Sarcoidose nasal e laríngea: Caso clínico
Introdução
A sarcoidose é uma doença crónica, multissistémica, de etiologia ainda
desconhecida, resultando provavelmente da combinação entre uma predisposição
genética e um estímulo ambiental1.
A incidência na população geral é de 6 a 10 por 100 000 habitantes, existindo,
no entanto, uma importante variação racial e geográfica2. Apresenta um ligeiro
predomínio no sexo feminino, com um pico de incidência entre os 20 e os 40 anos
de idade3.
Histopatologicamente é caracterizada pela acumulação de linfócitos T,
macrófagos e monócitos com formação de granulomas epitelióides não caseosos e
desarranjo da arquitectura tecidular, responsável pela alteração funcional e
pelo aparecimento de sintomas1.
A sarcoidose pode manifestar-se com sintomas constitucionais (astenia, perda de
peso, febre e hipersudorese nocturna) ou específicos dos órgãos ou sistemas
afectados. Aproximadamente 30 a 50% dos casos são assintomáticos à data do
diagnóstico, sendo identificados de forma acidental aquando da realização de
uma radiografia torácica1.
O envolvimento otorrinolaringológico ocorre em 10 a 15% dos casos de
sarcoidose1, constituindo um desafio diagnóstico para o médico
otorrinolaringologista devido ao facto dos sintomas e sinais à apresentação da
doença serem, por norma, inespecíficos4. A sarcoidose pode envolver os gânglios
linfáticos cervicais, glândulas salivares, pele, nariz e seios perinasais,
faringe, laringe, nervos cranianos, SNC e ouvidos. A percentagem relativa de
envolvimento de cada um dos órgãos ou sistemas afectados varia de série para
série.
Os autores apresentam um caso clínico de uma doente do sexo feminino de 41 anos
a quem foi efectuado o diagnóstico de sarcoidose com base em manifestações
nasais e laríngeas.
Descrição do caso clínico
Doente do sexo feminino, 41 anos, caucasiana, recorreu à consulta de ORL do
Hospital Pedro Hispano por apresentar obstrução nasal crónica, mais intensa na
fossa nasal direita, e episódios esporádicos de disfonia. Negava outros
sintomas do foro ORL (nomeadamente rinorreia anterior ou posterior frequentes,
crises esternutatórias, prurido nasal, alterações do olfacto, disfagia ou
odinofagia), sintomas do foro respiratório ou constitucionais.
Apresentava como antecedentes pessoais relevantes a exérese cirúrgica de um
carcinoma basocelular da pirâmide nasal (em 1999) e epífora à direita. Sem
outros antecedentes pessoais ou familiares relevantes.
O exame objectivo de ORL demonstrou na rinoscopia anterior a presença de
crostas bilaterais (mais exuberantes na fossa nasal esquerda) (Fig. 1) e na
laringoscopia indirecta rubor e edema da região supraglótica, com mobilidade
preservada (Fig. 2). Sem outras alterações relevantes ao exame objectivo de
ORL.
Fig. 1 ' Rinoscopia anterior (fossa nasal esquerda)
Fig. 2 ' Laringoscopia directa
Efectuou tratamento médico com lavagens nasais, antibioterapia (associação de
amoxicilina e ácido clavulânico, 875mg/125mg, 12/12h, durante 8 dias) e
corticoterapia tópica (furoato de mometasona, 200μg, toma única diária durante
3 meses) com ligeira melhoria da obstrução nasal. Para esclarecimento do quadro
clínico, realizou Tomografia Computorizada (TC) do nariz e seios perinasais que
revelou espessamento da mucosa que reveste os seios maxilares e etmoidais, com
diminuição da permeabilidade dos óstios de drenagem, não se identificando uma
parte do corneto inferior esquerdo (Fig. 3).
Fig. 3 ' TC nasossinusal
Devido à persistência da sintomatologia e das alterações ao exame objectivo,
foi submetida posteriormente a microcirurgia laríngea com biópsia da mucosa
laríngea e, no mesmo acto cirúrgico, realizou-se biopsia da mucosa nasal. O
resultado anatomopato lógico evidenciou a presença de granulomas de células
epitelióides sem necrose central e com infiltrado linfocitário e plasmocitário
ao seu redor (Figs. 4 e 5).
Fig. 4 ' Aspecto microscópico da biópsia da mucosa nasal
Fig. 5 ' Aspecto microscópico da biópsia da mucosa laríngea
A pesquisa de fungos e Mycobacterium tuberculosisfoi negativa.
Perante os resultados apresentados foi considerado o diagnóstico de sarcoidose,
tendo-se efectuado, em colaboração com médico especialista de Medicina Interna,
uma avaliação sistémica da doente. Os exames auxiliares de diagnóstico
realizados foram:
' estudo analítico que revelou uma linfopenia, normocalcemia, hipercalciúria e
um aumento do valor da enzima conversora da angiotensina (92UI/L);
' estudo imunológico que revelou um aumento do factor de complemento C3 (179,0
mg/dL) e um valor de C4 dentro da normalidade, imunoglobulinas normais,
pesquisa do anticorpo anti-ds ADN positivo (24,6 UI/mL) e pesquisa dos
anticorpos anti-ANA, anti PR-3, anti-MPO e factor reumatóide negativa;
' serologias para sífilis, hepatite B, hepatite C, VIH 1 e 2, reacção de Widal,
reacção de Weil-Felix e reacção de Wright que foram negativas;
' radiografia torácica que demonstrou moderado reforço do retículo pulmonar
predominando nas regiões peri-hilares e moderada hipertrofia hilar bilateral
(Fig. 6);
Fig. 6 ' Radiografia torácica
' estudo funcional respiratório que revelou um aumento da resistência das vias
aéreas, sem reversibilidade com o broncodilatador inalado, e ligeira diminuição
da capacidade de transferência alveolocapilar de dióxido de carbono; todos os
restantes parâmetros encontravam-se normais;
' TC torácica de alta resolução que evidenciou a presença de múltiplas
adenopatias paratraqueais e hilares, algumas delas apresentando calcificações
(Fig. 7);
Fig. 7 ' TC torácico
' broncofibroscopia com lavado broncoalveolar que revelou linfocitose, aumento
da relação CD4/CD8 (3,4) e exame bacteriológico e micobacteriológico negativos;
' e biópsia pulmonar transbrônquica que demonstrou um esboço de granuloma
epitelióide não necrosante (pesquisa de Mycobacterium tuberculosisnegativa)
(Fig. 8).
Fig. 8 ' Aspecto microscópico da biópsia da mucosa pulmonar
Perante estes resultados, foi efectuado o diagnóstico de sarcoidose com
atingimento pulmonar e ORL, tendo sido iniciado tratamento médico com
corticoterapia tópica nasal a longo prazo com melhoria franca da sintomatologia
do foro ORL. Por ausência de critérios optou-se por não iniciar corticoterapia
sistémica. Neste momento, após cerca de 2 anos de seguimento, a doente
permanece assintomática.
Discussão
O diagnóstico de sarcoidose é de exclusão e assenta essencialmente na
conjugação de 3 critérios: (1) achados clínicos e radiológicos compatíveis; (2)
achado histológico de granulomas não caseosos; e (3) exclusão de outras doenças
com achados semelhantes ou reacção granulomatosa local1,3.
O estudo inicia-se pela história clínica e exame objectivo, sendo necessária
uma avaliação completa para excluir a presença de doença sistémica e permitir a
monitorização da actividade da doença3. Esta avaliação deve ser efectuada mesmo
em doentes assintomáticos e inclui estudo analítico (hemograma com plaquetas,
velocidade de sedimentação, doseamento do cálcio sérico e urinário, função
renal, função hepática, electroforese das proteínas séricas e doseamento da
enzima conversora da angiotensina), estudo imagiológico (radiografia torácica,
TC torácica), provas de função respiratória, electrocardiograma, avaliação
oftalmológica e broncofibroscopia (com lavado broncoalveolar e biópsia
transbrônquica)1,3,4. Em alguns casos podem ser efectuadas cintigrafia com
gálio e mediastinoscopia com biópsia (sensibilidade 98-100%)4. Os exames que
permitem exclusão de outras doenças granulomatosas são mandatórios e incluem
pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes, prova de Mantoux, pesquisa de
anticorpos ANCA, pesquisa de fungos (exame directo e cultural) e diversas
serologias (incluindo a da sífilis e o VIH)1.
O diagnóstico diferencial de sarcoidose inclui diversas entidades nosológicas,
entre as quais se destacam infecções (tuberculose, lepra, sífilis,
histoplasmose, blastomicose, coccidiomicose, actinomicose), pneumoconioses
(beriliose, silicose e asbestose), doenças granulomatosas não infecciosas
(granulomatose de Wegener, síndroma de Churg-Strauss e granulomatose
broncocêntrica), neoplasias e amiloidose2,5,6.
O envolvimento do nariz e seios perinasais tem uma incidência estimada entre
0,7 e 6%7. No entanto, a incidência real pode ser superior, uma vez que a
inspecção nasal não é efectuada de forma sistemática em doentes com suspeita de
sarcoidose8. À apresentação, os sintomas mais comuns são a obstrução nasal
(90%), a rinorreia anterior e/ou posterior (70%), alterações olfactivas e
episódios recorrentes de sinusite7. A epistáxis está presente em 30% dos
casos7. Ao exame objectivo, a mucosa nasal apresenta-se hipertrofiada,
eritematosa, edemaciada e friável com envolvimento predominante do septo nasal
e dos cornetos inferiores1. A sarcoidose pode igualmente manifestar-se pela
formação de crostas ou pela presença de pequenos nódulos subcutâneos de
coloração amarela. Mais raramente, pode existir formação de pólipos, epífora,
perfuração septal, deformidade nasal ou fistulização oronasa11.
Estima-se que o envolvimento da laringe ocorra entre 0,5 e 8,3% dos casos de
sarcoidose, de forma isolada ou em associação a doença sistémica1. Mais uma
vez, esta incidência pode ser inferior à real devido à ausência de inspecção
sistemática da laringe3.
O envolvimento laríngeo, embora inicialmente assintomático, pode evoluir para a
combinação de disfonia, disfagia, dispneia e estridor1,3,9. Outros sintomas que
podem estar presentes são a sensação de globo faríngeo, odinofagia e
tosse1,3,9. Pode haver em alguns casos evolução para obstrução da via aérea,
com necessidade de traqueotomia3. Ao exame objectivo, a sarcoidose apresenta
uma predilecção pela supraglote (epiglote, pregas aritenoepiglóticas,
cartilagens aritenóides e bandas ventriculares), com envolvimento raro das
cordas vocais e subglote1,23,10. A apresentação mais característica é edema e
rubor da estrutura supraglótica1. A mobilidade laríngea raramente é
comprometida3.
O tratamento de escolha na maioria dos casos de sarcoidose é a corticoterapia
sistémica, embora as suas indicações permaneçam controversas devido à grande
variabilidade na progressão da doença e à elevada frequência de remissão
espontânea1,3.
Nos casos em que ocorre envolvimento nasossinusal, o tratamento assenta na
irrigação nasal com soro fisiológico e corticoterapia tópica ou
sistémica1,2,3,8. Os antibióticos (em casos de infecção secundária e de acordo
com o antibiograma), os agentes citotóxicos, como o metotrexato e a azatioprina
(em casos refractários), e o tratamento cirúrgico (considerado actualmente um
método seguro e eficaz na obtenção de alívio sintomático da obstrução nasal ou
da sinusite crónica/recorrente, em doentes seleccionados, com obstrução
anatómica nasal/seios perinasais) constituem alternativas terapêuticas
válidas1,2,3,8.
Nas situações em que haja envolvimento laríngeo, o tratamento passa pela
injecção intralesional de corticóide (método eficaz em doentes seleccionados
com doença localizada) ou pelo uso de corticóide sistémico1,3,8.
Os antibióticos (em casos de infecção secundária), o Laser de CO2 e a
radioterapia em baixas doses (em casos refractários) constituem alternativas
terapêuticas importantes1,3,11,12. Em doentes com compromisso da via aérea pode
ser necessário recorrer à traqueotomia3.
Conclusão
O envolvimento do foro ORL da sarcoidose é raro e representa um desafio
diagnóstico para o médico otorrinolaringologista, já que normalmente os sinais
e sintomas à apresentação da doença são inespecíficos, requerendo, deste modo,
um elevado índice de suspeição para se proceder a um diagnóstico atempado e
eficaz.
O envolvimento ORL isolado não é frequente, motivo pelo qual se deve efectuar
sempre uma avaliação sistémica exaustiva. A abordagem multidisciplinar da
sarcoidose é fundamental, sendo que o otorrinolaringologista representa um
papel primordial quer no diagnóstico (quando os sintomas à apresentação são do
foro ORL, como no caso clínico apresentado, mas também quando é necessária uma
biópsia da mucosa nasal que possa demonstrar a presença de granulomas), como no
seguimento a longo prazo destes doentes.