risco devem ser examinados para avaliação
da limitação das vias aéreas, mesmo na ausência de dispneia
3
.
A medida da função pulmonar com um espirómetro é essencial para o diagnóstico
precoce e rigoroso da DPOC. De acordo com a American Thoracic Society(ATS) e a
European Respiratory Society(ERS) a espirometria deve ser realizada em todos os
doentes com mais de 40 a 45 anos com história de tabagismo
9
.
A espirometria identifica, de uma forma precisa, a obstrução do fluxo de ar e
diferencia problemas obstrutivos (DPOC, asma), restritivos (pneumoconioses e
outras doenças que causam fibrose pulmonar; obesidade grave ou deformação
esquelética, como cifoescoliose; cirurgia prévia, como lobectomia ou
pneumectomia; edema pulmonar) e mistos (obstrução grave do fluxo de ar, como na
DPOC avançada; bronquiectasia grave e fibrose quística). As características
espirométricas de obstrução são: capacidade vital (CV) igual ou ligeiramente
maior do que a capacidade vital forçada (CVF), CVF 80% superior ao previsível,
volume expiratório forçado no 1.º segundo (VEF1) menor do que os 80%
previsíveis e uma relação VEF1/ CVF inferior a 70%.
7
A presença de alterações obstrutivas nas pequenas vias aéreas é frequentemente
definida como um valor espirométrico de FEF 25 -75% < 60%.
Relativamente ao diagnóstico de DPOC, que implica a realização de uma prova de
broncodilatação, é feito na presença de uma relação volume expiratório forçado
no 1.º segundo (VEF1)/capacidade vital forçada (CVF) abaixo de 0,7 após a prova
citada. A gravidade da DPOC é estratificada pelo nível de VEF1 como uma
percentagem do valor previsível.
Este trabalho consiste na caracterização de uma população com risco acrescido
de DPOC, tendo como objectivos principais:
a) Determinação da percentagem de fumadores identificados numa USF (unidade de
saúde familiar) na população de utentes com idade compreendida entre 45-65
anos;
b) Caracterização da população quanto ao sexo, idade, índice de massa corporal
(IMC), risco respiratório profissional, idade de início do tabagismo, carga
tabágica, sintomatologia respiratória e presença de alterações obstrutivas das
pequenas vias aéreas;
c) Determinação de uma possível relação entre a presença de sintomatologia
respiratória e o sexo, idade, IMC, profissão, idade de início do tabagismo,
carga tabágica e presença de alterações obstrutivas das pequenas vias aéreas;
d) Determinação de uma possível relação entre a presença de alterações
obstrutivas das pequenas vias aéreas no exame espirométrico e o sexo, idade,
IMC, risco respiratório profissional, idade de início do tabagismo, carga
tabágica e sintomatologia respiratória.
Material e métodos
Foi efectuado um estudo observacional, analítico, transversal, de Julho de 2008
a Dezembro de 2008, na USF Camélias (Centro de Saúde Soares dos Reis e Oliveira
do Douro). A população de estudo foi constituída pelos utentes da USF com
idades compreendidas entre 45-65 anos, nascidos entre 01/01/1943 e 31/12/1963
(N= 4116).
A amostra do estudo foi constituída pelos utentes fumadores da USF Camélias com
idades compreendidas entre os 45-65 anos, identificados através da consulta do
processo clínico electrónico SAM (Sistema de Apoio ao Médico®) durante o
período de Julho e Agosto de 2008 (N=217).
Métodos de recolha de informação
Os utentes fumadores identificados foram convidados a dirigirem-se à USF
durante o mês de Outubro. Numa primeira fase o convite foi dirigido por via
bilhete-postal e numa segunda fase por chamada telefónica. Durante uma
entrevista pessoal, as investigadoras previamente treinadas aplicaram um
questionário desenvolvido pelas próprias. Foi esclarecida a natureza e o
objectivo do estudo e garantida a confidencialidade dos dados.
A avaliação estaturoponderal dos doentes foi realizada com a balança mecânica
de plataforma marca Jofre (modelo 6, Portugal), com capacidade máxima de 110
kgs e resolução de 100 g e antropómetro metálico marca Jofre (modelo 6,
Portugal), com resolução de 1 mm. As determinações foram realizadas com os
indivíduos vestidos com roupas leves e descalços, seguindo as técnicas
recomendadas por Lohman et al.
A função pulmonar foi avaliada através de exame espirométrico realizado por
técnicos para tal treinados, com o aparelho Micro-Lab 3500®, sem realização de
broncodilatação prévia.
Variáveis
As variáveis estudadas foram: sexo, idade, IMC, idade de início do tabagismo,
carga tabágica, sintomatologia respiratória, risco profissional para doenças
respiratórias, antecedentes pessoais e familiares de patologia respiratória e
presença de alterações obstrutivas nas pequenas vias aéreas na espirometria.
Foram estudadas oito variáveis nominais dicotómicas relativas a sintomas
respiratórios: tosse frequente, afectação da tosse pelas alterações climáticas,
expectoração frequente, expectoração matinal frequente, tosse com expectoração
independente da presença de infecção respiratória, pieira frequente, dispneia
frequente e astenia frequente, sendo a presença dos sintomas considerada
frequente se estes estivessem presentes pelo menos uma vez por semana.
Considerou-se existente risco profissional para doenças respiratórias sempre
que os indivíduos tivessem trabalhado pelo menos uma vez na vida em actividades
com exposição a poeiras orgânicas, inorgânicas e/ou agentes químicos.
A variável presença de alterações obstrutivas nas pequenas vias aéreas foi
definida como um valor espirométrico de FEF 25-75% < 60%.
Tratamento de dados
Os dados recolhidos foram codificados e registados em base de dados informática
recorrendo ao software Microsoft Excel® e tratados com o software SPSS
(Statistical Package for the Social Sciences), versão 13.0®.
Foram determinados resultados referentes à estatística descritiva e
inferencial.
Utilizou-se o teste de ÷2 para comparação de proporções e o teste t-student
para comparação de médias, tendo sido adoptado um nível de significância de
0,05.
Resultados
Percentagem de fumadores identificados
Num total de 4116 indivíduos, 217 (5,3%) utentes estavam assinalados como
fumadores (7,3% do sexo masculino e 3,6% do sexo feminino).
Caracterização da amostra
A taxa de resposta foi de 72,4% (n = 157).
Todos os participantes responderam ao questionário, não tendo colaborado de
forma satisfatória na realização da espirometria dois indivíduos.
A amostra foi constituída por 49 indivíduos do sexo feminino (31,2%) e por 108
indivíduos do sexo masculino (68,8%), com idade média de 53,85 anos. O IMC
médio foi de 25,75 kg/m2. A idade média de início de tabagismo foi de 16,64
anos. A carga tabágica média foi de 37,78 UMA (unidades maço ano), sendo mais
elevada no sexo masculino ' 42,49 UMA vs 27,37 UMA (Quadro I).
Quadro I ' Caracterização da amostra relativamente a variáveis
sociodemográficas, antecedentes respiratórios e presença de alterações
obstrutivas à espirometria
A presença de pelo menos um dos sintomas respiratórios averiguados foi
encontrada em 68,8% da população estudada. O sintoma mais frequente foi a
pieira frequente (40,1%), seguida da astenia e expectoração frequentes (35,7 e
32,5%, respectivamente) (Fig. 1). Risco profissional respiratório estava
presente em 41 indivíduos (26,1%). Antecedentes pessoais de patologia
respiratória estavam presentes em 21,0% e antecedentes familiares de patologia
respiratória em 23,6% dos indivíduos (Quadro I).
Fig. 1 ' Caracterização da amostra relativamente à sintomatologia respiratória
Dos participantes que realizaram o exame espirométrico de forma satisfatória
(n=155), 30% dos indivíduos apresentaram alterações obstrutivas nas pequenas
vias aéreas.
Factores associados à presença de sintomatologia respiratória
Quadro II ' Determinação das relações estatisticamente significativas entre
sintomatologia respiratória e as restantes variáveis
A frequência de cada um dos sintomas respiratórios avaliados é mais elevada nos
indivíduos com uma maior carga tabágica (p < 0,05) (Quadro II).
A frequência de expectoração matinal é significativamente mais elevada nos
indivíduos com uma idade de inciação tabágica mais baixa (p <0,05). Verificou-
se que existe uma relação estatisticamente significativa entre a presença dos
sintomas respiratórios, expectoração matinal e dispneia e o sexo masculino
(p<0,05), no entanto não foi encontrada qualquer relação entre os outros
sintomas respiratórios avaliados e o sexo (Quadro II).
A presença de risco profissional respiratório, a idade e o IMC não apresentam
nenhuma relação estatística com uma maior frequência de sintomatologia.
Factores associados à presença de alterações obstrutivas
Os indivíduos com alterações obstrutivas apresentaram uma carga tabágica média
superior (p<0,05) e eram mais velhos, em média. Verificou-se não existir
associação estatisticamente significativa entre a presença de alterações
obstrutivas e as variáveis risco profissional (p=0,56), sexo (p=0,86) e idade
de iniciação tabágica (p=0,35). Os indivíduos com alterações obstrutivas tinham
em média um IMC inferior aos indivíduos sem estas alterações (p<0,05) (Quadro
III).
Quadro III ' Determinação das relações estatisticamente significativas entre a
presença de alterações obstrutivas das pequenas vias aéreas e as restantes
variáveis
Quanto à associação entre a presença de alterações obstrutivas nas pequenas
vias aéreas e a presença de sintomatologia respiratória, verificou-se que as
alterações são mais frequentes nos indivíduos que referiam frequentemente
tosse, dispneia, astenia ou pieira (p<0,05). Os restantes sintomas
respiratórios não apresentavam nenhuma relação estatisticamente significativa
com a presença de alterações obstrutivas (Quadro III).
Discussão e conclusões
A percentagem de fumadores identificados por sexo na população estudada (7,3%
nos homens, 3,6% nas mulheres) é bastante inferior à percentagem de fumadores
para esta faixa etária descrita na literatura consultada
6
. Segundo o alto comissariado da saúde, para a faixa etária dos 45-64 anos, a
percentagem de fumadores em 2005/2006, por sexo, foi de 23,8% nos homens e de
5,3% nas mulheres
6
. Este facto alerta para a necessidade de maior sensibilização da classe médica
quanto à problemática do tabagismo, sendo que a primeira etapa do combate ao
tabagismo passa pela identificação e abordagem dos fumadores e pelo seu
aconselhamento
4
. Na presente amostra, o tabagismo é também mais frequente no sexo masculino,
achado concordante com os dados encontrados na literatura consultada
5
. Relativamente à carga tabágica média encontrada para o sexo masculino (42,49
UMA), esta foi bastante superior em comparação com a encontrada num estudo de
uma população de fumadores do sexo masculino com idades compreendidas entre os
40 e os 65 anos realizado na Holanda (24,7 UMA)
11
.
No estudo das relações entre a sintomatologia respiratória e as restantes
variáveis, conclui-se que a primeira é mais frequente no sexo masculino, nos
indivíduos com iniciação tabágica mais precoce e naqueles com maior carga
tabágica. Na relação encontrada entre o sexo e alguns dos sintomas
respiratórios estudados, a variável sexo pode representar uma variável de
confundimento, dada a maior prevalência de fumadores do sexo masculino. Em
virtude das lacunas existentes relativamente a estudos realizados nesta faixa
etária da população fumadora, são poucas as comparações possíveis, limitando
dessa forma a discussão dos resultados apresentados.
Relativamente ao estudo das relações com a variável presença de alterações das
vias aéreas, conclui-se que esta última é significativamente mais frequente nos
indivíduos mais velhos, com carga tabágica mais elevada, e que referiam tosse,
dispneia, pieira e astenia frequentes. Estas relações são suportadas e
concordantes com a evidência científica actual ' a relação encontrada entre a
presença de alterações obstrutivas e a idade está estabelecida e suportada pela
literatura existente, e a carga tabágica tem sido também relacionada em vários
estudos com a sintomatologia respiratória e com a presença de alterações
obstrutivas. Múltiplos estudos realçam o efeito dosedependente da carga
tabágica sobre o declínio da função pulmonar.
No presente estudo, a presença de alterações das pequenas vias aéreas foi mais
frequente nos indivíduos com menor IMC, um achado que discorda de uma relação
recentemente descrita entre a DPOC e a obesidade, segundo a qual a alteração da
expressão e secreção de factores inflamatórios na obesidade induzirá um estado
inflamatório sistémico que poderá estar envolvido na patogénese da DPOC
13
. Estudos adicionais e metodologicamente mais adequados deverão ser conduzidos,
tendo em vista um esclarecimento da relação entre estas duas variáveis.
Apesar das possíveis limitações do estudo, nomeadamente ao nível da adopção de
uma população de estudo pertencente a uma USF (limitando-a aos indivíduos com
médico de família e pelo menos uma visita médica ' viés de selecção) e da
utilização de um questionário aplicado pelos autores (viés de informação), esta
é a primeira avaliação dirigida à caracterização de uma população portuguesa
com risco acrescido de DPOC, o que poderá abrir novos caminhos a estudos nesta
área.
A constatação do subdiagnóstico do tabagismo e um melhor conhecimento das
características desta população de risco alerta para a importância da sua
identificação precoce e permite delinear estratégias para a organização e
implementação de medidas preventivas direccionadas a este grupo específico.
Estas medidas, associadas à melhoria da acessibilidade dos utentes fumadores a
consultas de cessação tabágica, poderão concorrer para uma melhoria da
performanceclínica ao nível da prevenção, diagnóstico e acompanhamento da DPOC.