Os medos dos enfermeiros em situação de doença
própria
Introdução
Vivendo numa sociedade que se preocupa
essencialmente com a evolução científica e, mais
precisamente, com o desenvolvimento da medicina,
torna-se de crucial importância valorizar os doentes,
na medida em que, estes é que justificam a necessidade
e a visibilidade das ciências da saúde.
A experiência de doença, apesar de não ser desejável,
torna-se expectável ao longo da nossa vida. Sabese que, mais cedo ou mais tarde, todos temos
necessidade de ser cuidados por outros e que
esse facto é condicionante de alguma angústia e
ansiedade, pois vivemos numa era e sociedade que
preza sobretudo a saúde e a autonomia.
Pressupondo que depois de vivenciar uma experiência
de doença, algumas mudanças se operam na vida das
pessoas e, considerando os enfermeiros como pessoas
com capacidades e competências específicas, pensase que seria de suma importância tentar compreender
o que estes vivenciam e sentem e de que forma
estas emoções e sentimentos vão influenciar o seu
desenvolvimento pessoal e profissional.
Neste sentido, objectiva-se estudar não só uma
descrição pura da vivência de doença, mas uma
descrição que envolva sentimentos e pensamentos
acerca dessa mesma experiência, reflectindo sobre
a importância e influência na sua vida e sobre o
significado que lhe é atribuído. A sua elaboração
pretende dar resposta ao seguinte objectivo: contribuir
para a compreensão do discurso dos enfermeiros,
como representativo da forma de encarar a doença
e o processo de hospitalização, descrevendo quais os
medos mais comummente sentidos na vivência deste
fenómeno.
Enquadramento teórico
O ser humano é um ser profundamente complexo.
Quando adoece reage, particularmente, de acordo
com as suas características pessoais e segundo os
factores externos presentes. Como tal, sabe-se que
não se pode considerar apenas a doença em si, pois
esta na realidade não existe; o que existe são pessoas
com doenças.
A experiência de estar doente é única, na qual os
comportamentos e atitudes adoptadas por cada
indivíduo são singulares e de acordo com todas
as crenças e conceitos criados pela sua própria
experiência pessoal e pelas características da cultura
que integram, indo determinar fortemente a sua
forma de estar e de reagir perante uma situação
particular de doença.
Na opinião de Langdon (2001), a doença não é
experienciada como um acontecimento biológico
puro, sendo o resultado das suas manifestações
de acordo com o contexto sociocultural e das
características psicológicas de cada um, traduzindo
uma experiência subjectiva de um evento.
Como tal, a experiência de doença não se confina
aquele momento específico; tem influência e
projecção pela vida fora, acompanhando a existência
daquela pessoa. A forma como cada pessoa enfrenta
a doença representa aspectos peculiares de cada ser,
englobando a sua forma de ser e de estar perante si
mesmo, o seu papel na sociedade e todas as relações
que estabelece com o mundo durante a sua existência
(Graham, Andrewes e Clarck, 2005).
Segundo Gameiro (2004) a doença é sentida pelo
indivíduo como uma ameaça, enaltecendo os
sentimentos de medo e vulnerabilidade e tornando
possível o sofrimento do mesmo e a probabilidade de
ocorrerem perdas significativas a vários níveis.
Após uma experiência deste cariz, pensa-se que
a pessoa poderá não voltar a ser a mesma, pois a
vivência implica o despoletar de sentimentos de
inquietação sobre o que na realidade importa na
vida daquela pessoa. Esta, quase que vive uma crise
existencial, pois vai sentir necessidade de rever o
sentido que atribui às coisas. Só se dá o verdadeiro
valor a determinados conceitos e estados quando se
experiencia algo que nos irá fazer sentir que nada é
eterno e que tudo é caracterizado por uma finitude
incerta, em termos de durabilidade e temporalidade,
mas certa de que um dia irá ocorrer. Com a saúde
passa-se o mesmo; só quando ela é afectada e as
pessoas se sentem ameaçadas, é que param para
pensar no que realmente interessa e é importante na
vida.
Uma das principais vantagens de se realizarem
estudos com base na experiência vivida prende-se
com a riqueza do conhecimento que se obtém pela
partilha de sentimentos e de significados da mesma
por parte do doente.
Numa perspectiva fenomenológica a experiência
revela a forma como os sujeitos concretos vivenciam
o seu mundo, ou seja, o seu modo de estar e de
interagir com o mundo, à luz da sensibilidade e da
atribuição de significado. O que se pretende é voltar
à essência das coisas, descrevendo o que se passa
sob o ponto de vista dos indivíduos que vivenciam
determinado acontecimento (Alves, 2006).
Para Bonino (2007), os profissionais de saúde, ao
longo do seu desempenho profissional, devem
auxiliar os doentes a descrever o que sentem e como
vivem o seu quotidiano, pretendendo ser o mais
objectivos possível. No papel de doentes, serão eles
os próprios descritores da sua situação clínica e da
forma como lidam com ela.
Metodologia
Este trabalho encontra-se enquadrado no paradigma
da investigação qualitativa, nomeadamente, na
vertente da fenomenologia. De acordo com os
princípios que caracterizam este tipo de investigação,
o investigador procura essencialmente compreender
o significado que cada participante atribui a um
determinado fenómeno, no sentido de percepcionar
qual a construção social atribuída ao mesmo.
Atendendo à especificidade do tema a investigar,
às análises e observações que se foram realizando
ao longo do contexto da prática de cuidados de
enfermagem, à curiosidade e interesse que o tema
desperta, e em associação aos resultados obtidos com
a elaboração do trabalho de revisão sistemática da
literatura acerca do mesmo tema, surge a necessidade
de compreender como os enfermeiros vivenciam
uma situação de doença, visando interiorizar os
sentimentos que emergem, obter um significado para
aquela experiência de vida e perceber a sua influência
na mesma. Neste contexto, a questão de investigação
que norteia este estudo é “Como é que os enfermeiros
vivenciam a sua experiência de doença?”.
A fenomenologia aplicada à Enfermagem não
pretende conhecer apenas aquilo que é visível, mas
antes perceber o que significa viver um determinado
fenómeno. Assim, este estudo visa sobretudo
compreender como é que os enfermeiros vivenciam
o fenómeno de doença própria, dando visibilidade a
um dos sentimentos mais comuns – o medo.
Os informantes deste estudo foram 15 enfermeiros
que cumpriam os critérios de inclusão definidos,
nomeadamente: Ser enfermeiro/a; ter vivenciado um
fenómeno de doença interna marcante e sido submetido
a um processo de hospitalização, datado a partir de 2003;
apresentar aptidões internas (discernimento e aptidões
psíquicas) que lhe possibilitem descrever o fenómeno
e partilhar sentimentos; ter reiniciado funções há,
pelo menos, um ano e aceitar a participação voluntária
no estudo, depois de devidamente informado dos
objectivos do mesmo, da metodologia a utilizar, da
garantia do anonimato e do sigilo em relação aos dados
obtidos e da possibilidade de desistir quando assim o
entendesse.
A selecção dos informantes foi segundo o método de
“Bola de Neve”, tendo em conta todas as dificuldades
enfrentadas relativamente a aspectos éticos e
institucionais. A colheita de dados foi elaborada no
período compreendido entre 19 de Junho de 2009 e 8
de Setembro de 2009. Foram realizadas 15 entrevistas
em profundidade, com uma duração média de 41,27
minutos. Estas foram transcritas e analisadas segundo
o método de análise de informação de Giorgi,
procurando obter uma descrição pormenorizada
da experiência, tendo em conta o que sentiram
e, consequentemente, a estrutura essencial do
fenómeno em estudo (Giorgi e Sousa, 2010).
Ao analisarmos as características descritivas dos
participantes entrevistados, verifica-se que o género
feminino domina, apresentando uma percentagem
de 80% relativamente ao masculino. A média de
idades é de 41,27 anos e a média de tempo de serviço
é de 20,07 anos. Quanto à categoria profissional
verifica-se que 60% dos informantes são Enfermeiros
Especialistas, tendo sido englobado na mesma
categoria os especialistas e os especializados e 40%
são Enfermeiros Graduados, sendo que um deles
assume também o papel de Enfermeiro Chefe.
Após a leitura aprofundada das entrevistas foi possível
determinar as unidades de sentido e consequentes
constituinte-chave, procurando obter a estrutura
essencial do fenómeno estudado. Do processo
descritivo e de compreensão elaborado verificou-se
que o medo é um sentimento muito frequente no
processo de vivência de doença e que, por si só, não
se consigna a uma especificidade, constatando-se que
pode ser abrangente e variado.
Resultados e Discussão
Após a transcrição das entrevistas e consequente
análise da informação obtida, verificou-se que o medo
é um dos sentimentos que os enfermeiros evidenciam
como procedente do seu processo de vivência de
doença própria.
A palavra medo deriva etimologicamente do latim
Metus, traduzindo uma sensação de temor e
apreensão face ao futuro ou a algum acontecimento
ou objectivo específico que é tido como desagradável.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa
Contemporânea, pode definir-se como um fenómeno
psíquico e de carácter afectivo resultante da
consciencialização de um perigo real ou imaginário
ou provocado por súbita ameaça.
O termo medo desde sempre assumiu uma conotação
pouco positiva, pois traduz a percepção de que o
perigo é eminente e pode estar próximo, ameaçando
o nosso perímetro de segurança e revelando, deste
modo, a vulnerabilidade e a incapacidade de dominar
a nossa vida e o nosso destino. Para Lelord e André
(2002) a melhor forma de enfrentar o medo é
confrontá-lo, pois a fuga não nos permite superá-lo,
sendo necessário reflectir sobre ele e dar-lhe a devida
importância, no sentido de o dominar.
No entanto, o medo também pode ser útil, na medida
em que suscita nas pessoas uma atenção constante
perante alguns acontecimentos ou adversidades da
vida. Neste contexto o medo assume uma função
defensiva que nos permite responder no presente
aos pensamentos que constantemente associamos
ao futuro. Segundo Edwardes (2006), o medo
acompanha-nos diariamente no desenvolvimento do
nosso quotidiano nomeadamente: o medo de não
ser socialmente aceite; o medo de ser gozado pelos
outros, o que condiciona a nossa forma de estar e
de agir perante os outros e a sociedade; o medo da
rejeição que nos leva a adoptar uma atitude defensiva
e de desconfiança constante, etc.
O medo condiciona, muitas vezes, a nossa reacção
perante determinadas situações. Vivemos numa
sociedade que preza sobretudo o que é visível, o que
se reflecte na sensação de medo que passa a habitar
o nosso ser, na medida em que somos tentados
a viver a nossa vida de uma forma reprimida e,
consequentemente, agir sempre com base na defesa.
Na opinião de Albisetti (2003, p. 14) vivemos numa
sociedade “…onde os estímulos são constantes,
onde só existes por aquilo que fazes, onde és avaliado
pelo que produzes e não pelo que és, onde tudo é
superficializado, banalizado, consumido…”.
Neste sentido e segundo o mesmo autor, o medo é
factor condicionante para o nosso comportamento e
as nossas atitudes. Toda a nossa existência e o nosso
agir perante nós próprios, os outros e o mundo
é condicionado pelo medo de não nos sentirmos
suficientemente seguros de nós, de não conseguirmos
obter a valorização que julgamos indispensável para a
nossa vida e de não possuirmos as características, e
alguns atributos que a sociedade, actualmente, encara
como essenciais para viver com sucesso e êxito.
Numa situação de doença, o indivíduo deve procurar
ajuda para a solucionar ou para minimizar os seus
efeitos, devendo iniciar o seu processo de aceitação
e encarar a doença como um desafio que está ali para
testar os seus limites, em termos de força interior,
resistência, coragem e capacidade de enfrentamento
(Neto, Aitken e Paldron 2004).
Associado a tudo isto emergem muitos medos baseados,
essencialmente, na dificuldade que o indivíduo
apresenta para lidar com os constrangimentos
associados a uma situação de doença, especificamente
a suposta ideia de derrota ou de incapacidade de
resolução dos mesmos.
Quando se fala em doença é costume encarar-se
todo o processo de uma forma pesarosa, uma vez
que, ninguém se encontra preparado para sofrer e
para lidar com sentimentos como a vulnerabilidade e
fragilidade que uma situação de doença acarreta.
E 4 – “Para já, faz-se um filme negro sempre que se
vai morrer…”
Como referem alguns participantes, há uma tendência
para se idealizar uma curta ou longa-metragem,
normalmente classificada na área dos filmes de terror
e, associada a este, também toda a expectativa que lhe
advém. Perante o suspense e o medo que as cenas de
terror suscitam nas pessoas, é notória a ansiedade e
a angústia inerente, pois assumindo uma postura de
espectador, ressalta a ideia de que o enredo tende a
complicar-se e a piorar, surgindo cenas piores e mais
graves à medida que se desenrola, exacerbando-se o
medo relativo ao desfecho.
Tomando a liberdade de citar o Professor Carmo
Ferreira: “A vida é uma aventura! É uma aventura que
costuma acabar mal!”. É engraçado como esta frase
nos faz pensar que, realmente, a vida é uma passagem
terrena que terá sempre um fim anunciado. No
entanto, continuamos a apresentar sérias dificuldades
em lidar com esta certeza; com o facto de que toda
a existência humana se prende com a eminência de
morte.
A morte será sempre um mistério, pois nunca a
conheceremos, no sentido de que transcende um
facto biológico; há sempre uma dimensão espiritual
e existencial na morte o que lhe confere uma aura
misteriosa. Como todos sabem, a morte é inevitável,
mas desde sempre se tornou inconcebível pensarmos
e falarmos sobre a nossa própria morte, sendo muito
mais fácil e aceitável falar da morte dos outros.
Ferreira (2004, p. 75) frisa esta ideia ao dizer “Decerto
que eu não posso esperar a minha morte, porque em
qualquer situação, a mais crítica, ela não me pode
atingir.” Epicuro (2009, p. 112), filosofando sobre a
mesma temática, referia que “…a morte não é nada
para nós…”, condicionando apenas um sentimento
de angústia por antecipação, pois “… enquanto nós
existimos a morte não está presente e quando está
presente, nós já não existimos”.
Há uma tendência marcante para falar da morte na
terceira pessoa, porque a nossa própria morte continua
a ser tabu. Os seres humanos apresentam grandes
dificuldades em aceitar a morte, lutando durante toda
a vida contra ela. Perante uma adversidade na vida
como é a experiência de doença, torna-se mais real a
evidência de que a vida é temporal e que pode acabar a
qualquer momento. Como refere Infante (2006, p. 23),
“por vezes só quando a doença nos toca de perto é que
nos apercebemos que nada é para sempre, inclusive,
a dádiva de viver”. Também Balota (2009) realça que
o medo da morte é um dos medos mais imponentes,
porque apesar de ser uma realidade, os homens têm
muita dificuldade em falar dela e em a aceitar, frisando
que todo o medo esconde em si o medo da morte.
E 1 – “Programei a minha conta bancária, falei ao
meu marido aonde é que estavam as coisas, porque
ocorre-nos sempre o medo ou aquela coisinha lá no
fundo de que pode alguma coisa correr menos bem,
e a gente não voltar para casa ou voltar em condições
menos boas, não é?”.
À medida que os dias passam vamo-nos apercebendo
que os seres humanos têm tendência para viver no
delírio da omnipotência, recusando encarar a morte
como a coisa mais certa na incerteza. Segundo
Albisetti (2003) é necessário que os indivíduos
compreendam que a morte é um acontecimento real
e que também nos acomete, não se destina só aos
outros; só deste modo, aceitando a morte, se começa
verdadeiramente a viver.
A sensação de solidão surge frequentemente quando
as pessoas não se sentem bem consigo próprias;
quando se sentem sós é sinal de que estão muito
longe de si mesmas. Como refere Balota (2009), a
solidão não se pode justificar por simples factores
externos aos indivíduos; depende exclusivamente
do interior de cada um, traduzindo a necessidade de
receber de outrem tudo aquilo que gostariam de dar
a si próprios.
E 8 – “… uma das coisas que me assusta na vida é
ficar só, gosto muito de estar sozinha, mas não gosto
de me sentir só e saber que não tenho uma rede de
apoio”.
Num momento de grande vulnerabilidade há
tendência para nos sentirmos pequeninos e frágeis,
valorizando muitos aspectos, nomeadamente o
apoio dos familiares e amigos, para além do apoio
dos profissionais. No fundo, ninguém gosta de se
sentir sozinho e todos tentam evitar este sentimento.
Neste sentido poderemos citar Albisetti (2009, p.
113,4) ao referir “… quando me sinto já sem defesas,
impotente, quando me rendo, quando já não tenho
nada a perder…, então compreendo que sozinho
nada posso! …, porque ao viver a dor, a doença,
experimento a profunda solidão humana…”.
Também, numa situação de doença, há tendência
para se repensar tudo: o que somos, o que fizemos,
os amigos que temos, etc. Perante a angústia da
doença e a necessidade de entregarmos a nossa
vida nas mãos de outrem, a sensação de que não
somos donos de nada, nem de nós próprios, tende a
superficializar-se. Neste contexto e, especificamente,
quando, decorrente de todo este processo, se impõe
uma intervenção cirúrgica e todas as exigências
anestésicas, o indivíduo deixa de ter domínio sobre
si e sobre o seu corpo; há uma entrega ao outro,
confiando-lhe a própria vida. Durante o período de
espera para esta entrega, tudo aflora na sua mente,
referindo muitos deles que se faz uma retrospectiva
da vida e se apercebem que, naquele momento, se
encontram sós, sem saber para onde vão, como e se
voltarão.
E 8 – “… depois aquele tempo de espera, tipo,
parece uma estação de caminhos-de-ferro, com n
camas espalhadas e eu sozinha…”.
Tal como o informante refere, a espera junto a
uma linha de comboio, onde passam tantos e para
destinos tão diferentes traduz, de alguma forma, a
angústia vivenciada. Por um lado não se sabe para
onde as pessoas querem ir; se querem mesmo ir ou
se são obrigados por um conjunto de contingências
conhecidas ou desconhecidas; se vão felizes ou tristes;
se vão por pouco tempo ou para nunca mais voltar!
Tudo parece cinzento e algo impessoal; as pessoas
cruzam-se, alguns nem falam, outros olham com olhar
distante e outros com olhar terno e esboçando um
sorriso. Como é importante um sorriso, como nos
acalenta a alma e nos afaga o coração.
Sempre que assistimos a um filme que retrata
despedidas, tristezas ou sofrimento, verificamos que,
frequentemente, chove nas estações de comboio,
ficando um ambiente sombrio, pairando no ar a
insegurança e a angústia, perante o desconhecido,
para quem vai e quem fica, podendo fazer-se uma
analogia com a angústia de perder o controlo e o
domínio sobre si e sobre a sua vida numa situação de
doença.
E 14 – “… O que me assusta, nisto tudo, é como é
que vai ser o meu futuro? Está a perceber? Como é
que eu vou ficar? Como é que eu… como é que vou
… que consequências é que isto vai ter?”.
O medo é uma constante na vida dos seres humanos,
muitas vezes imposto pela sociedade e cultura
dominante, aliado ao egocentrismo que se tem
desenvolvido. A ideia da omnipotência continua a
exercer uma influência marcante, levando-nos a agir
de uma forma egoísta e centralizada em nós próprios.
Desta forma, aceitar que não dominamos o mundo
e que a nossa vida é uma passagem limitada no
tempo não se revela tarefa fácil, na medida em que
actualmente se preza mais o que se tem e o que nos
pode dar visibilidade perante os outros e o mundo.
Os valores intrínsecos, pessoais e morais deixam de
ser importantes vivendo as pessoas mais preocupadas
com o que parecem ser e com a aceitação por parte
dos outros, do que com o que realmente são. Neste
sentido e para encontrarem menos contrariedades
e dificuldades optam sempre por seguir por um
caminho já conhecido, pois têm medo de enfrentar
o desconhecido.
E 8 – “… esses medos, esses sentimentos de
impotência, de não conseguir lidar com a situação,
não é de lidar, é de ser eu a resolver as coisas, pronto
a resolução destas situações estava fora do meu
domínio.”
Todo este medo do desconhecido está relacionado
com o facto de não sentirem que controlam todas
as situações. Os seres humanos revelam grandes
dificuldades em lidar com os seus próprios limites,
considerando que necessitam de controlar o mundo
e a sua vida para poderem viver e ser felizes. A grande
aprendizagem a fazer é aceitar a vida, com todos os
seus desígnios e procurar vivê-la intensamente, pois o
ontem é história, o amanhã um mistério e o hoje é uma
dádiva, sendo por isso que lhe chamamos presente.
No caso das doenças e sendo profissionais de
saúde, receiam sobretudo o sofrimento associado a
muitas doenças, fazendo associações e comparações
frequentes a situações de doentes ou até familiares
que acompanharam durante um processo de doença.
Também o corpo de conhecimentos que detêm pode
ser facilitador, ou não, do processo de adaptação à
doença.
E 14 – “… Nós é que não estamos bem connosco,
porque isto passa tudo pela nossa cabeça, não é?,
passa isto tudo pela nossa cabeça, porque ‘epá, eu até
havia de saber isto, então agora vou perguntar isto?,
então o que é que vão pensar de eu agora estar a
perguntar isso?”
Perante situações de doença é muito frequente
ouvirmos os doentes referirem que têm medo do
sofrimento que possam vir a experienciar. Este
sofrimento pode ser de ordem física ou psicológica,
verificando-se que para a dor física consegue haver
uma solução clínica, na maior parte das vezes,
enquanto para a dor psicológica as alternativas não
são tão óbvias, condicionando frequentemente um
forte impacto na vida dos indivíduos.
Na opinião de Neto, Aitken e Paldron (2004, p. 23),
“…A intensidade desse sofrimento é medida em
termos do próprio paciente, à luz dos seus valores,
das suas vivências, das suas crenças e recursos,
enfim, de uma multiplicidade de factores que fazem
do sofrimento humano uma realidade complexa e
ao mesmo tempo única para cada indivíduo que o
experimenta. O sofrimento é sempre vivido pelas
pessoas e não apenas pelos corpos e, como tal,
ultrapassam os aspectos físicos da doença”.
Este tipo de medo não se cinge só ao indivíduo
doente, mas também a toda a sua família e rede social
de apoio, contribuindo para tal o tipo de diagnóstico e
prognóstico da doença, pois numa verdadeira família
funcional quando um dos elementos adoece, todos
são afectados. Em consequência disso é natural que
o sofrimento se generalize pela família, o que poderá
condicionar mais angústia e sofrimento ao doente,
por sentir que é a causa do sofrimento de outrem.
E 3 – “… com um bocado de medo em saber como
é que seriam depois os tratamentos, se seria tanto
fisicamente, porque são, porque estes tratamentos
são à base de grandes doses de corticoides, o que
me preocupava mais era a minha imagem perante as
minhas filhas, o não andar, portanto o não poder, o
arrastar da perna, o arrastar da perna sem força, todo
aquele edema e todo aquele fácies característico dos
doentes com impregnação em corticoides…”
O sofrimento é sempre pessoal e apresenta-se-nos
como uma revelação, uma vez que, os indivíduos,
muitas vezes, desenvolvem estratégias e atitudes que
nunca pensariam possíveis, traduzindo claramente
o provérbio “Nunca saberemos o que valemos até
sermos postos à prova!”.
Neste contexto pode ser encarado como uma
oportunidade de crescimento a vários níveis,
tal como refere Paulo Geraldo, num dos seus
pensamentos partilhados: “Não deves recusar a dor,
porque ela te constrói, te marca os limites e te faz
crescer por dentro dos teus muros. Sem ela, não
passarias de um projecto do homem que hás-de ser.
Ela edifica-te os músculos, a cabeça e o coração e
não existe outra maneira de chegares a ser aquilo
que deves vir a ser. Se não sofresses não haveria
ninguém dentro de ti”.
Ao longo da nossa vida vamos crescendo e
desenvolvendo capacidades para nos tornarmos
autónomos e independentes. A nossa tendência é
para esquecermos que outrora, na nossa infância,
fomos totalmente dependentes dos nossos familiares
e a ideia de o voltarmos a ser causa imensa ansiedade
e angústia. Penso que não se trata do medo de ser
dependente mas do medo de existir em determinadas
circunstâncias que, como sabemos, não são bem
aceites socialmente e que nos expõem, revelando aos
outros o que de mais íntimo e pessoal possuímos.
E 3 - “O medo de ficar dependente ou de ficar
totalmente dependente…”.
A vivência de uma situação de doença faz emergir
esta ideia e torna real a possibilidade de dependência.
Possivelmente iremos estar dependentes de cuidados
de saúde, de atenção e de afecto, entre outros.
Tudo isto nos faz pensar no valor da nossa condição
humana: somos seres gregários e de relação, logo
estaremos sempre à mercê uns dos outros.
E 8 – “… senti-me extremamente angustiada porque
me revi naquela doente e que, durante o momento
da intervenção, em que estamos sob anestesia,
estamos dependentes dos outros, completamente
dependentes dos outros, se houver uma falha nós
não podemos fazer nada pois está tudo fora do nosso
controle e essa dependência, […], assustou-me
imenso, pronto.”
Neste contexto o que promove sensações de angústia
não é a dependência propriamente dita, mas a
percepção de que não dominamos o mundo nem
a nossa vida e que não podemos controlar tudo o
que nos rodeia. Por outro lado, a sensação de que
necessitamos da ajuda dos outros condiciona uma
sensação de humilhação, pois subentende que
perdemos as nossas capacidades o que incrementa a
nossa sensação de sofrimento.
E 4 – “… não era o medo de que corresse mal, é de
estar num papel que não é o meu do dia a dia…”.
Para Gineste e Pellissier (2008, p. 265), “A incapacidade
ou a doença entregam-nos à incerteza. Elas são
factores de ansiedade. Elas modificam, muitas vezes
brutalmente, o equilíbrio que tínhamos estabelecido
entre dependência e independência. Inúmeros
intervenientes entram, subitamente, no nosso espaço
íntimo, manipulam-nos, administram-nos substâncias
que agem sobre o nosso corpo e o nosso espírito,
etc.”.
Se para um leigo a existência em condições de
dependência dos outros causa angústia, não
será leviano ou precipitado pensar que, para um
profissional de enfermagem esse sentimento se
exacerbe, pois é confrontado com a eminente
mudança de papéis, deixando de ser aquele que
cuida dos outros para passar a ser o que necessita
de ser cuidado. Também Morrison (2001) foca a
ideia da perda da independência por parte dos
doentes, passando a estar à mercê dos profissionais
de saúde, no papel de gestores dos cuidados de
saúde necessários. Neste sentido, para um doente,
um profissional de saúde pode ser encarado como
um “Anjo” amigo ou alvo de críticas, mediante a sua
actuação.
E 4 – “Estamos aqui a cuidar deles e agora estava a ver
colegas a tratarem de mim.”
Compreende-se que, como profissionais de saúde, os
enfermeiros quando adoecem vivem uma transição
de papéis que se torna muito dolorosa, uma vez que,
passam a ser os seres cuidados em vez de cuidadores.
Esta dualidade entre o ser enfermeiro e o ser doente
não é fácil de gerir, pois existe um conjunto de
conhecimentos implícito que exerce uma grande
influência na forma como se vivencia e interioriza a
experiência de doença.
E 12 – “… eu tenho a noção de que fui uma chata
e não me controlei em termos de dor e tive um
comportamento, se calhar, desajustado, até me
envergonho disso.”
Ao longo da nossa existência temos tendência para
julgar e fazer juízos de valor sobre o comportamento
dos outros. Em termos profissionais, especificamente
na área da saúde, não é muito diferente, constatandose uma constante avaliação entre pares e entre
os vários envolvidos no processo de prestação de
cuidados. O profissional que adoece e é submetido
a um internamento inverte o seu papel e passa a ser
alvo de cuidados por parte de outrem e a ser analisado
na condição de doente.
E 14 – “… quer dizer, eu agora chamava, que eu estou
aqui cheia de dores e tal, eu chamava, e depois, depois
também se a gente chama duas, três ou quatro vezes,
eles começam a dizer ‘mas está sempre a chamar,
está sempre a chamar, mas está dentro do assunto e
ainda se porta pior que os outros e tal, e isto na nossa
cabeça é uma luta titânica, isto é uma luta titânica!”
Este processo de avaliação revela-se muito penoso
para o doente que, simultaneamente, também é
profissional de saúde. Constata-se alguma tendência
para pensar antes de agir condicionada pelo receio
de ser avaliado e de não conseguir contribuir para
a imagem de bom doente que, frequentemente, se
idealiza.
Actualmente, na nossa sociedade, preza-se sobretudo
a beleza física, os corpos fantásticos e uma aparência
incrível. Deste modo a doença e a possibilidade
iminente de sofrermos alguma mutilação corporal
mexe muito com o nosso interior causando muita
apreensão e ansiedade, mesmo para aqueles que não
vivem obcecados pelo físico e que se preocupam com
o seu lado interior e espiritual.
E 1 – “… vi-me logo como os olhos a saírem-me das
órbitas…”.
Como podemos verificar, a questão da imagem
corporal também exerce uma forte influência nas
relações familiares e sociais estabelecidas, verificandose não só o receio de se tornar diferente para si
mesmo como para os outros, especialmente para os
familiares próximos, nomeadamente os filhos.
E 4 – “Não queria que me vissem em pijama, com
robe, com ... pronto, com um frasco atrás de mim, um
redy-vac…”.
O medo da rejeição é muito evidente, quer pelos
familiares, quer pela sociedade, verificando-se que
ainda existe um forte estigma associado à doença
oncológica e qualquer outra doença crónica que
implique alterações na imagem corporal.
Como se pode constatar, a experiência de doença
afecta o indivíduo de forma generalizada, fazendo
emergir um conjunto de sentimentos vasto, que
noutras circunstâncias não seria pensado. O facto
de serem profissionais de saúde, nomeadamente,
enfermeiros, pode ou não ter influência na forma
como se vivencia esta experiência, no que concerne
especificamente ao processo de avaliação de que
se é alvo na condição de doentes. Isto é plausível,
na medida em que há uma certa tendência para
se emitirem alguns juízos de valor nesse sentido.
No entanto, na vivência do processo de doença
propriamente dito, constata-se que as dúvidas,
angústias e medos são semelhantes, pois como refere
Varella (2009, p. 35) “O sofrimento físico tem o dom
de igualar estudiosos e iletrados”.
Conclusão
A vida é um valor inalienável; um bem especial que
se deve desfrutar ao máximo. A saúde é um desejo de
todos, ninguém ambiciona adoecer e vir a sofrer, seja
de que modo for.
Abordar o tema específico da vivência de doença
é um processo delicado e difícil, na medida em
que se desenrola num contexto de fragilidade
e vulnerabilidade acentuada, exigindo alguma
sensibilidade para se explorar e para se identificarem
os aspectos mais significativos da mesma, numa
tentativa de compreender os sentimentos vivenciados
e o significado daquela experiência particular.
Falar sobre a vivência de doença própria no enfermeiro
não se revela tarefa fácil, uma vez que implica o reviver
de uma situação penosa, constatando-se algumas
lacunas em termos de evidência científica neste
âmbito. Raros estudos se conhecem que analisem
a pessoa que cuida na vertente de ser cuidado,
tornando-se um desafio aliciante compreender como
é que o enfermeiro percepciona o sofrimento do
outro com base na vivência do seu próprio sofrimento.
Este estudo permite dar visibilidade à emergência
das diferentes dimensões do medo sentidas pelos
enfermeiros ao vivenciarem um processo de doença
própria.
Neste contexto, como qualquer ser humano, os
enfermeiros revelam medos comuns, como sejam
o medo da morte, do sofrimento pessoal e familiar,
da solidão, da dependência e da alteração da autoimagem. No entanto e, tendo em conta a sua
especificidade profissional, foi notória a sensação
de medo pelo desconhecido, no sentido de serem
profissionais da saúde mas não dominarem a sua
situação clínica nem poderem actuar de uma forma
técnica, tendo tendência para sofrer por antecipação,
quanto ao prognóstico e diagnóstico, adoptando
posturas negativistas, muitas vezes influenciadas pela
sua experiência profissional. Por outro lado, também
se verificou o medo da avaliação, no contexto de serem
cuidados pelos colegas e estarem a vivenciar um papel
que consideram não ser o seu, demonstrando algum
desconforto em assumi-lo e em agir de forma natural,
uma vez que, na posição de profissional de saúde, se
tende, erroneamente, a fazer juízos de valor sobre o
que se considera ser ou não um ‘bom doente’.
No caso específico dos enfermeiros, subentendese uma valorização a nível da magnificência da sua
profissão, pela dedicação ao outro e a preocupação
com o seu bem-estar, presumindo-se uma verdadeira
interiorização que transcende a compreensão, do
termo empatia, percebendo o que é estar e ser doente
e toda a vulnerabilidade e fragilidade intrínseca.
Inerente a esta experiência podem emergir, pela
continuação do desenvolvimento do trabalho que
serve de base a este artigo, dados que nos permitam
inferir sobre as múltiplas dimensões do processo de
vivência de doença, sendo previsível uma premente
mudança de comportamentos e a valorização de
determinadas atitudes, com implicação directa
no desempenho das funções de enfermagem e,
consequente, dignificação da profissão. Não se exige
muito, apenas que se encarem os doentes como
pessoas, com vida, com história, com pensamentos
e emoções, sem egoísmo, e baseados numa postura
de igualdade e fraternidade que caracteriza os seres
humanos.