Adesão à ventilação não invasiva: perspetiva do doente e familiar cuidador
Introdução
A doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), para além de ser altamente
prevalente a nível mundial, é também uma doença grave, condicionando graus de
incapacidade relevantes e elevada mortalidade, sendo responsável por 3 milhões
de mortes anuais, o que a coloca em 4º lugar como causa de morte,
correspondendo a 5,1% dos óbitos no mundo (World Health Organization, 2008).
Em Portugal, a prevalência da DPOC nos adultos ativos é superior a 5 % da
população. Os custos diretos aumentaram significativamente, assim como a taxa
de letalidade intra-hospitalar, num intervalo de apenas 5 anos (1998-2002). O
número de internamentos por DPOC aumentou 5%, tendo crescido os seus custos de
uma forma desproporcionada, já que representam um acréscimo de 10% (Portugal.
Ministério da Saúde. Direção Geral de Saúde, 2005).
Como forma de alterar este panorama, para além das medidas previstas no Plano
Nacional de Prevenção e Controlo da DPOC, tem-se vindo a investir em novas
alternativas terapêuticas: a oxigenoterapia de longa duração e a ventilação
mecânica não invasiva (VNI) domiciliária (Portugal. Ministério da Saúde.
Direção Geral de Saúde, 2006; Pfeifer et al., 2007; Taveira et al., 2009).
A ventilação mecânica não invasiva (VNI), que consiste na aplicação de um
suporte ventilatório sem recorrer a métodos invasivos da via aérea, surge assim
para estes doentes, nas condições referidas, como uma nova e interessante
modalidade de tratamento capaz de trazer melhorias no estado de saúde e um
aumento da qualidade de vida (Morais, 2001).
A adesão ao regime terapêutico surge como a principal condição para diminuir as
complicações evitáveis associadas à não adesão e, por sua consequência, reduzir
os gastos com a saúde e baixar as taxas de morbilidade e mortalidade (Taveira
et al., 2009).
A adesão é definida como o grau ou extensão em que o comportamento da pessoa,
em relação à toma de medicamentos, ao cumprimento da dieta e à alteração de
hábitos ou estilos de vida, correspondem às instruções veiculadas por um
profissional de saúde (World Health Organization, 2003). Por conseguinte, vai
ter implicações ao nível da estrutura, dos processos e da dimensão emocional e
cognitiva familiar (Sousa, Figueiredo e Cerqueira, 2004; Sousa, Relvas e
Mendes, 2007), sobretudo com inclusão de novas tarefas e a adoção do papel de
cuidador (Sequeira, 2010; Araújo, Paúl e Martins, 2010).
Por estes motivos, compreender as razões que levam as pessoas com doença
crónica, em particular com DPOC, a aderirem ao regime terapêutico, no caso à
VNI, é urgente e imprescindível.
A investigação procura, assim, a partir das perceções e significados atribuídos
pelos doentes com DPOC e seus cuidadores informais, construir uma estrutura
teórica sobre o processo de adesão à VNI no domicílio. Neste empreendimento de
descrição e compreensão das realidades e das vivências humanas, aderimos ao
paradigma qualitativo (Streubert e Carpenter, 2002; Guerra, 2006), seguindo uma
abordagem metodológica no âmbito da Grounded Theory (Guerra, 2006; Strauss e
Corbin, 2008; Laperriére, 2008).
As técnicas de colheita de dados que utilizámos foram a observação e a
entrevista. Na ordenação e análise de dados adopámos o modelo paradigmático
(Laperriére, 2008), seguindo as orientações de Strauss e Corbin (2008).
Metodologia
O estudo em referência enquadra-se no paradigma qualitativo, sendo adotada a
metodologia da Grounded Theory para se construir uma estrutura teórica sobre o
processo de adesão à VNI no domicílio, a partir das perceções e significados
atribuídos pelos doentes com DPOC e seus cuidadores informais (Strauss e
Corbin, 2008; Laperriére, 2008).
Para tal, segundo os mesmos autores, a partir da análise comparativa constante
dos dados, o processo de codificação dos dados é realizado em três etapas
consecutivas: a primeira, correspondente à codificação aberta, tem por objetivo
fazer emergir dos dados o maior número possível de conceitos e de categorias,
questionando-se sobre quais conceitos poderão corresponder aos dados ou
incidentes observados; a segunda, a codificação axial, corresponde ao processo
de relacionar categorias às suas subcategorias em torno de linhas, eixos
(axial), onde se encontram associadas as sua propriedades e dimensões; a
terceira, por sua vez, a codificação seletiva, visa o processo de integração
final e de refinamento da teoria.
Recolha de dados
A recolha de dados foi realizada através da observação e entrevista, durante
dois períodos distintos: o primeiro período decorreu durante o mês de novembro
de 2009 até ao mês de março de 2010; o segundo período, entre setembro e
dezembro de 2010.
- As observações foram efetuadas in situ (Jaccoud e Mayer, 2008),
correspondendo: à observação das interações de forma direta e dos contextos,
procurando ser discreto e não um intruso indesejável, evitando interferências
nas ações ou nos cuidados de saúde.
- As entrevistas foram realizadas, no primeiro período, com um caráter
essencialmente exploratório, no sentido de alargar horizontes e expandir o
universo de análise na perspetiva dos participantes. Posteriormente, no segundo
período, fizeram-se a um nível mais analítico, comportando já algumas dimensões
de análise, para aumentar a capacidade de comparabilidade dos dados entre os
sujeitos e de interpretação necessária ao processo de codificação e de
descrição, para que se pudesse ir muito para além do senso comum (Lessard-
Hébert et al., 2008).
Participantes da investigação
O grupo amostral de doentes ficou constituído com dezasseis participantes, dos
quais, catorze com DPOC, um com DPOC e com apneia do sono e um participante com
hipoventilação por obesidade, a fazerem oxigenoterapia de longa duração mais
ventilação não invasiva no domicílio. O grupo amostral dos cuidadores
familiares ficou composto com nove participantes, sendo três filhas, duas noras
e quatro cônjuges.
Apresentação e análise de dados
A apresentação e análise dos dados provenientes de dois grupos amostrais
distintos foram realizadas em conjunto, devido ao facto de as entrevistas aos
doentes e acompanhantes serem realizadas em simultâneo e se basearem,
essencialmente, naquilo que são as suas experiências e perceções sobre o objeto
de pesquisa.
Condições causais
Na perspetiva dos doentes e familiares cuidadores, a DPOC e a iniciação da VNI
surgem, ao longo do tempo, num contexto de alguma vulnerabilidade familiar ou
de suscetibilidade a infeções respiratórias, agravadas por condições de vida e
de trabalho adversas e por alguns comportamentos de risco (Figura_1).
Dificuldades e benefícios
Duma forma geral, os doentes são unânimes ao afirmar que a OLD isolada é mais
fácil de tolerar do que a VNI. Tal facto deve-se, em parte, à simplicidade e ao
conforto das interfaces: na OLD, os doentes utilizam lunetas nasais. Na VNI, as
interfaces prescritas, máscaras nasais e faciais, são consideradas
desconfortáveis. Como tal, torna-se inquestionável conhecer as dificuldades e
obstáculos, as medidas de superação, as estratégias adotadas, os principais
intervenientes e os recursos utilizados para que a adesão à VNI seja bem
sucedida (Figura_2).
Condições do contexto
A família é apontada como o principal apoio ao desenvolvimento das tarefas
inerentes à implementação das modalidades terapêuticas a que o doente está
sujeito. Todavia, este mantém uma maior ligação física e afetiva a um familiar,
com quem tem maior afinidade e grau de envolvimento nos cuidados decorrentes da
doença crónica e respetivos tratamentos.
Apercebemo-nos que, quando os contributos da rede familiar são insuficientes,
os doentes e os familiares mobilizam recursos de maior proximidade, como a
vizinhança ou centros de apoio social.
Em síntese, o doente, para satisfazer as atividades instrumentais e de vida
diária, mobiliza, em primeira instância, a família que se encontra física e
afetivamente mais próxima, com quem tem um relacionamento de grande partilha e
cooperação, recorrendo à vizinhança quando as circunstâncias o permitem. O que
significa que as IPSS são um recurso quando os cuidados informais não
satisfazem plenamente as necessidades.
Para os cuidados respiratórios contam, ainda, com um serviço de apoio
domiciliário permanente assegurado por empresas especializadas (Figura_3).
Intervenientes e estratégias
Da análise das entrevistas verificou-se o envolvimento dos seguintes
intervenientes: na área clínica, o médico de família, o médico pneumologista e
o enfermeiro do serviço de internamento; na área de prestação de serviços ao
domicílio, o técnico especializado em cuidados respiratórios (no nosso estudo,
cardiopneumologista); nos Centros de Apoio de Terceira Idade (CATI), o
enfermeiro e o assistente operacional.
Por sua vez, os dados obtidos pela observação levam-nos a acrescentar os
elementos seguintes: na área clínica, o técnico cardiopneumologista da Unidade
de Assistência Ventilatória (UAV); na área de ação social, o técnico de serviço
social, no acompanhamento de doentes que necessitavam de suporte social no
domicílio; na área das respostas sociais, nas CATI, o assistente operacional
(Figura_4).
As estratégias utilizadas pelos doentes e cuidadores familiares visam a
utilização dos recursos pessoais e familiares na implementação e manutenção da
VNI no domicílio, no sentido de corresponderem o melhor possível às medidas
terapêuticas. Salvaguardando a negociação que procura suavizar a exigência do
regime terapêutico, as estratégias em geral implicam a reestruturação familiar.
Nalguns casos, há uma reaproximação inter-geracional que conduz ao
reagrupamento do doente no domicílio dos filhos. Noutros casos, a família
inicia um processo de redefinição de papéis e responsabilidades, com a intenção
de integrar adequadamente a doença crónica e os tratamentos nos seus processos
de vida (Figura_5).
Consequências
Naturalmente que, no contexto em que o fenómeno se expressa no doente com DPOC
submetido à OLD e à VNI, as ações e interações desenvolvidas conjuntamente com
as respostas estratégicas têm como resultado uma satisfatória adesão ao regime
terapêutico.
Por conseguinte, os dados depois de lidos e relidos, cruzados com as respetivas
análises e com as notas de observação, permitem-nos esboçar um modelo cuja
estrutura e processo servem de ancoragem à compreensão e explicação do fenómeno
em estudo (Figura_6).
Neste modelo, que se refere apenas aos dados provenientes dos doentes e
familiares cuidadores, o processo de adesão ao regime terapêutico da pessoa com
DPOC resulta da concorrência recíproca e dinâmica entre os conhecimentos do
estado de saúde, as avaliações das dificuldades e dos benefícios terapêuticos e
o tipo de suporte e apoio mobilizado, implicando a participação de um conjunto
de intervenientes e o desenvolvimento de estratégias específicas.
Conclusão
Os doentes e familiares cuidadores mostraram possuir alguns conhecimentos sobre
a sua situação de saúde, que se foi agravando ao longo do tempo, por vezes
longo, num contexto de alguma vulnerabilidade e suscetibilidade a infeções
respiratórias.
Por estes motivos foram confrontados com um regime terapêutico, a OLD e a VNI,
que é seguido ou não com base numa avaliação que fazem sobre dificuldades e
benefícios da sua implementação. As principais dificuldades são o desconforto
causado pela máscara, os ruídos do ventilador, a falta de conhecimentos e a
intolerância à máscara e ao ventilador. Os benefícios estão relacionados com a
perceção da melhoria da saúde e do bem-estar, refletidos na redução da fadiga,
dispneia e cefaleias, no aumento da força, na melhoria do sono e do aspeto
físico.
O doente, para superar as dificuldades, conta com o suporte da família em
termos de acompanhamento, partilha e cooperação. Quando esse suporte é
percecionado como insuficiente, o doente e familiar cuidador recorrem a outros
familiares próximos e à vizinhança, ou então, ao suporte institucional, sendo
necessário o apoio das empresas de prestação de cuidados respiratórios
domiciliários de forma permanente e incondicional.
Como intervenientes significativos no processo de implementação da VNI, a
família e o cuidador informal atribuem ao enfermeiro funções/intervenções
importantes, tanto no domínio do informar, destacando acções relacionadas com o
ensino, instrução e treino, como no âmbito da adaptação à máscara e ventilador.
Para além disso, extrai-se deste estudo que os enfermeiros devem dar grande
importância aos significados e crenças que os doentes e os cuidadores
familiares atribuem à doença e aos tratamentos, quando têm como foco a
aceitação do regime terapêutico, e devem considerar as negociações/
renegociações terapêuticas e a reestruturação familiar para a implementação e a
manutenção da VNI no domicílio.