Pneumonia a Varicella zoster
Introdução
A varicela, doença altamente contagiosa, é a infecção primária causada pelo
vírus Varicella zoster(VVZ), um vírus ADN pertencente à família Herpesviridae.
A varicela no adulto associa-se a considerável morbi mortalidade. Das múltiplas
complicações da varicela, a pneumonia a VVZ (PV) é a complicação mais grave e
mais frequente nos adultos, sendo potencialmente fatal. As chaves no tratamento
da pneumonia a Varicella zosterpassam pela precocidade do diagnóstico e na
instituição de terapia adequada. O aciclovir constitui o fármaco de 1.ª linha,
apesar da inexistência de evidência da sua eficácia. A corticoterapia tem vindo
a ser cada vez mais preconizada. Aquando da necessidade de suporte
ventilatório, a utilização de PEEP (positive end-expiratory pressure)elevado é
relevante.
Patogénese
Os dados disponíveis sobre a fisiopatologia da varicela são limitados. Não se
sabe ao certo a porta de entrada do VVZ no nosso organismo ' conjuntivas,
faringe ou pulmões ', após o que se segue um período de incubação médio de
cerca de 15 dias. O VVZ multiplica-se inicialmente nos gânglios regionais e
cerca de 4-6 dias depois ocorre a primeira viremia subclínica, durante a qual
se verifica disseminação visceral. O vírus passa então a replicar-se no sistema
reticuloendotelial, sobretudo a nível dos macrófagos1, ocorrendo a segunda
viremia, aproximadamente 14 dias após a infecção, com disseminação vírica à
mucosa da nasofaringe e à pele, manifestando-se sob a forma do típico exantema
maculopapulovesicular10. O VVZ transmite-se por gotículas da nasofaringe e,
menos frequentemente, por contacto directo a partir do líquido das vesículas de
varicela e da zona
7
. O contágio pode ocorrer de 1 a 2 dias antes do aparecimento do exantema até
48h após formação da última crosta7.
A infecção primária é habitualmente ligeira e os sintomas duram cerca de uma
semana, conferindo imunização vitalícia7. A disseminação pulmonar do VVZ,
ocorrida aquando da segunda viremia, produz uma pneumonite intersticial
disseminada com consolidações hemorrágicas dispersas. As alterações
histopatológicas manifestam-se como uma florida reacção imune, caracterizada
por infiltrados intersticiais de células mononucleadas, edema septal,
destruição do endotélio capilar, necrose fibrinóide, preenchimento alveolar por
fluido proteináceo rico em eritrócitos e células mononucleadas. Os infiltrados
neutrofílicos são inespecíficos e sugestivos de sobreinfecção bacteriana.
Epidemiologia
Apesar de apenas 7% dos adultos serem seronegativos1, desde a década de 80 que
a incidência da infecção em adultos tem vindo a aumentar, a par do aumento de
admissões hospitalares e da mortalidade. Embora ocorram pouco mais de 2% dos
casos em adultos, a doença é mais severa e as complicações são 25 vezes mais
frequentes do que nas crianças7, particularmente as neurológicas e as
respiratórias.
A PV foi reconhecida como entidade clínica em 1942. Apesar de rara, é a
complicação mais frequente e mais grave da varicela nos adultos1,
3
, apresentando uma incidência aproximadamente de 1 por cada 400 casos de
infecção1, ou seja, cerca de 25 vezes a das crianças. Entre 5 a 50% de todos os
casos de PV
2
,3,21 ocorrem em adultos previamente saudáveis, maioritariamente da 3.ª à 5.ª
décadas de vida. Consideram-se factores de risco para o desenvolvimento de
pneumonia: tabagismo7,
11
,
12
,
17
,21, gravidez (sobretudo 2.º e 3.º trimestres)1,7,11,12,21, compromisso
imunológico1,7,11,21, idade avançada10,21, convívio próximo com o caso-índice1,
sexo masculino11 e doença pulmonar crónica1,12,21. Outras variáveis associadas
ao desenvolvimento de PV foram: febre superior a 38,3.ºC17, lesões cutâneas em
número superior a 10017 ou exantema cutâneo/hemorrágico severo21, enantema da
cavidade oral17, hepatite17 e migração de áreas de baixa prevalência de VVZ7. A
presença de mais que um factor de risco associa-se a progressão para PV severa
e constitui factor preditivo para admissão em UCI12.
O risco aumentado nos fumadores parece estar relacionado com o efeito do tabaco
sobre os macrófagos pulmonares, tornando estes indivíduos mais susceptíveis à
infecção pelo VVZ12. Alguns autores referem que, em relação aos casos de
varicela no adulto, cerca de 50% dos fumadores desenvolvem pneumonia, em
contraposição com 3% dos não fumadores3.
A incidência de pneumonia entre grávidas com varicela é de 9 a 40% e
habitualmente severa1,3,7. A PV foi também reconhecida como relativamente comum
em doentes imunocomprometidos (Quadro I). Tem-se verificado maior incidência
nos receptores de transplante de medula óssea (até 50%) e nas crianças com
neoplasias (até 20% na leucemia e 32% nos tumores sólidos).
Quadro I– Factores contribuintes de risco acrescido para desenvolvimento de
pneumonia a varicela
A varicela é particularmente severa em indivíduos imunocomprometidos, para os
quais o risco de disseminação visceral é elevado (30 a 50%), encontrando-se
significativamente aumentada nos casos de doença de enxerto vshospedeiro. O
risco para PV é também superior. O período de contágionestes doentes prolonga-
se várias semanas10 e a cura demora até o triplo do tempo. O melhor factor
preditivo de disseminação pulmonar encontrado foi a contagem absoluta de
linfócitos (CAL) aquando da infecção, ocorrendo em 48% dos doentes com CAL
inferior a 500 células/μL e em 21% dos que apresentavam CAL superior a 500
células/μL. Com o declínio da CAL, o risco para PV aumenta, atingindo os 71%
para CAL inferior a 100 células/μL. Em conformidade, o risco de mortalidade
passou de 7% nos casos com CAL superior a 500 células/ μL para 29% naqueles com
CAL inferior a 100 células/μL.
Relativamente à mortalidade, à PV no adulto não tratada está associada uma
pesada taxa de 10 a 30%3,11, sendo mais elevada nos imunocomprometidos e nas
grávidas (entre 30 e 40%2), chegando mesmo a atingir os 50% se falência
respiratória com necessidade de ventilação mecânica invasiva (VMI)11. A idade
superior a 65 anos, o compromisso do estado imunológico e a falência renal
aguda parecem favorecer o aumento da mortalidade por PV.
A mortalidade por PV, antes da introdução do aciclovir, variava entre 7 e
19%1,12. Contudo, tem-se verificado uma diminuição da mortalidade por PV (de
19% nas décadas de 60-70 para 6% na de 9011). Esta melhoria parece estar
relacionada não somente com a disponibilidade e instituição precoce do anti-
vírico, bem como com a maior experiência por parte dos profissionais de saúde,
com a maior precocidade do diagnóstico e com o melhor suporte respiratório nas
UCI.
Clínica
Na maioria dos casos, o exantema característico estabelece o diagnóstico
clínico, frequentemente em associação com história recente de exposição. O
diagnóstico diferencial de varicela passa por: reacções alérgicas (síndroma de
Stevens-Johnson), zona generalizada, infecções por herpes simplexou
enterovírus, rickettsiose vesiculosa, pitiríase liquenóide e varioliforme aguda
e psoríase gutata.
O diagnóstico de PV é dificultado pela baixa frequência de sintomatologia
típica (101,7 a 25%1 dos doentes). Constituem sinais precoces de risco para
desenvolvimento de pneumonia a erupção continuada de novas lesões, a
persistência da febre e a ocorrência de tosse de novo3. Febre, tosse, dispneia/
taquipneia, toracalgia pleurítica e hemoptises são apanágio de infecção
pulmonar severa. Em 50 a 75% dos doentes, a pneumonia é acompanhada ou
precedida em 1 a 2 dias por dor abdominal ou dorsolombar severa e por vezes
persistente, tipo neuropático, de origem vírica ou imunológica. O exame
objectivo pode revelar adicionalmente alteração do estado mental, sinais de
dificuldade respiratória, crepitações bibasais e inevitavelmente o exantema
característico, uma vez que a pneumonia se estabelece cerca de 1 a 6 dias após
o mesmo e só muito raramente antes. As vesículas geralmente visualizam-se
também no palato e vias respiratórias superiores, mediante laringoscopia.
Exames complementares de diagnóstico
Analiticamente, é frequente encontrar-se trombocitopenia moderada, hiponatremia
e elevação das transaminases7, das enzimas musculares e da amilase. Menos
frequentemente, pode verificar-se disfunção renal.
O VVZ pode ser identificado mediante cultura (requer 3 a 5 dias),
indirectamente por PCR ou testes antigénicos rápidos de imunofluorescência
indirecta (resultados em 1-2h). Os testes serológicos permitem obter resultados
mais tardios, sendo o FAMA (fluorescent antibody to membrane antigen)tido como
gold standard.Podem ocorrer reacções cruzadas com o vírus herpes simplex tipo 1
(VHS1), indicativo de homologia de sequência de aminoácidos da glicoproteina B
do invólucro vírico10. A ocorrência de reacções cruzadas com o VHS1, a não
definição do tempo para seroconversão e o facto de a inexistência de anticorpos
não excluir infecção podem condicionar dificuldades na interpretação dos testes
serológicos.
A realização/monitorização da oximetria é um procedimento muito importante no
reconhecimento precoce de PV, uma vez que a hipoxemia precede frequentemente a
dispneia e os achados radiológicos12, constituindo um sinal de alerta para
gravidade clínica. A gasometria arterial evidencia frequentemente insuficiência
respiratória tipo 1 com normocápnia7.
A radiografia do tórax deve ser realizada a todos os adultos com varicela
6
,7. Em 1965, num estabelecimento militar norte-americano, 16% dos indivíduos
com varicela apresentavam alterações radiológicas1,7,21, dos quais apenas ¼ se
encontravam sintomáticos. Pode revelar infiltrado reticulonodular difuso, mas
poupando os vértices. Inicialmente, os nódulos apresentam diâmetros de 2 a 5 mm
e são mais facilmente visualizados à periferia ou no perfil. Com a progressão
da doença, os nódulos aumentam e coalescem, resultando em infiltrados extensos.
Nos casos ligeiros, os infiltrados podem resolver em 3 a 5 dias, enquanto nas
formas disseminadas e severas podem persistir durante várias semanas. São
achados pouco frequentes nas fases iniciais: derrame pleural, adenopatias
hilares e pneumotórax. O diagnóstico diferencial coloca-se com as diversas
causas de infiltrados reticulonodulares (Quadro II). A extensão das alterações
radiológicas não tem correlação directa com a severidade da morbilidade
pulmonar (PaO2/FiO2), mas parece reflectir a intensidade do exantema7.
Quadro II – Causas principais de Infi ltrado reticulo nodular – diagnóstico
radiológico diferencial com PV
A tomografia computorizada (TC) torácica permite a visualização de nódulos
isolados, nódulos com imagem em vidro despolido circundante, imagens em vidro
despolido isoladas e lesões coalescentes. Sugere-se a sua realização para
avaliação do envolvimento pulmonar em doentes com varicela e sintomas
respiratórios, mas sem alterações na radiologia convencional
14
. A broncoscopia permite observação de lesões vesiculares brônquicas. O lavado
bronco broncoalveolar apresenta aumento de contagem absoluta de linfócitos e
diminuição da relaçãoCD4/CD8 6,7.
Tratamento
Perante um doente com sinais de dificuldade respiratória, deve instituir-se
imediatamente oxigenoterapia de alto débito e mantê-lo sob vigilância clínica e
oximetria de pulso contínua. As opções terapêuticas no caso de falência
respiratória incluem ventilação mecânica não invasiva (pressão positiva
contínua ' CPAP ou binível ' BIPAP) e VMI7. Alguns autores advogam que a
frequência respiratória na admissão pode ter valor preditivo para a necessidade
de suporte ventilatório. Os doentes submetidos a VMI beneficiam de PEEP elevada
e, eventualmente, de prone positionpara optimização da função diafragmática e
da relação V/Q. Numa série de 7 doentes com falência respiratória refractária,
a modalidade de ventilação convencional, foi instituída oxigenação por membrana
extracorpórea, com boa resposta em 5 doentes8.
Dada a elevada prevalência de infecções bacterianas secundárias, os
antibióticos são frequentemente utilizados de acordo com o estado imunológico
do doente e com a estirpe e sensibilidade identificadas. A aplicação tópica de
clorhexidina pode reduzir a colonização cutânea por microrganismos Gram
positivos7. O aciclovir é de uso mandatório em doentes com risco de doença
severa (imunocomprometidos, recém-nascidos de mães com varicela no periparto)
e/ou complicações. É recomendado o seu uso no caso de indivíduos com idade
superior a 13 anos, crianças com mais de 1 ano com patologia crónica (pulmonar
ou cutânea) e em utilizadores crónicos de salicilatos10. O aciclovir demonstrou
reduzir a mortalidade em indivíduos com varicela complicada por pneumonia, quer
em imunocompetentes, quer em imunocomprometidos e grávidas7,
13
. Tem maior eficácia se administrado por via intravenosa e nas primeiras 72h de
doença10 ou nas primeiras 24h de exantema7, associando-se a melhoria clínica
(desaparecimento da febre e taquipneia), da oxigenação e a uma mais rápida
resolução da pneumonia. Para o tratamento da pneumonia, a via de administração
preferida é a intravenosa3, na dose de 5-15 mg/kg cada 8h, durante 7-10 dias.
Embora menos sensível ao aciclovir que o VHS, o VVZ é inibido para
concentrações séricas do aciclovir de 0,08 a 1,2mg/L, sobejamente alcançadas
pelas doses preconizadas. A dose deve ser ajustada na insuficiência renal,
devido à potencial nefrotoxicidade.
Outros efeitos secundários importantes são o desenvolvimento de flebites nos
locais de infusão, disfunção neurológica (desorientação, tremores) e elevação
das transaminases. A resistência do VVZ ao aciclovir é pouco frequente, tendo
sido relatada sobretudo entre doentes infectados pelo VIH, podendo utilizar-se
em alternativa o foscanert por via intravenosa. Os pró-fármacos do aciclovir
(valaciclovir e famciclovir) apresentam biodisponibilidde oral acrescida de 60
e 80%, respectivamente, em comparação com o aciclovir. Uma vez que as
concentrações mínimas inibitórias para o VVZ não são alcançadas com a
administração do aciclovir por via oral, no ambulatório é preferível a
utilização do valaciclovir (pró -fármaco disponível em Portugal), 1g cada 8
horas durante 7-10 dias.
A utilização de corticosteróides como coadjuvantes no tratamento da PV, se bem
que controversa, é advogada pela maioria dos autores. Os corticóides exercem
modulação da resposta inflamatória intrapulmonar e têm demonstrado sucesso
noutras doenças infecciosas e não infecciosas (tuberculose pulmonar miliar,
Pneumocystis jirovecii, vasculite, aspiração de conteúdo gástrico, fase
fibroproliferativa do ARDS), limitando a deterioração da função respiratória11.
Num estudo retrospectivo e prospectivo envolvendo 15 doentes com PV, em que a 6
deles foi administrado 200mg de hidrocortisona intravenosa cada 6h durante 48h,
com início nas primeiras 24h de admissão na UCI, verificou-se diminuição da
duração do internamento (quer na UCI, quer hospitalar) e da mortalidade.
Ocorreu também uma mais rápida recuperação radiológica e das trocas gasosas,
bem como menor número de complicações11. Os corticóides parece modificarem a
resposta inflamatória que o vírus desencadeia sobre o parênquima pulmonar
quando administrados precocemente11. Há necessidade de realizar estudos
randomizados para aferir o grau de evidência da utilidade dos corticosteróides
na PV.
Profilaxia
O VVZ tem baixa variabilidade molecular, só tendo sido identificados três
genótipos majoraté à data10, já todos completamente sequenciados. A vacina, de
vírus vivo atenuado, é cerca de 80 -85% eficaz contra a doença de uma forma
geral e altamente eficaz (> 95%) na prevenção de casos graves10.
Em Portugal não está incluída no Plano Nacional de Vacinação, existindo no
mercado duas formulações da vacina disponíveis. A Sociedade Portuguesa de
Pediatria recomenda a vacinação de crianças com idade superior a 2 anos e
doença crónica (fibrose quística, diabetes, etc.) e de adolescentes não imunes
e advoga a realização de estudos custo/benefício para a vacinação universal.
Com a implementação em 1995 do programa de vacinação na infância nos EUA, a
mortalidade relacionada com a varicela sofreu uma quebra dramática (de 0,41/
1 000 000 para 0,14/1 000 000 habitantes, p<0,001)
9
, verificando-se concomitantemente redução da incidência da doença,
complicações e admissões hospitalares10,
18
,
19
. Contudo, a maioria das mortes que continuam a ocorrer são entre indivíduos
sem factores de alto risco e elegíveis para vacinação9. A vacina está
contraindicada nos indivíduos imunossuprimidos e nas grávidas. Na Europa tem
aprovação para indivíduos imunocomprometidos com mais de 1200 linfócitos/μL10.
A vacina também tem eficácia na pós-exposição, prevenindo e modificando a
varicela em cerca de 96% dos indivíduos expostos, se administrada nas primeiras
72h, ou em 67% dos casos se administrada nos primeiros 5 dias10.
A imunização passiva com a IGVZ (imunoglobulina anti-varicela zoster) reduz a
incidência de varicela clínica em 50% dos doentes quando administrada nas
primeiras 72 a 96h de exposição, ao prevenir a progressão da doença antes da
primeira viremia. Os restantes 50% apresentam formas ligeiras ou subclínicas.
Contudo, em pequena percentagem de doentes imunocomprometidos, pode ocorrer
pneumonia, devendo este subgrupo ser tratado com aciclovir3. A IGVZ está
indicada para grávidas, recém-nascidos cujas mães contraíram varicela até 7
dias antes a 2 dias após o parto, indivíduos imunocomprometidos e para
profissionais de saúde não imunes após exposição ocupacional. Um estudo japonês
de 1993, não controlado e não randomizado, sugere que a administração de
aciclovir entre o 7.º e o 9.º dias do período de incubação previne a varicela3.
Existem poucos estudos em doentes imunocomprometidas, mas a implementação de
aciclovir em altas doses em associação com a IGVZ ou isoladamente (janela
temporal para administração IGVZ ultrapassada) pode ter a sua utilidade neste
grupo de alto risco.
Complicações e sequelas pulmonares
As infecções bacterianas ou sépsis devido a sobreinfecção pulmonar ou cutânea
ocorrem em 25-50% dos doentes com PV3,7. Os cocos Gram-positivos (sobretudo,
Streptococcusâ-hemolíticos do grupo A e Staphylococcus aureus) são os agentes
etiológicos principais nos doentes com contagem de neutrófilos superior a 500/
μL. Aquando de neutropenia (<500/μL), o risco de infecção aumenta, nomeadamente
por bacilos entéricos Gram-negativos e fungos.
Nos doentes ventilados verifica-se maior risco de infecções nosocomiais3 e de
desenvolvimento de pneumomediastino e pneumotórax3. A hemorragia pulmonar,
complicação tardia, resulta da lesão difusa e necrose focal de grandes vasos,
frequentemente acompanhada de coagulação intravascular disseminada3. Do
conjunto de sequelas pulmonares descritas em indivíduos com passado de PV, os
defeitos de difusão de CO3, a diminuição da tolerância ao exercício3 e o
desenvolvimento de padrão restritivo3,7 são as que cursam com maior
incapacidade, porém apresentam evolução favorável. Podem ainda manter-se
durante anos nódulos de tecidos moles7 e, decorridos 2 anos, é frequente a
observação de microcalcificações pulmonares miliares residuais, com cerca de 2-
3mm3,7, em radiografia do tórax.
Caso clínico
Indivíduo de 38 anos, sexo masculino, fumador (15 UMA), recorre ao serviço de
urgência em 14/02/2006 por quadro, com três dias de evolução, composto por
epigastralgia, odinofagia e exantema. A apresentação cutânea consiste em lesões
papulares localizadas ao tronco com subsequente distribuição centrífuga e
generalização, com evolução simultânea para vesículas. É admitido o diagnóstico
de varicela, sendo medicado com omeprazol e ebastina para o ambulatório. Dois
dias depois é reencaminhado ao SU por agravamento das lesões cutâneas e
disfonia ligeira, havendo ainda referência a tosse seca e sudorese nocturna.
Ao exame objectivo apresentava-se com normal estado mental, corado, hidratado,
anictérico, eupneico, febril (temperatura axilar = 38,5.ºC), normotenso, com
placas brancas destacáveis na mucosa da cavidade orofaríngea compatíveis com
candidíase, sem alterações auscultatórias cardio pulmonares e com exantema
maculopapulovesicular generalizado. Analiticamente apresentava trombocitopenia
moderada (86 000 × 109/L), hipoprotrombinemia (70%), citólise hepática com TGO
de 560 UI/L e TGP 698 UI/L, LDH de 2042 UI/L e PCR de 0,4 mg/dL. A radiografia
do tórax revela um infiltrado micronodular bilateral. O doente é internado no
serviço de Medicina Interna, admitindo-se candidíase orofaríngea e exantema a
esclarecer, instituindo-se terapêutica com fluconazol.
No primeiro dia de internamento (D1) verificam-se baixos valores da oximetria
de pulso, com evidência de insuficiência respiratória tipo I (pH 7,422, pCO2 34
mmHg, pO2 50,8 mmHg, HCO3 22,6 mMol/L, SpO2 87,1%). Inicia-se oxigenoterapia
suplementar com FiO2 de 50%, com boa resposta gasimétrica. Por apresentar
serologia compatível com infecção aguda por citomegalovírus (CMV), admite-se
infecção diseminada a CMV e institui-se terapia com Ganciclovir e profilaxia de
sobre infecção bacteriana com flucloxacilina. As serologias para VIH, VHB, VHC
e VDRL resultam negativas.
Ao D2, apresenta agravamento clínico e radiológico, com exantema mais
exuberante (Figs. 1-4). Este caracteriza-se por lesões em diversas fases de
evolução (pápulas eritematosas, vesículas claras, vesículas com conteúdo turvo,
vesículas com umbilicação central, vesículas com zona central necrótica e
pústulas), algumas com 1 cm de maior diâmetro, localizado preferencialmente à
face, pescoço e couro cabeludo e com preservação das plantas e palmas.
Adicionalmente, desenvolve edema periorbitário bilateral e dos tecidos moles do
pescoço; adenomegalias submandibulares, laterocervicais e cervicais posteriores
fusiformes, elásticas e dolorosas; febre elevada; taquipneia e fervores
crepitantes bibasais à auscultação pulmonar.
Fig. 1 – Edema periorbitário bilateral e dos tecidos moles do pescoço
Fig. 2 – Enantema da cavidade oral
Fig. 3
Figs. 3 e 4 – Exantema exuberante com lesões em diversas fases de evolução
(pápulas eritematosas, vesículas claras, vesículas com conteúdo turvo,
vesículas com umbilicação central, vesículas com zona central necrótica e
pústulas), algumas com 1 cm de maior diâmetro. Localizado preferencialmente à
face, pescoço e couro cabeludo e com preservação das plantas e palmas
A radiografia torácica revela agravamento do infiltrado reticulonodular
bilateral (Fig. 5). Perante insuficiência respiratória, hipoxemia com
necessidades crescentes de oxigenoterapia suplementar, o doente é admitido na
UCIP. É conectado a prótese ventilatória, na modalidade de volume controlado e
com necessidade de PEEP elevado ' 10 cmH2O e FiO2 de 80%, para uma PaO2/FiO2 de
205 mmHg. Admitida Pneumonia aVaricella zoster,institui-se aciclovir 10 mg/kg
ev 8/8h e prednisolona 60mg oral id.
Fig. 5 – Radiografia do tórax – Infiltrado intersticial difuso bilateral com
padrão nodular
Realiza endoscopia digestiva alta e ecografia cervical constatando-se
espectivamente esofagogastroduodenite erosiva, com lesões sugestivas de
atingimento esofágico por VVZ (excluindo-se lesões por cândida) e adenite das
glândulas salivares, adenopatiase celulite do pescoço.
Ao D4, objectiva-se agravamento da relação PaO2/FiO2 para 160 mmHg, pelo que se
admite ARDS primário. Posteriormente, verifica-se evolução favorável do quadro
clínico, com diminuição progressiva da temperatura central, inicialmente de
41.ºC; resolução do edema cervical; regressão parcial do exantema, controlo da
sobreinfecção bacteriana cutânea com ácido fusídico e iodopovidona; melhoria do
infiltrado radiológico e da relação PaO2/FiO2, permitindo o desmame do
ventilador a partir do D6 e extubação com sucesso ao D7. Manteve estabilidade
eléctrica e hemodinâmica, bem como função renal e natremia normais. As
serologias para VVZ, CMV e HSV1+2 foram positivas e compatíveis com infecção
recente. Ao D7 regressa à enfermaria de medicina onde tem como intercorrência
pneumonia nosocomial necrotizante do LID sem agente isoladotratada com
piperacilina+tazobactam (Fig. 6). Tem alta após 25 dias de internamento,
mantendo condensação radiológica com cavitação central em resolução.
Fig. 6 – Radiografia do tórax – Condensação pneumónica à base do pulmão
direito, com cavitação central e nível
Na primeira consulta de seguimento é medicado com amoxicilina+ácido clavulânico
por tosse produtiva.
Na segunda consulta, 23 dias após a alta, é reinternado por suspeita de
tuberculose pulmonarno contexto de febrícula e tosse produtiva arrastadas, com
referência a toracalgia pleurítica na base direita com três dias de evolução.
Durante o segundo internamento, realizou-se TC torácica que revelou uma massa
sólida de morfologia triangular e base externa nos segmentos posteriores do LID
compatível com consolidação parenquimatosa escavada e abcedada ou lesão tumoral
necrosada (Fig. 7); broncofibroscopia com observação de grande quantidade de
secreções grumosas nas árvores brônquicas, resultando a pesquisa de células
neoplásicas negativa e o exame de amostra de biópsia transbrônquica revelando
processo inflamatório intenso, misto, sem especificidade; BATT, cujo exame
revelou parênquima pulmonar com lesão inflamatória crónica, transitando para
área de condensação e ausência de características histomorfológicas de
tuberculose e de lesão neoplásica; e diversas culturas, não se conseguindo
qualquer isolamento microbiológico, nomeadamente de fungos ou micobactérias.
Fig. 7 – TAC torácica – Nos segmentos posteriores do LID, observa-se uma massa
sólida de morfologia triangular de base externa, com limites irregulares.
Apresenta realce heterogéneo com contraste, áreas centrais hipodensas e ar no
seu interior, medindo 8x6 cm. As alterações descritas poderão corresponder a
consolidação parenquimatosa escavada e abcedada ou a lesão tumoral necrosada
É diagnosticada pneumonia escavada do LID sem agente isolado, após exclusão de
tuberculose e neoplasia pulmonares, apresentando boa evolução clínica,
analítica e radiológica, mediante tratamento com vancomicina em perfusão
contínua.
Durante o seguimento, manteve-se assintomático, com fibrose residual
radiológica (Fig. 8), mas sem outras sequelas. Em Outubro de 2006, tem alta da
consulta de Medicina Interna.
Fig. 8 – Radiografia do tórax – Fibrose residual bilateral, sobretudo ao campo
pulmonar inferior direito
Discussão
No caso apresentado o doente contraiu a infecção em Fevereiro, em concordância
com o pico de incidência da varicela no final do Inverno, não tendo sido
identificada a fonte de contágio. Os factores de risco encontrados para
desenvolvimento de PV foram apenas o sexo masculino e o tabagismo. No entanto,
também apresentou outras variáveis para as quais se encontra estabelecido na
literatura algum grau de associação a PV: febre elevada, exantema cutâneo grave
com mais de 100 lesões, enantema da cavidade orofaríngea e hepatite.
Analiticamente verificou-se ainda trombocitopenia moderada sem diátase
hemorrágica. O facto de as serologias para VVZ, CMV e VHS1+2 terem sido
positivas e compatíveis com infecção recente, é seguramente o resultado da
ocorrência de reacções cruzadas entre os diversos herpesvírus.
Realizou-se com sucesso profilaxia da sobreinfecção bacteriana cutânea, tendo
ocorrido sobre infecção pulmonar, que pode acontecer em até 50% dos doentes com
PV, favorecida neste caso pelo suporte ventilatório invasivo. Esta
intercorrência prolongou significativamente o internamento hospitalar e obrigou
a segundo reinternamento por reinfecção da cavitação pulmonar. Não se
verificaram outras complicações da varicela e foi realizado estudo com exclusão
de neoplasia ou compromisso da imunidade celular, nomeadamente serologia para o
VIH.
O aciclovir foi neste caso instituído tardiamente (7.º dia de exantema e 4.º
dia de sintomas respiratórios), devido à assunção prévia de infecção
disseminada por CMV, diagnosticada pela respectiva serologia, que interpretamos
a posterioricomo reacção cruzada. Contudo, e apesar de o risco de morte neste
doente ser cerca de 50%, verificou-se evolução favorável.
A utilização de corticóides parece-nos valorizável, tendo favorecido a boa
evolução da PV, bem como a extubação com sucesso ao fim de 5 dias, apesar do
desenvolvimento de ARDS.
Conclusões
As chaves no tratamento da PV passam pela precocidade no diagnóstico e na
instituição de terapia adequada. O diagnóstico é habitualmente clínico e
eventualmente induzido por história de exposição. Em todos os doentes com
varicela deve ser investigada a existência de factores de risco para
complicações, designadamente para PV. No doente com varicela, deve-se estar
atento à possibilidade de múltiplas complicações, enfatizando a necessidade de
vigilância clínica apertada. A probabilidade de desenvolvimento de falência
respiratória com necessidade de ventilação mecânica é difícil de estabelecer no
início da doença. A qualquer doente adulto assintomático com varicela deve
realizar-se radiografia torácica e oximetria/gasometria arterial. O doente com
alterações radiológicas ligeiras e com normal saturação de O2 pode ter alta
medicado com valaciclovir, devendo ser reavaliado dentro de 24 a 48h. Os
doentes que apresentem qualquer grau de hipoxemia devem ser admitidos com
monitorização da SpO2 contínua.
O aciclovir constitui o fármaco de primeira linha, devendo ser iniciado de
imediato, se possível nas primeiras 24h de exantema ou nas primeiras 72h de
doença. A profilaxia de sobre infecção bacteriana cutânea deve ser universal. A
utilização de corticoterapia e, nos doentes com suporte ventilatório, de PEEP
elevado, parecem-nos relevantes.