A espiritualidade nos cuidados de enfermagem: revisão da divulgação científica
em Portugal
Introdução
A espiritualidade é intrínseca ao ser humano, reconhecível quando surge como
necessidade, logo, inerente aos cuidados de enfermagem. Se, por um lado, é
evidente o crescimento exponencial da investigação e divulgação científica
nesta área de acordo com Ross (2006); por outro lado, há incerteza e
subjetividade quando os enfermeiros definem o conceito de espiritualidade na
sua prática clínica (McSherry, 2006). Rodrigues (2002, p. 52) afirma que
“através da produção científica é possível dar visibilidade ao discurso
científico e assegurar a credibilidade das práticas” e é nesta perspetiva que
consideramos que a investigação e a divulgação, na área da espiritualidade,
irão contribuir para o conhecimento e a integração dessa dimensão na prática de
cuidados de enfermagem.
A investigação nesta área deve ser efetuada de uma forma coordenada e
sistematizada (Ross, 2006), pese embora a dificuldade em uniformizar o conceito
de espiritualidade, que é subjetivo e dependente da vivência pessoal de quem o
enuncia (Narayanasamy e Ellis, 2009). Contudo, os enfermeiros têm a obrigação
ética de prestar assistência espiritual e quando os cuidados de enfermagem a
ignoram como uma parte vital da totalidade da pessoa, esse cuidado torna-se
antiético (Wright, 2005).
A importância da dimensão espiritual nos processos de saúde/doença é
reconhecida pelas associações nacionais e internacionais de enfermagem e
demonstrada pela evidência científica. No entanto, continua a ser esquecida na
assistência de enfermagem (McSherry e Ross, 2002; Ross, 2006).
A Direção Geral de Saúde, através dos Direitos do Doente Internado, apresenta
linhas de orientação dirigidas aos enfermeiros para a promoção de um ambiente
respeitador dos direitos humanos, dos valores, das tradições e das crenças
espirituais individuais, familiares e da comunidade (Portugal. Ministério da
Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2005). A Ordem dos Enfermeiros Portugueses,
através do Código Deontológico, acrescenta que é dever do enfermeiro “cuidar da
pessoa sem qualquer discriminação económica, ideológica e religiosa, respeitar
e fazer respeitar as opções culturais, morais e religiosas da pessoa e criar
condições para que ela possa exercer nestas áreas os seus direitos” (Decreto-
Lei nº 111/2009, p. 6548). As classificações de linguagem científica de
enfermagem que, por si só, afirmam o conteúdo e a finalidade da profissão,
também consideram a dimensão espiritual. É disso exemplo a North American
Nursing Diagnosis Association que identificou e operacionalizou, entre outros,
os seguintes diagnósticos de enfermagem: disposição para o aumento do bem
espiritual, angústia espiritual e religiosidade prejudicada (North American
Nursing Diagnosis Association, 2010). Também o International Council of Nurses
(2011) definiu fenómenos como Bem-estar Espiritual, Angústia Espiritual e
Crença Espiritual.
Metodologia
Esta revisão tem como objetivo identificar e analisar a produção científica
publicada nas revistas portuguesas de enfermagem, bioética e saúde, desde 1990
até julho de 2010, sobre espiritualidade. Foi efetuada nos meses de julho e
agosto de 2010. Optou-se pelo método de pesquisa manual e eletrónica, pois
algumas revistas só estão disponíveis em versão impressa, outras estão
disponíveis nos sítios em linha, com acesso aos sumários e respetivos artigos,
e algumas estão disponíveis em ambas as formas, mas só a partir de datas mais
recentes. Efetuou-se uma lista de revistas de enfermagem e, considerando a
natureza do tema em análise, a participação dos enfermeiros em programas de
formação na área bioética e outros em formação avançada, foram incluídos os
Cadernos de Bioética e os Cadernos de Saúde. Definiram-se quatro termos de
busca: espiritualidade, religião, cuidados de enfermagem e holismo. Como
critérios de inclusão: presença de um dos termos de busca no título ou no
resumo, publicações datadas de janeiro de 1990 até julho de 2010 e da autoria
de enfermeiros.
Resultados
Foram identificados 21 títulos de revistas portuguesas: Cadernos de Bioética/
Revista Portuguesa de Bioética (Centro de Estudos de Bioética); Cadernos de
Saúde (Universidade Católica Portuguesa); Cuid’arte (Centro Hospitalar de
Setúbal); Ecos de Enfermagem (Sindicato dos Enfermeiros); Enfermagem em foco
(Sindicato dos Enfermeiros Portugueses); Enfermagem Oncológica (Sociedade
Portuguesa de Enfermagem Oncológica); Informar (Escola Superior de Enfermagem
Imaculada Conceição); Nursing(Editora Serra Pinto); Pensar Enfermagem (Escola
Superior de Enfermagem de Lisboa); Percursos (Escola Superior de Saúde –
Instituto Politécnico de Setúbal); Referência (Escola Superior de Enfermagem de
Coimbra); Revista da EESOP (Associação dos Enfermeiros de Sala de Operações
Portugueses); Revista da Ordem dos Enfermeiros; Revista Enfermagem (Associação
Portuguesa de Enfermeiros); Revista de Enfermagem de Saúde Mental (Sociedade
Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental); Revista de Investigação em
Enfermagem (Formasau); Revista Enfermagem e Sociedade (Escola Superior de
Enfermagem São João de Deus); Revista Portuguesa de Enfermagem (Instituto de
Formação em Enfermagem); Ser Saúde (Instituto Superior de Saúde do Alto Ave);
Servir (Associação Católica de Enfermeiros e Profissionais de Saúde) e Sinais
Vitais (Formasau).
Destas 21 revistas foram analisados 1217 números, resultando a amostra
constituída por 17 artigos (Quadro1). Os artigos selecionados foram agrupados
em quatro categorias, de acordo com a metodologia: artigos de revisão de
conceitos, artigos de investigação, artigos de reflexão e revisões sistemáticas
de literatura (RSL), que, não obstante resultaram de uma metodologia de
investigação, foram distinguidos pela pertinência e especificidade das suas
temáticas.
QUADRO 1 – Identificação da Amostra
Verificou-se que, nos artigos de revisão, a espiritualidade foi definida em
duas vertentes: como dimensão humana da pessoa sã ou doente e como dimensão do
cuidar, tal como expresso na figura 1.
FIGURA 1 – Categorias da espiritualidade identificadas nos artigos de revisão
A revista com maior número de publicações na amostra é a revista Servir, que,
pela natureza da associação responsável pela sua edição, faz-nos retomar a
relação entre espiritualidade e religião e perceber a sua divulgação destes
conteúdos enquanto estratégia de sedimentação destes conhecimentos e, em última
análise, capacitar os enfermeiros com conhecimentos para integrar a dimensão
espiritual na prestação de cuidados (Gráfico 1).
GRÁFICO 1 – Distribuição dos artigos pelas revistas
O primeiro artigo foi publicado em 1993 na revista Servir e o último em 2009 na
revista Referência. Enquanto o primeiro artigo baseia-se numa reflexão, o
último constitui uma revisão sistemática de literatura acerca do sentido de
vida, o que revela uma evolução na forma de olhar esta temática e de admití-la
no panorama científico como essencial às respostas dos enfermeiros às
necessidades dos doentes. O primeiro artigo de investigação, com dados de um
estudo realizado em Portugal, foi publicado em 2002. Como é possível verificar
no gráfico 2, existiram 2 períodos em que a publicação foi mais frequente,
concretamente em 2006, com a publicação de 4 artigos, e em 2008, com a
publicação de 5 artigos.
GRÁFICO 2 – Distribuição da amostra por ano
As transformações que a formação em enfermagem tem vindo a sofrer,
especificamente com a licenciatura e a formação pós graduada em enfermagem
(pós> licenciaturas de especialização, pós graduações, mestrados e
doutoramentos), bem como a criação de unidades e grupos de investigação
contribuíram certamente para estes resultados, pois alguns artigos resultam de
investigação inerente a programas de doutoramento de Kraus, Rodrigues e Dixe
(2009), Martins (2007) e Mendes (2006), do mestrado de Rego (2008), Lucas
(2008), Azevedo et al. (2005) e da monografia de licenciatura de Caldeira
(2002). Como afirma Basto (2009, p. 17) “Na realidade há vários passos a
percorrer. É preciso que haja estudos suficientes para poderem ser comparáveis,
isto é, através de uma revisão sistemática da literatura se façam meta-sínteses
e meta-análises. Para o conseguir cabalmente é necessário facilitar o acesso
dos enfermeiros, outros profissionais de saúde e gestores de organizações de
saúde a esses estudos. Isso significa publicar os estudos, inclui-los nas bases
de dados e alargar os hábitos de leitura, incluindo por consulta electrónica”.
Discussão
A espiritualidade é uma dimensão intrínseca ao ser humano quer se assuma
vinculado a uma religião convencional ou não, pois pode ser vivenciada em
múltiplas vertentes e não só a religiosa. É uma dimensão reconhecida como
importante para a saúde (Ribeiro, 2008). Já no primeiro artigo encontrado nesta
revisão, Serralheiro define-a como “uma força viva no interior de cada um de
nós que nos leva a uma maior plenitude de vida. É a resposta única e pessoal
aos apelos da autenticidade e à ultrapassagem da banalidade. A espiritualidade
é a situação de toda a pessoa humana que procura autenticidade face a si
própria, aos outros e à vida, é o sentido profundo dos acontecimentos da sua
vida pessoal, da vida dos outros e da história. Esta procura de autenticidade é
a força interior que permite unificar e dar um sentido definitivo à existência”
(Serralheiro, 1993, p. 20). O encontro de sentido enquanto necessidade
espiritual é uma ideia essencial na investigação de Kraus, Rodrigues e Dixe
(2009), particularmente em doentes com dor crónica não maligna. Este sentido
subjetivo e individual da espiritualidade poderá dificultar o reconhecimento de
necessidades espirituais dos doentes pelos enfermeiros, o seu diagnóstico e, em
última instância, intervenções adequadas. Quando questionados acerca das
necessidades espirituais, os enfermeiros admitem a sua responsabilidade em
reconhecê-las mas 31% identificam necessidades e definem diagnósticos
relacionados com as praticas religiosas, procura de sentido e sentimentos de
medo da morte, tal como Fernandes, Monteiro e Alves (2006) afirmaram no seu
estudo. O reducionismo da espiritualidade à religiosidade é um obstáculo que
impede os enfermeiros de reconhecerem as necessidades espirituais (McSherry,
2000; Mcsherry e Ross, 2002), e essa perspetiva reducionista leva-os a
reconhecer no capelão a figura responsável pela prestação de cuidados
espirituais, tal como Fernandes, Monteiro e Alves (2006) e Caldeira (2002)
concluíram.
A espiritualidade é uma dimensão do cuidar e o enfermeiro deve reconhecer que
os doentes expressam as necessidades espirituais de forma subtil e, por vezes,
a doença afigura-se num contexto vivencial desencadeador de sofrimento.
Enquanto resposta ao processo de saúde/doença, o sofrimento deve ser um foco de
atenção da intervenção do enfermeiro. Na sua revisão sistemática de literatura,
Martins (2007) conclui que as intervenções espirituais para os doentes em
sofrimento incluem: encaminhar para o líder espiritual; rezar; respeitar as
crenças e práticas religiosas; fomentar a fé dos doentes; estar presente;
aumentar a esperança; proporcionar música; ouvir com atenção; falar e apoiar;
respeitar a dignidade e privacidade; incentivar a procura de significado;
leitura; contacto com familiares, amigos e natureza; toque terapêutico;
meditação; imaginação guiada; humor ou riso. Verificamos que estas
intervenções, mais do que no campo do fazer, relacionam-se com um modo de estar
e ser do enfermeiro, profundamente enraizado uma atitude ética de solicitude
para com o sofrimento do outro e com a necessidade de encontrar sentido. Assim,
e de acordo com Baldacchino (2010, p. XX), o cuidado de natureza espiritual
congrega o fazer (avaliação de necessidades, diagnóstico, intervenção e
avaliação) e um modo de ser que advém da própria espiritualidade do enfermeiro,
na forma como é enquanto pessoa no momento de encontro com o doente, referindo
que “ninguém poderá dar aquilo que não possui”. E esta ideia é central nos
artigos encontrados, prevalecendo a premissa de que o enfermeiro está numa
posição privilegiada para atender estas necessidades. Porém, a falta de
formação é sentida pelos enfermeiros para a prestação de cuidados espirituais
(Fernandes, Monteiro e Alves, 2006; Caldeira, 2002). Outro fator condicionante
à prestação de cuidados espirituais que os autores encontraram, foi a falta de
tempo. Papadopoulos e Copp (2005) indicam que o tempo e o conhecimento
insatisfatório acerca do conceito de espiritualidade são obstáculos à inclusão
da espiritualidade na prática de enfermagem. A integração dos cuidados
espirituais na prática de cuidados, enquanto, também uma forma de ser, vem
suplantar esta falta de tempo.
A integração da espiritualidade nos curricula da formação em enfermagem
constitui um caminho possível de melhoria da qualidade na prestação de cuidados
de enfermagem e na oportunidade de desenvolvimento espiritual e competências na
prestação de cuidados espirituais (Hoover, 2002). Outra estratégia de
sistematização de avaliação da espiritualidade poderá ser a utilização de
escalas de avaliação, tal como a escala de bem-estar espiritual na doença de
O’Brien, validada por Rego (2008), ou a escala de avaliação da espiritualidade
em contexto de saúde de Pinto e Pais Ribeiro apresentada por Antunes et al
(2009). Com a ajuda das escalas o enfermeiro pode identificar as necessidades
espirituais com o doente e a família e encontrar, também nos discursos, formas
subtis que são reveladoras de necessidades espirituais, durante a entrevista do
acolhimento ou no decurso do processo de enfermagem (Mendes, 2006).
Os enfermeiros devem avaliar as necessidades espirituais com a “mente aberta”
(Hermann, 2007) e ser capazes de ajudar as pessoas doentes, religiosas ou não,
a refletir sobre as suas necessidades espirituais de um modo mais abrangente. A
intervenção do enfermeiro, sustentada inegavelmente em princípios éticos, exige
que reconheça as suas competências em responder às necessidades dos doentes,
tal como Caldeira (2009) exemplifica ao refletir acerca do rezar enquanto
intervenção de enfermagem. O reconhecimento do enfermeiro de si próprio é
fundamental na atenção à dimensão espiritual dos seus doentes.
Conclusão
A produção científica acerca da espiritualidade nos cuidados de enfermagem não
é tão profícua quanto seria desejável para a consolidação de conhecimentos e
para a integração na prática clínica.
A consciencialização da própria espiritualidade dos enfermeiros, a compreensão
da espiritualidade como facilitadora do processo de coping e fundamental no
sentido da vida das pessoas, são fatores que devem incentivar a integração na
prática dos cuidados. Não obstante a falta de formação sentida pelos
enfermeiros para atender a esta dimensão, a utilização de instrumentos de
avaliação do bem-estar espiritual e da espiritualidade contribuem para a
apreciação mais objetiva das necessidades espirituais.
Esta revisão de literatura contribui para a compilação do conhecimento
publicado em Portugal acerca da espiritualidade em enfermagem. No entanto,
estamos cientes que o resultado desta revisão não esgota a pesquisa sobre a
produção científica nesta temática, atendendo aos critérios de inclusão
definidos e ao conhecimento de comunicações em eventos científicos por
enfermeiros nestas temáticas.