Práticas integrais na estratégia saúde da família no Brasil: o quotidiano do
trabalho em equipa
Introdução
Ao considerar que a organização e a reorganização dos saberes e das práticas em
saúde são constituídas em um movimento histórico e ideológico, promotor de
determinadas práticas e reprodutor de determinados saberes, este artigo surgiu
do reconhecimento de que os atos e as atitudes dos profissionais de saúde não
são apenas um conjunto articulado de técnicas neutras, mas sim fruto de um
processo de trabalho histórico, político e ideológico. Portanto, refletem
conceções relacionadas aos binómios cliente-profissional e saúde-doença que
trazem questões vertentes e contextos que têm contribuído para caminhar no
sentido de operar mudanças. Atualmente, no Brasil, tais mudanças ocorrem em
direção à implementação e qualificação das práticas em saúde com vistas a
sustentar uma assistência fundamentada nos princípios de universalidade do
acesso aos serviços, a integralidade da assistência à saúde e a equidade no
atendimento à população, que são constituintes da atual política nacional,
denominada de Sistema Único de Saúde (SUS).
O SUS está definido na Lei Orgânica da Saúde Nº 8.080/1990 como o conjunto de
ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas
federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das
Fundações mantidas pelo Poder Público, incluídas as instituições públicas
federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção
de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de
equipamentos para a saúde, garantida, também, a participação complementar da
iniciativa privada no Sistema Único de Saúde (Brasil. Presidência da
República,1990, Art. 4o, parágrafos 1o e 2o).
A criação do SUS objetivou alterar a situação de desigualdade na assistência à
saúde da população brasileira, tornando obrigatório o atendimento público a
qualquer cidadão, oferecendo serviços na atenção primária, secundária e
terciária. Dessa forma, as ações e serviços públicos de saúde passam a integrar
uma rede regionalizada e hierarquizada, organizada de acordo com as diretrizes
da descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (Brasil.
Senado Federal,1988, Art.198).
A política de saúde pública brasileira, desenvolvida ao longo dos anos 90 do
século XX, apresentou, como principal característica, a ênfase na Atenção
Primária à Saúde (APS) entre o conjunto de ações e serviços desenvolvidos pelo
SUS. A implementação da proposta da APS deu-se com a operacionalização da
Estratégia Saúde da Família (ESF) a partir de 1994, que orienta a reorganização
da lógica assistencial do SUS, incorporando a experiência anterior do Programa
de Agentes Comunitários de Saúde, iniciada em 1991, com enfoque na família como
unidade de ação programática de saúde e não apenas no indivíduo.
A ESF adota a diretriz de vínculo e propõe a adscrição de clientela num
determinado território e a existência de equipa multiprofissional responsável
por, no máximo, 4.000 habitantes, sendo a média recomendada de 3.000
habitantes, com turnos de 40 horas semanais para todos os seus integrantes e
composta por, no mínimo, médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem ou técnico
de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS). O número de ACS deve ser
suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de 750
pessoas por ACS (Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em
Saúde. Departamento de Análise de situação em Saúde. Coordenação Geral de
Doenças e Agravos Não-Transmissíveis, 2006). Essa equipa passa a ser referência
para os utentes e é dada à ESF a missão de mudar o modelo assistencial de
saúde, o modelo biomédico, ainda praticado. Segundo Franco e Merhy (2007), essa
mudança deve caracterizar-se quando se tiver um modelo centrado no utente. Uma
vez que, apenas por modificação da estrutura, não se garante que a relação dos
profissionais com os utentes seja também realizada sob novos parâmetros de
trabalho no território das tecnologias de saúde, e de civilidade, acolhimento e
construção de processos mais negociados e comprometidos com os clientes e com
os seus cuidados e processo de tratamento.
Portanto, na busca de reversão das dificuldades de acesso aos cuidados em
saúde, os municípios brasileiros investiram na implantação da ESF, que se
disseminou e resgatou, para a sociedade e para os sistemas locais de saúde, a
figura da equipa de Saúde da Família e da comunidade (Viegas e Penna, 2009, p.
3).
A proposta de um modelo de atenção na ESF no Brasil, centrado na qualidade de
vida das pessoas e na relação das equipas de saúde com a comunidade,
privilegiando a abordagem familiar, deve pautar-se em ações interdisciplinares
organizadas num território definido, em busca da melhoria das condições de vida
e saúde da população. Porém, na prática, essa Estratégia ainda não conseguiu
alcançar os seus objetivos na APS, pois a assistência ainda se fundamenta no
modelo biomédico, com enfoque na doença e com atenção fragmentada. Entendemos
que a construção da integralidade depende das políticas formuladas, da
organização do Sistema para sua implementação, das ações integradas em saúde,
mas também do reconhecimento, por parte do profissional, de que a atenção à
saúde deve ser sujeito-centrada.
Para um modelo assistencial centrado no utente propõe-se um processo de
trabalho multiprofissional e determinado por ações integrais em saúde, no qual
o ser humano é visto como um ser completo, entendido e percebido a partir de
seu ambiente físico e social, o que possibilita, às equipas da ESF, uma
compreensão ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções
que vão para além de práticas curativas. A produção do cuidado dá-se em ações
de acolhimento, vínculo, responsabilização e resolutividade. A prática
cuidadora fundamenta-se na monitorização e na articulação das diversas
intervenções em saúde por meio do acompanhamento do cliente pela rede de
serviços.
Na Constituição Brasileira de 1988, no seu artigo 198, a integralidade foi
contemplada como diretriz da assistência à saúde, no seu inciso II, primando o
atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais (Brasil. Senado Federal, 1988).
Pressupõe, também, a atenção focada no indivíduo, na família e na comunidade '
a inserção social ' visto que, ao longo dos anos, o entendimento da
integralidade passou a abranger outras dimensões, aumentando a responsabilidade
do SUS com a qualidade da atenção e do cuidado. Ela implica, além da
articulação e da sintonia entre as estratégias de produção da saúde, na
ampliação da escuta, quer individual e/ou coletivamente, de modo a deslocar a
atenção da perspectiva estrita do adoecimento e de seus sintomas para o
acolhimento da história do sujeito, de suas condições de vida e de suas
necessidades em saúde, respeitando e considerando as suas especificidades e as
suas potencialidades na construção dos projetos e da organização do trabalho
sanitário (Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.
Departamento de Análise de situação em Saúde. Coordenação Geral de Doenças e
Agravos Não-Transmissíveis, 2006).
No entanto, sem mudanças nos pressupostos e paradigmas a nortearem o modelo
assistencial brasileiro, não se pode esperar resposta satisfatória aos
problemas que se apresentam no dia a dia da interação da população com os
serviços de saúde. Para que as ações de saúde atendam ao princípio de
integralidade mediante a demanda de serviços dessa população, implica uma
assimilação deste princípio em prol da reorientação do modelo assistencial:
integral, humanizado e compromissado (Viegas e Penna, 2009, p. 14).
Assim, tentar compreender a integralidade no âmbito das práticas em saúde
torna-se importante, uma vez que estamos tratando do indivíduo e do coletivo e
tentar submetê-los numa determinada teoria/ideologia seria limitar, e até mesmo
impedir, o aparecimento de novas formas de se fazer e cuidar em saúde. Daí a
importância de se reconhecerem as práticas que possam contemplar o fenómeno
integralidade em suas diferentes nuances e captar esse processo como elaborador
de conhecimento no fazer em saúde.
O objetivo do estudo foi compreender a construção das práticas de integralidade
em saúde no trabalho quotidiano das equipas de Saúde da Família e de gestores
de municípios do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil.
Metodologia
O estudo é de abordagem qualitativa, delineada pela estratégia de pesquisa
Estudo de Casos Múltiplos Holísticos, fundamentado na Sociologia Compreensiva
do quotidiano originado de uma tese de doutoramento (Viegas, 2010).
Considerando que é no plano das práticas quotidianas, de profissionais da ESF,
da equipa de apoio e de gestores, que se dá a construção da integralidade com
as suas várias interpretações, fez-se a opção de lançar o olhar da Sociologia
Compreensiva do quotidiano, fundamentado em Michel Maffesoli sobre o objeto de
estudo, para compreender a integralidade por meio da pluralidade de visões e
experiências no quotidiano de trabalho dos profissionais. Para o autor a
sociedade não é apenas um sistema mecânico de relações económico-políticas ou
sociais, mas um conjunto de relações interativas, feito de afetos, emoções,
sensações que constituem, stricto sensu, o corpo social (Maffesoli, 1996, p.
73).
A sociologia compreensiva ocupa-se em descrever o vivido naquilo que é,
contentando-se, assim, em discernir as visões dos diferentes atores envolvidos
(Maffesoli, 1988, p. 25). É adequada para descrever os limites e a necessidade
das situações e das representações constitutivas da vida quotidiana, formada
pelo sujeito e pelas suas interações.
A necessidade de se utilizar a estratégia de pesquisa estudo de caso nasceu do
desejo de se compreender um fenómeno social complexo: a construção das práticas
de integralidade em saúde no trabalho quotidiano das equipas de Saúde da
Família e de gestores de municípios situados no Vale do Jequitinhonha, Minas
Gerais (MG), Brasil.
O Brasil é uma República Federativa Constitucional Presidencialista,
constituída por 26 Estados, um Distrito Federal e 5.565 Municípios. Os
municípios incluídos no estudo são Diamantina (46.212 habitantes), Gouveia
(11.915 habitantes) e Datas (5.418 habitantes) (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 2008). Essas cidades distam no máximo 30 Km entre si,
sendo que Diamantina, Patrimônio Cultural da Humanidade, localiza-se a 292 Km
da capital de Minas Gerais, Belo Horizonte.
O Vale do Jequitinhonha situa-se na região nordeste do estado de Minas Gerais.
O Vale é assim chamado devido ao rio com o mesmo nome, que tem a sua nascente e
maior extensão no Estado, e segue em direção ao Estado da Bahia, para desaguar
no Oceano Atlântico. O índice de pobreza da região é elevado, ocasionando êxodo
rural para os grandes centros urbanos e um esvaziamento demográfico
persistente. Tem sido caracterizada, em vários estudos, como região deprimida,
onde os índices de pobreza, miséria, desnutrição, mortalidade, analfabetismo,
desemprego e infra-estrutura sócio-económica imperam desfavoravelmente em
grande parte dos municípios (Penna, 2007).
A proposta foi realizar um estudo de caso individual em cada um dos Municípios,
constituindo-se um estudo de casos múltiplos. A pesquisa abarca sete equipas de
Saúde da Família destacadas em seis Unidades Básicas de Saúde, as equipas de
apoio e os gestores municipais. Dessa forma, por o estudo incluir três
municípios e várias equipes da ESF como cenários, configura-se casos múltiplos
holísticos, como unidade única de análise. Isto é, cada caso em particular
consiste num estudo completo, no qual se procuram evidências convergentes ou
divergentes com respeito aos fatos e às conclusões para o caso (Yin, 2005).
Fundamentando-se nas evidências resultantes de estudos de casos múltiplos em
que é possível usar a replicação literal, e as conclusões analíticas que
independentemente surgiram dos três casos são mais contundentes do que aquelas
que surgem apenas de um caso e pode-se chegar, neste estudo, a conclusões
comuns a partir de ambos os casos, estendendo de forma incomensurável a
capacidade externa de generalização das descobertas no estudo (Yin, 2005, p.
75).
A pesquisa de campo, durante um período de oito meses, teve por base um
levantamento de dados primários por meio de observação direta e entrevistas
individuais baseadas nas seguintes questões norteadoras: 1- Fale-me da sua
prática quotidiana na Estratégia Saúde da Família; 2- O que compreende por
integralidade em saúde?; 3- Como percebe o desenvolvimento da integralidade
nas ações da equipe de trabalho?; 4- deseja acrescentar algo? (Espaço
aberto para o informante). A observação foi utilizada como entrada no campo de
pesquisa. Foi realizada em ambiente de trabalho do participante ' Unidade de
Saúde, domicílio, comunidade. O registo dessas observações foi feito num diário
de campo elaborado após cada período de observação, identificada como notas de
observação (NO). A observação foi de natureza descritiva, focalizando o objeto
de estudo proposto. Os três casos foram conduzidos sucessivamente no período da
observação e simultaneamente no momento das entrevistas.
Os sujeitos desta pesquisa foram trabalhadores das equipas da ESF e das equipas
de apoio, entre médicos, enfermeiros, auxiliares/técnicos de enfermagem, agente
comunitário de saúde, cirurgião-dentista, auxiliar de consultório dentário,
fisioterapeuta e os gestores de cada município ' secretários de saúde com
acumulação de função de gestão, cujas participações foram voluntárias, num
total de 48 participantes. Como critério de inclusão, estabeleceu-se uma
atuação de, no mínimo, um ano na função/cargo de trabalho. Segundo o critério
da pesquisa qualitativa, o número de inquiridos não foi indicado a priori. No
total, eram 76 profissionais: membros das equipas ESF incluídas e alguns
profissionais de apoio que atendiam aos critérios de inclusão, mais os gestores
dos municípios. Porém, os dados da observação apresentaram-se suficientes no
48o sujeito acompanhado e no 35o sujeito entrevistado, determinando assim o
encerramento da coleta de dados.
A análise de dados foi feita com base no referencial de Bardin (2008),
utilizando-se a técnica do emprego da Análise de Conteúdo Temática, ou seja,
uma análise dos significados. As fases da análise foram: a) A preparação do
material: o registo das notas de campo e a transcrição das 35 entrevistas; b) A
leitura flutuante e globalizada dos dados; c) A exploração do material por meio
da codificação, efetuada por recorte do texto em suas partes, para serem
categorizadas e classificadas com vistas a uma decodificação do significado das
partes em relação com o todo, permitindo atingir uma representação do conteúdo,
ou da sua expressão (Bardin, 2008, p. 129). Em seguida, pela categorização '
que é uma operação de classificação de categorias, as quais reúnem um grupo de
unidades de registo sob um título genérico, agrupamento este efetuado em razão
das características comuns destes elementos. Neste estudo, o critério de
categorização foi o semântico, ou seja, a significação; d) O tratamento dos
resultados obtidos e a interpretação foram processados conforme o objetivo
previsto e a discussão com a literatura existente. Após uma interpretação
descritiva dos casos individuais, foram identificadas as linhas convergentes ou
contrárias, ou seja, resultados similares ou contraditórios e, a partir dessas
evidências, procedeu-se à análise dos casos múltiplos ou comparativos (Yin,
2005), para considerações finais pertinentes, como conclusão do estudo.
A pesquisa foi desenvolvida segundo as diretrizes e normas regulamentadoras de
pesquisas envolvendo seres humanos, a Resolução Brasileira do Conselho Nacional
de Saúde No 196 de 10 de outubro de 1996. Dessa forma, a coleta de dados
iniciou-se após a aprovação do projeto pelo Comité de Ética da Universidade
Federal de Minas Gerias (COEP UFMG), de acordo com o Parecer no ETIC 142/08. O
acesso ao campo de pesquisa foi obtido por meio de autorização dos prefeitos e
secretários de saúde dos municípios para conduzir o estudo, além do
consentimento livre e informado dos participantes. O anonimato dos sujeitos foi
garantido por meio da adoção de siglas enumeradas, referentes à primeira letra
que identifica cada profissão, seguida pelo número, de ordem sequencial, de
acordo com a equipa e profissional entrevistado.
Resultados e discussão
Os inquiridos, ao descreverem a sua prática quotidiana e o desenvolvimento, ou
não, da integralidade nas ações da equipa de trabalho, contemplam, nas suas
respostas, todas as atividades desenvolvidas, obedecendo à sua agenda
profissional e às suas atribuições enquanto membros da equipa da ESF.
Desde 1994 a ESF vem vindo a expandir rapidamente a cobertura em saúde da
população brasileira, e consequentemente a sua força de trabalho. Assim,
demanda atenção, responsabilização e contribuições de várias naturezase de
atores e instituições, para que o trabalho em equipa possa ser constituído
nessa estratégia.
Como eu vejo essa integralidade... com otimismo. Eu acho que tem altos e
baixos, mais altos do que baixos. Eu acho que toda a equipa está integrada,
procurando exercer as suas atividades. Tanto é que todos se entendem, convivem
e trabalham com maior entusiasmo dentro da equipa (M3). Eu percebo a prática da
integralidade nas ações da equipa quando um paciente, por exemplo, não é um
paciente da Dra M1, é um paciente nosso... Isso é integralidade, e o que ela
sabe do paciente eu sei, e os agentes comunitários também. Então a gente tenta
resolver o problema juntas... Quando eu falei da integralidade no sentido da
pessoa como um todo, na questão social aqui eu vejo muito, porque, não sei se é
porque eu trabalho há onze anos, e a Dra M1 há cinco, a gente conhece mesmo!
(E1)
O médico e a enfermeira percebem o exercício da integralidade nas atividades
desenvolvidas com base no entendimento, convivência, entusiasmo, nas
informações compartilhadas, já que o paciente é da equipa, afirmando o trabalho
conjunto na atenção à pessoa e à sua família. A ESF promove a prática integral
por aproximar a equipa da realidade das famílias.
No âmbito das ciências da saúde, várias são as discussões sobre como contribuir
para novas formas de pensar e agir nos espaços de atenção à saúde, no sentido
de efetivar a transformação de uma assistência focada na pessoa e não na
doença. Para isso acontecer, o trabalho coletivo na ESF deve sustentar-se num
conhecimento que inclui as determinações biopsicossociais de saúde-doença, numa
forma de atender aos princípios da universalidade, equidade e integralidade.
Eu acho que a integralidade é bem desenvolvida, sim. Porque cada um tendo a sua
função, os ACS têm a função de trazer dados para dentro da ESF. As auxiliares
ajudam a gente a resolver muitos problemas, acompanham-nos na visita, tanto a
enfermeira como as auxiliares, e estão ajudando a gente a prevenir e também a
curar, entre aspas, muita coisa. A gente trabalha aqui realmente como uma
equipa (ACS71). É que cada um dentro das suas atribuições procura desenvolver
melhor o trabalho para conseguir fazer com que a integralidade possa ocorrer
(ACS62). Os ACS, a enfermeira, auxiliar e técnico de enfermagem, auxiliar de
serviços gerais, médico, todos estão ali desenvolvendo o trabalho (ACS21).
As ações integrais podem levar a equipa a refletir sobre como solucionar os
problemas do ser humano, segundo o profissional, efetivando o trabalho em
equipa como fator aditivo para alcançar a integralidade. Evidencia-se a ideia
de que o estabelecimento de equipas multiprofissionais foi um dos elementos-
chave para o desenvolvimento do trabalho com maior integração na Saúde da
Família. Os resultados apresentam-nos essa integração no trabalho em equipa
para lidar com a complexidade da atenção na ESF, a qual toma a saúde no seu
contexto pessoal, familiar e social.
Pode-se inferir que as atribuições ou as funções de cada um dos profissionais
citadas complementam-se um nas palavras do outro: a gente trabalha realmente
como uma equipa (ACS71); para conseguir fazer com que a integralidade possa
ocorrer (ACS62); eu acho que a integralidade dentro da equipa sempre pode
refletir isso (TE71); porque cada um tem sua função, mas se um deixar de fazer
não é equipa (ACS21). Isso reflete-se na constatação de que não há
integralidade nas ações sem o trabalho em equipa reafirmando o que Araújo e
Rocha (2007, p. 456) dizem, a importância do trabalho em equipa na ESF é
ressaltada, principalmente, pelo aspecto de integralidade nos cuidados de
saúde.
Porém, a integralidade das ações na ESF deve construir-se em ações
interdisciplinares com adesão dos profissionais da equipa de apoio mas, também,
em ações intersetoriais:
A integralidade é derivada de cada setor, cada setor tem o seu objetivo, mas
também das várias disciplinas. Então a fisioterapia tem um objetivo, mas é
lógico que a gente tem que ter uma visão holística das pessoas que estão sendo
atendidas. Então o que a gente percebe é que essa integralidade acontece, ela é
um quadro que vai crescendo gradativamente. Você usa os conhecimentos, o saber
de cada um de acordo com as necessidades das pessoas (F6).
Nesse cenário, a composição da equipa ESF com apoio dos outros profissionais
não diz respeito apenas à incorporação de novos agentes na equipa mas sobretudo
à procura da superação da fragmentação por meio de planeamento de ações
interdisciplinares, mas que no quotidiano expressam-se em dificuldades para a
concretização:
O fato de a gente hoje trabalhar numa equipa multiprofissional, a gente tem
médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, fisioterapeuta, bioquímico, então
eu acho que essa equipa multiprofissional não está interligada, por exemplo,
para uma discussão de caso para poder é... saber mais sobre aquele paciente que
está ali sendo atendido. Mas eu acho que é muito presente essa coisa de buscar
todas essas possibilidades. Eu acho que nós todos, ou a maioria de nós, tem
essa visão de entender o que a nutricionista, as psicólogas podem estar
contribuindo para aquele paciente que eu estou atendendo ali. Qual dos médicos
estaria mais é... apto, de repente, a resolver determinado problema que a gente
está percebendo com a pessoa. Mas eu acho mesmo que o que falta é a gente ter
condição de estar sentando, de estar conversando. Isso não quer dizer que não
aconteça [...] Então, a gente tem deficiências, mas eu acho que existe essa
vontade de estar utilizando todas as pessoas, dessa rede que a gente tem, de
tentar atingir essa integralidade do cuidado às pessoas (E7).
Apesar de a interdisciplinaridade nas ações da equipa não ser ainda uma prática
vivida diariamente, segundo E7, os profissionais reconhecem que necessitam da
atuação de outros profissionais na equipe ESF. Vale a pena ressaltar a
importância da participação da equipa de apoio em Gouveia, o que representa
maior complementaridade e possibilidade de resolutividade no desenvolvimento da
atenção à saúde. Assim, os relatos indicam que persiste a necessidade de uma
maior interação, ao mesmo tempo em que se percebe que o trabalho em equipa
torna possível potencializar as ações já realizadas, bem como estimular e dar
suporte para as ações a serem desenvolvidas, com vistas a promover a atenção
integral à saúde.
Tendo isto em vista, Araújo, Dias e Bustorff (2011, p.17), observam a
importância de se adicionar às equipas básicas de Saúde da Família outros
profissionais, que contribuirão para a promoção da saúde dos clientes perante
as suas capacidades individuais profissionais, promovendo a
interdisciplinaridade, a exemplo do psicólogo, do nutricionista, do
fisioterapeuta e do educador físico, seja pelo valor de cada um dentro do
tratamento especifico, seja pela necessidade de se educar a população de forma
holística, para a conscientização da necessidade de mudança de hábitos de vida,
no que se refere à prevenção de danos e promoção do bem-estar geral.
Essencialmente, para que a ESF desencadeie um processo de construção de novas
práticas, considera-se imprescindível que os trabalhadores articulem uma nova
dimensão no desenvolvimento do trabalho em equipa. Torna-se necessária a
incorporação não apenas de novos conhecimentos, mas também de mudanças na
cultura e no compromisso com a gestão pública, que garanta uma prática pautada
pelos princípios da promoção da saúde (Araujo e Rocha, 2007).
O espaço de discussão a que o inquirido acima se refere representa a
oportunidade de socialização das informações referentes aos atendimentos
realizados individualmente por cada profissional, que poderiam ser apresentados
e discutidos pela equipa contribuindo assim para a tomada de decisão e para o
envolvimento de todos em relação ao acolhimento das necessidades do utente.
A composição da equipa de referência e a criação de especialidades em apoio
matricial procuram criar possibilidades para se operar com uma ampliação dos
trabalhos clínico e sanitário, já que se considera que nenhum especialista, de
modo isolado, poderá assegurar uma abordagem integral. Essa metodologia
pretende assegurar maior eficácia e eficiência ao trabalho em saúde, mas também
investir na construção de autonomia dos utentes. A sua utilização como
instrumento concreto e quotidiano pressupõe certo grau de reforma ou de
transformação do modo como se organizam e funcionam os serviços e sistemas de
saúde. Isso indica a existência de dificuldades e obstáculos para a
reorganização do trabalho em saúde a partir dessas diretrizes (Campos e
Domitti, 2007, p. 400).
Se, de um lado, há reconhecimento, pelo informante E7, de que as discussões de
caso não são formalizadas e que há deficiências na prática diária, por outro
existe a procura de possibilidades e a vontade de tentar atingir essa
integralidade do cuidado às pessoas, e, consequentemente o trabalho em equipa.
Entretanto, é necessário destacar que a construção da integralidade na prática
quotidiana dos trabalhadores da saúde revela, em alguns momentos, afirmações,
possibilidades, de um fazer compartilhado e, em outros momentos, incoerências,
um fazer descontinuado, fragmentado:
Aqui é assim, às vezes, tem uma equipe e uma EUquipe, não é? Cada um faz a sua.
Então a gente sabe que todo lugar tem gente que faz e tem gente que faz de
conta que faz. Mas a maioria trabalha mesmo é nessa função de estar sempre
podendo, na medida do possível, resolver as questões, dentro das medidas que o
município oferece, certo? (AE71).
Verifica-se, portanto, que apesar das possibilidades para o trabalho em equipa
' pois os informantes apresentam as interações profissionais, com novos
protagonistas na ação compondo um trabalho conjunto entre equipe de apoio e
equipes da ESF ' os resultados afirmam que o cuidado individualizado considera
a fragmentação das ações. Logo, cabe enfatizar a prioridade do individualismo
em toda a reflexão sobre o trabalho em equipa
Mas deve ser destacado que a visita domiciliar constrói, nos cenários em
estudo, novos ecos para a integralidade em saúde (NO) como, também, a ajuda
mútua entre os componentes da equipa:
Nós, a nossa equipa ACS, auxiliar, enfermeiro, médico, procuramos fazer todo
esse processo, o ACS buscando em casa, levando pra Unidade Básica de Saúde,
para o enfermeiro ou o médico, e sobre a necessidade (do utente) o médico estar
encaminhando (ACS52). Na equipe em que eu trabalho acho que todos têm o mesmo
objetivo, um procurando, da melhor forma, ajudar o outro a resolver os
problemas surgidos, de estar procurando melhores condições para os pacientes
(AE5).
Esses depoimentos podem levar a uma reflexão que indica caminhos em direção a
uma configuração da equipa multiprofissional com atuação interdisciplinar,
potencializando, assim, cada ação programada e executada. Nessa perspectiva, a
responsabilidade da atenção à saúde passa a ser descentralizada da figura do
profissional médico, sendo dividida entre os membros da equipa.
A horizontalidade dessa relação dos sujeitos está manifesta no reconhecimento
do outro como par e como interlocutor, e na criação de vínculos de
reciprocidade e colaboração no trabalho em saúde. A essa relação segue-se a
cooperação, na identificação e na assistência a um problema ou a uma
necessidade do cliente de forma sistemática, um colaborando com o outro, um
ajudando o outro a resolver os problemas surgidos.
Segundo Severo e Seminotti (2007, p. 14), trabalhar em Serviços Públicos em
saúde requer um olhar multidimensional, abertura às contradições e rupturas nas
lógicas advindas dos conhecimentos e formações disciplinares. É por meio das
interligações entre as partes, no trabalho em redes, na visão psicossocial e
coletiva que o trabalhador exercita a mudança de seu fazer profissional no
trabalho em equipes. Paradoxalmente, aí é que se encontram os seus maiores
desafios.
O princípio da integralidade está inserido na consciência crítica dos
profissionais de saúde, como os resultados apresentam. Assim, partindo de um
contexto complexo com o qual esses profissionais estão em constante interação,
é possível que, na prática, se evolua para uma rotina de ações transformadoras
e integralizadas, frutos de uma ajuda mútua.
No entanto, alguns sujeitos da pesquisa enfatizam dificuldades na implementação
da integralidade:
A integralidade de um modo conjunto, dentro da ESF, nós não temos. Para um
melhor atendimento, seriam necessárias dependências adequadas, porque aqui é
muito inadequado. Seriam necessários exames complementares para que eu pudesse
acompanhar o doente, porque a gente fica restrito a seis, a oito, a vinte
exames para atender trezentas, quatrocentas pessoas. Então, a maioria não é
atendida sob o ponto de vista de exames complementares naquilo que pode nos
ajudar nos diagnósticos das doenças (M2). Eu acho que está sendo mais ou menos,
eu não acho muita integração de todos os profissionais, não. Porque, às vezes,
a gente tenta fazer a parte da gente, integrar com a comunidade mas, por outro
lado, já falta uma comunicação junto com os outros (profissionais), com as
outras Unidades de Saúde. Porque, às vezes, a gente tenta conseguir uma
consulta especializada, mas as vagas são poucas. Então, acaba não integrando
bem, porque a gente fica mal visto com a comunidade aqui (AE2).
A falta de integração entre os profissionais da equipa com outros Serviços foi
apontada como uma restrição para o desenvolvimento da integralidade nas ações.
Além da falta de recursos físicos e materiais adequados para o trabalho da
equipa e, também, a escassez de recursos tecnológicos para o apoio diagnóstico
foram evidenciadas como perdas para a atenção integral. Ao indicar a referência
do cliente para outros níveis de atenção o relato indica que o acesso é difícil
e interrompe o desenvolvimento da integralidade na rede de atenção à saúde.
Integralidade, muito picada, muito. Com a vinda de E5, ela está tentando dar um
melhoramento nisso. Mas é ainda muito descentralizada, assim, eu tenho que
fazer o meu serviço, então deixa eu fazer o meu serviço (M4). Eu não percebo a
integralidade. Acho que está muito fragmentado. Cada um fazendo o seu serviço.
Eu acho que cada um está fazendo da melhor forma, mas se tivesse uma união, ou
melhor, um planeamento, eu acho que a gente conseguiria atingir as metas,
chegar aos resultados que a gente quer (CD4). A gente tenta trabalhar da melhor
forma possível, estar integrando meu serviço com o médico, com o outro
enfermeiro, com o ACS, nem sempre a gente consegue... fazer da prática o que a
teoria nos pede, que é estar 100% na integralidade, mas, e até porque meu
serviço é muito corrido [...] Até mesmo com outros Serviços secundários,
terciários, a gente sempre reclama que tem a referência e não tem a
contrarreferência. [...] Então, assim, 100% eu acho que em Serviço nenhum
existe, mas o que a gente pode fazer, o mínimo que a gente consegue fazer a
gente tenta fazer (E4).
Se por um lado essas falas abordam a fragmentação das ações e da atenção na
referência para outros Serviços de Saúde e setores, por outro é possível também
percebê-la refletida nos espaços de trabalho dos próprios profissionais da ESF.
Em estudo realizado por Kell e Shimizu (2010) percebeu-se que, no processo de
trabalho desenvolvido na ESF, cada um dos trabalhadores especializados exerce
as ações isoladamente. Verificou-se que a complementaridade não é aproveitada
pelos profissionais, no sentido de expressar articulação entre os trabalhos. Os
trabalhos especializados estão justapostos, sem que as conexões estejam
evidenciadas pela intervenção consciente de um sujeito articulador.
Ainda que os profissionais inquiridos neste estudo tenham um objetivo comum '
que é responder às necessidades das pessoas e da comunidade - em algumas ações
as equipas trabalham com interações pontuais, sem inter-relações entre os
saberes, duplicando esforços, mesmo tendo uma visão integrativa do ser humano a
ser cuidado (Loch-Neckel et al., 2009; Spagnuolo e Guerrini, 2005). Desse modo,
é importante destacar a proficuidade da teorização sobre o processo de trabalho
em saúde para analisar a realidade quotidiana da ESF.
Conclusão
Pensar a atenção em saúde de forma integral é recusar-se a reduzir o paciente
ao sistema biológico ou à queixa que supostamente produz o sofrimento, portanto
a interdisciplinaridade nas ações em saúde torna-se necessária para uma
abordagem que dê conta de respostas eficazes. Observa-se, neste estudo, que
para os inquiridos o trabalho em equipa é a base para as ações integrais na
ESF. Assim, o trabalho em equipa na Saúde representa um processo de relações a
serem pensadas pelos próprios trabalhadores e possui múltiplas possibilidades
de significados quando realizado na perspectiva de uma atenção integral.
Os resultados mostram que as práticas integrais em saúde, muitas vezes, são
contempladas pela equipa outras vezes, demonstram que cada profissional realiza
a sua função de forma isolada ou compartilhada, pouco interativa e pouco
articulada. Porém, os inquiridos demonstram também abarcar múltiplos interesses
de transformação da prática hegemonicamente instituída abrindo caminhos no
sentido de concretização do princípio da integralidade, um deles, denotado na
percepção dos profissionais acerca da discussão de caso como forma de
garantir uma atenção integral à saúde das pessoas, famílias e comunidade.
Dessa forma, a construção da integralidade incide de forma gradual no Sistema
Único de Saúde Brasileiro, transformando ações e práxis, modificando todo um
cenário, de base positivista, fundamentando-se no quotidiano dos serviços, o
qual é determinado pelas especificidades dos contextos vividos e das
possibilidades de uma atenção mais integral e humana em saúde.
Procurou-se, nesse artigo, abalizar a reflexão dos profissionais de saúde, ao
distinguir que cada um faça seu papel, mas que conjuntamente construam e
consolidem experiências que requerem estratégias de apoio, transcendendo os
antagonismos. Só assim será possível promover a expansão das ações integrais em
saúde.
Cabe enfatizar que esta pesquisa é um estudo de casos múltiplos holísticos;
cada um dos casos constituiu uma entidade única, submetida a uma análise
particular e contínua. Após a análise criteriosa de cada caso, os dados
apresentaram resultados semelhantes conferindo-lhes a replicação literal e uma
capacidade de generalização. A validade externa fundamenta-se nas convergências
dos dados, ou seja, nessa replicação literal; e as constatações dela
decorrentes, por retratar uma situação real em seus múltiplos aspectos,
permitem inferência e comparações com situações similares. Acrescenta-se a
descrição de que há de se levar em conta a efetividade de uma política como a
ESF nessas realidades, pois quantas portas foram abertas para as populações
locais, além dos avanços demonstrados nos resultados, apesar das dificuldades
apresentadas para o alcance dos objetivos a que se propõe essa Estratégia, bem
como para a integralidade nas ações das equipas.