Enfisema subcutâneo maciço - Tratamento com drenos subcutâneos
Introdução
O enfisema subcutâneo é uma complicação relativamente comum na sequência de
técnicas invasivas, procedimentos cirúrgicos e algumas patologias médicas.
Trata-se habitualmente de uma situação autolimitada
1
.
Mesmo quando grave, raramente tem consequências fisiopatológicas
significativas, apesar de ser extremamente desconfortável para o doente
2
.
O enfisema subcutâneo é, habitualmente, tratado de forma conservadora, e na
maior parte dos casos apenas causa sintomas mínimos. No entanto, pode ser uma
complicação grave, causando obstrução respiratória ou circulatória
3
.
Várias técnicas têm sido utilizadas para tratar o enfisema subcutâneo, muitas
das quais invasivas ou desconfortáveis para o doente e passíveis de causar
ainda maior grau de enfisema.
Os autores descrevem um caso clínico de enfisema subcutâneo maciço e de rápida
instalação, tratado com drenos subcutâneos conectados a sacos de drenagem.
Após a colocação dos drenos, verificou-se uma franca melhoria clínica do
doente, com descompressão eficaz do enfisema subcutâneo.
Caso clínico
Doente do sexo masculino, de 88 anos, reformado (ex-marceneiro), internado no
serviço de pneumologia do HS João com o diagnóstico de pneumotórax espontâneo
secundário à esquerda. Trata-se de um doente fumador (> 70 UMA), seguido em
consulta de pneumologia por DPOC (estádio IV da classificação GOLD) de
predomínio enfisematoso, medicado em ambulatório com broncodilatadores
(formoterol e brometo de tiotrópio) e corticosteróides (budesonido), por via
inalatória. Como outros antecedentes pessoais relevantes, de salientar diabetes
mellitustipo 2, HTA e hiperuricemia.
O doente recorreu ao SU do HS João por agravamento súbito da dispneia habitual
(na admissão, apresentava dispneia em repouso e intolerância ao esforço) e
toracalgia à esquerda, de características pleuríticas, com menos de 12 horas de
evolução. A expectoração era mucosa esbranquiçada, sobreponível ao habitual. Ao
exame físico apresentava-se polipneico e a saturação de O2 em ar era de 85%.
Na auscultação pulmonar verificava-se uma diminuição dos sons respiratórios no
hemitórax esquerdo e sibilos de predomínio expiratório no hemitórax direito. A
telerradiografia torácica (Fig. 1-A) confirmou a presença de pneumotórax à
esquerda, tendo sido efectuada drenagem torácica (dreno de Joly n.º18, na linha
medioclavicular à esquerda). Apesar do correcto posicionamento do dreno
(funcionante e a borbulhar com os movimentos respiratórios), verificou-se uma
expansão apenas parcial do pulmão esquerdo (Fig. 1-B).
Fig. 1 ' Telerradiografia torácica na admissão (A) e após colocação do dreno
torácico (B)
O doente foi internado no serviço de Pneumologia, medicado com oxigenoterapia,
corticoterapia sistémica e terapêutica broncodilatadora por via inalatória. Ao
3.º dia de internamento, por manter fístula broncopleural e câmara de
pneumotórax apical à esquerda, o dreno torácico foi conectado a aspiração de
baixa pressão ( - 20 cmH2O).
Ao 6.º dia de internamento ocorreu saída acidental do dreno torácico, com
agravamento da dispneia e desenvolvimento de extenso enfisema subcutâneo. Como
o doente mantinha câmara de pneumotórax apical à esquerda, foi colocado novo
dreno torácico (Joly n.º 24) na linha medioclavicular esquerda, sendo conectado
a aspiração de baixa pressão, mantendo-se sempre funcionante e a borbulhar
abundantemente com os movimentos respiratórios.
Ao 9.º dia de internamento verificou'se novo agravamento clínico, com aumento
da dispneia em repouso, dessaturação significativa e aumento marcado do
enfisema subcutâneo. A telerradiografia torácica mostrou manutenção da câmara
de pneumotórax apical à esquerda. Foi colocado novo dreno torácico (Joly n.º
18) no segundo espaço intercostal esquerdo, na linha axilar anterior (Fig. 2).
Ambos os drenos ficaram funcionantes, a borbulhar com os movimentos
respiratórios, tendo sido conectados a aspiração de baixa pressão. Por não
melhoria clínica, com persistência de enfisema subcutâneo maciço (enfisema da
face condicionando encerramento palpebral bilateral, do pescoço, do tórax e de
ambos os membros superiores) e voz nasalada, foi efectuada TC torácica (Fig.
3), que mostrou enfisema subcutâneo extenso, pneumopericárdio e
pneumomediastino, pneumotórax à esquerda de grau moderado, enfisema parasseptal
e centrilobular difuso com bolhas apicais de grandes dimensões. Perante estes
dados, foi solicitada a avaliação por Cirurgia Cardiotorácica que, dada a
gravidade da DPOC, considerou que o doente não reunia as condições necessárias
para ser submetido a tratamento cirúrgico.
Fig. 2 ' Telerradiografia torácica ao 9.º dia de internamento
Fig. 3 ' Corte de TC torácica
Apesar dos dois drenos torácicos se encontrarem funcionantes, não se verificou
melhoria do enfisema subcutâneo.
Ao 21.º dia de internamento foi então decidido colocar dois drenos subcutâneos
Joly n.º 12, em ambos os lados da parede torácica (Fig. 4). Após anestesia
local, os drenos foram colocados em posição subcutânea, através de dissecção
romba, tendo sido posicionados na região torácica anterior, sobre o 3.º espaço
intercostal. Seguidamente, foram fixados à pele com seda 2/0 e adaptados sacos
de drenagem. O ar foi recolhido nos sacos de drenagem, que tiveram de ser
substituídos três vezes. Após a colocação dos drenos subcutâneos, verificou-se
descompressão efectiva do enfisema subcutâneo, com resolução completa do mesmo
em três dias. Os drenos foram retirados ao fim de cinco dias, após ter cessado
a saída de ar para os sacos colectores (Fig. 5). Não se verificaram
complicações associadas ao procedimento.
Fig. 4 ' Dreno subcutâneo (dreno de Joly n.º 12 conectado a saco de drenagem)
Fig. 5 ' Aparência do doente, previamente à colocação de drenos subcutâneos
(A); após colocação dos drenos subcutâneos (B); após retirada dos drenos
subcutâneos, sem evidência de enfisema (C e D)
A persistência de fístula broncopleural motivou a realização de broncoscopia
rígida, na tentativa de encerramento da mesma com cola de fibrina, que não
surtiu efeito (entubação com broncoscópio rígido 8.5mm; identificação de
fistula através da introdução de balão Fogarty n.º 4 pelo broncofibroscópio;
verificada redução do débito da fistula com a oclusão do segmento 8 da pirâmide
basal esquerda; introdução de 2 ml de cola de fibrina (Tissucol®) através de um
cateter de duplo lúmen nesse segmento, com ausência de fístula durante o
período em que o doente esteve sob ventilação com jet;reaparecimento da fístula
com a ventilação espontânea).
O encerramento da fístula broncopleural, com expansão pulmonar à esquerda na
telerradiografia torácica, viria a ocorrer espontaneamente. Ambos os drenos
torácicos foram retirados ao 54.º dia de internamento, após terem estado
clampados durante 72h.
O doente teve alta, orientado para consulta externa de Pneumologia, sem
evidência de enfisema subcutâneo, apresentando apenas ligeira dor no local de
inserção dos drenos torácicos e dispneia para médios esforços.
Discussão
O enfisema subcutâneo é habitualmente uma situação autolimitada
1
.
A fuga de ar para o espaço extraalveolar pode provocar enfisema subcutâneo,
pneumomediastino, pneumopericárdio, pneumotórax e enfisema pulmonar
intersticial.
As consequências clínicas dependem da velocidade de acumulação e da quantidade
de ar no órgão envolvido
4
.
O pneumomediastino e o enfisema subcutâneo têm relativamente poucas
consequências, excepto nas raras situações envolvendo compressão das vias
aéreas superiores ou grandes vasos
4
.
O envolvimento da hipofaringe, suficiente para causar obstrução da via aérea, é
raro
5,6,7
.
O mecanismo de formação do enfisema intersticial pulmonar, pneumomediastino e
enfisema subcutâneo, foi estudado experimentalmente. Em estudos com vários
tipos de doenças e em modelos animais, foi demonstrado que o ar extraalveolar,
proveniente da ruptura de alvéolos, penetra no tecido conjuntivo laxo que
rodeia a vasculatura pulmonar e progride ao longo das bainhas perivasculares
até atingir o mediastino.
Posteriormente, o ar passa do mediastino para o tecido laxo subcutâneo,
causando enfisema subcutâneo
2
. O ar progride ao longo das vias de menor resistência
8
.
A ruptura de bolhas de enfisema pode provocar enfisema do mediastino, que se
acompanha habitualmente de pneumotórax
9
.
Como causas médicas comuns de enfisema mediastínico e subcutâneo salientamos:
manobra de Valsalva, tosse violenta, vómitos, asma agudizada e pneumonia
associada a infecções víricas
10
.
Vários casos têm sido relatados na sequência de traqueostomias percutâneas
8
, artroscopias, cirurgia cardiotorácica e ventilação mecânica invasiva.
No caso clínico apresentado, a saída acidental do primeiro dreno torácico terá
possibilitado a deslocação do ar da cavidade pleural para o tecido subcutâneo,
através do local de inserção do dreno. O gradiente de pressão existente entre
os alvéolos e o tecido subcutâneo, resultante do air-trappingalveolar
secundário à DPOC, poderá igualmente justificar o desenvolvimento do enfisema
subcutâneo maciço apresentado pelo doente.
O enfisema subcutâneo, mesmo quando severo, é habitualmente apenas um problema
estético
2
.
A disfagia, a disfonia, a compressão dos grandes vasos do pescoço com
compromisso do retorno venoso e as alterações visuais provocadas por tumefacção
periorbital são complicações que podem estar associadas ao desenvolvimento de
enfisema subcutâneo
11
.
As complicações mais graves têm sido raramente descritas. Elas incluem
insuficiência respiratória
4,12
, disfunção de pacemaker
13,14
, compromisso da via aérea e fenómenos de tensão.
As consequências do enfisema subcutâneo dependem do local envolvido:
' Hipofaringe: compressão das vias aéreas superiores causando obstrução aguda
5,6,7
. Pode ocorrer compressão venosa jugular, com consequente redução do
outputcardíaco (diminuição do retorno venoso) e aumento da pressão
intracraniana
15,16
.
' Parede torácica: envolvimento da parede torácica levando à restrição da
ventilação
4,12,15,17
. Pode ocorrer disfunção de pacemaker
13,14
.
' Mediastino: diminuição do outputcardíaco por compressão do coração e grandes
vasos
11,15
.
Na grande maioria dos doentes o enfisema subcutâneo resolve espontaneamente ao
fim de alguns dias
1,8
. A oxigenoterapia em alto débito acelera a resolução facilitando a reabsorção
do nitrogénio dos tecidos distendidos e do pneumomediastino
7,18
.
Têm sido utilizadas várias técnicas para tratar o enfisema subcutâneo, muitas
das quais invasivas ou desconfortáveis e passíveis de agravar o enfisema.
Incluem a colocação de drenos torácicos adicionais, quer intrapleurais quer
subcutâneos
19
, incisões infraclaviculares
20
e traqueostomia
21
.
Quando o doente apresenta enfisema subcutâneo maciço e de rápida evolução, pode
ser necessário o recurso a entubação ou traqueostomia, para manutenção da
patência da via aérea
21,22
.
Comparado com a traqueostomia ou entubação, a drenagem subcutânea é um
procedimento mais simples, menos invasivo e menos desconfortável
3
.
As incisões cutâneas infraclaviculares têm sido usadas para tratamento do
enfisema subcutâneo. Esta técnica consiste na realização de várias pequenas
incisões na pele do tórax com dissecção do tecido subcutâneo.
No entanto, a incisão pode fechar num estádio precoce, quando a pressão
subcutânea resolveu parcialmente, deixando algum enfisema subcutâneo residual
3,20
.
A inserção subcutânea de um cateter endovenoso com fenestrações tem sido muito
utilizada como forma de microdrenagem do enfisema subcutâneo
2,23
. No entanto, dado o pequeno calibre do cateter, ele pode obstruir com sangue,
sendo necessária a sua substituição
3
. A colocação do cateter também pode não ser suficiente para alívio
sintomático, sendo necessário efectuar massagem compressiva para direccionar o
ar, permitindo a sua saída através do cateter
23
.
O uso de tubos semirrígidos de maior calibre ou tubo tipo toracostomia também
já foi descrito
24,25
.
Matsushita et aldescreve a colocação, sob anestesia local, de drenos de
silicone de Penrose, com múltiplas perfurações, a nível da linha
medioclavicular, no terceiro espaço intercostal, em ambos os lados do tórax. O
tecido celular subcutâneo é dissecado até ao nível da fascia peitoral. Os
drenos são fixados à pele com suturas e conectados a sacos de colostomia
3
. Estes drenos são menos desconfortáveis e menos dolorosos quando comparados
com os tubos semirrígidos. São também mais eficazes em termos de drenagem do
ar, quando comparados com os cateteres endovenosos, não apenas pelo seu maior
calibre, mas também porque a dissecção do tecido subcutâneo previamente à sua
inserção facilita a drenagem do ar. A conexão dos drenos a sacos de colostomia
permite objectivar a quantidade de ar removida, podendo o doente continuar a
movimentar-se
3
.
A técnica de drenagem subcutânea utilizada no presente caso clínico mostrou-se
de fácil execução, não dolorosa e confortável para o doente, tendo-se
verificado descompressão rápida do enfisema subcutâneo com desaparecimento da
disfonia e abertura progressiva dos olhos, o que condicionou uma franca
melhoria física e psíquica do doente. A conexão dos drenos subcutâneos a sacos
de drenagem permitiu objectivar a quantidade de ar removida.
Conclusão
Tal como já previamente descrito, o enfisema subcutâneo maciço pode ser tratado
através da inserção de drenos subcutâneos conectados a sacos de drenagem.
Recomendamos esta técnica como forma de resolução segura, simples, rápida e
eficaz de uma complicação que, apesar de raramente grave, é desconfortável e
desfigurante para o doente.