Exclusão social e violências quotidianas em bairros degradados: etnografia
das drogas numa periferia urbana
1 – Introdução: das relações entre drogas e exclusão social
Ao longo dos anos 80 e 90 do século que há pouco terminou, habituámo-nos a ver
o termo “droga” associado ao do tráfico e ao do crescimento da pequena
criminalidade. A legislação penal promulgada em meados dos anos 90 daria
expressão legal a estas associações, equiparando o crime de tráfico, em termos
de gravidade para a sociedade, aos de terrorismo ou de homicídio qualificado,
tornando a prisão uma das mais importantes instituições de “acolhimento” de
indivíduos relacionados com drogas através do consumo, da venda ou do crime
conexo. Isso mesmo mostraram as análises sobre a evolução do número e do tipo
de detidos no sistema prisional português, tanto para a população feminina
(Cunha, 2002) como para a masculina (Fernandes e Silva, 2009). Entretanto, a
última década do século passado e a primeira do actual assistiriam à ascensão
dum tema que tem vindo, progressivamente, a dominar a questão social: o da
exclusão. O fenómeno droga teria agora um novo terreno para a produção de
associações, mostrando mais uma vez a sua vocação de atractor dos temas mais
problemáticos da vida social. Foi assim que vimos as mais mediáticas zonas de
“exclusão social” serem também os “bairros da droga” por excelência – dêem-se
os exemplos do Casal Ventoso ou da Cova da Moura para Lisboa e do Aleixo ou do
S. João de Deus para o Porto.
As imagens televisivas foram-nos fazendo aparecer com regularidade, mostrando-
os como infernos da urbe, enclaves de desordem onde se manifestariam todos os
males que vêm à tona quando se fala de exclusão. Estava também, deste modo,
aberta uma nova frente no discurso sociopolítico: reconhecida uma dimensão
territorial na exclusão, as drogas vão sendo conotadas com certas zonas “de
marginalidade”, que passam a constituir alvos privilegiados na acção policial
de “combate ao tráfico”; a retórica política vê-as como causa da exclusão,
manipulando o alarme social que o tema já naturalmente gera de modo a
justificar operações urbanas de “limpeza de terrenos”, que ficam livres para a
reentrada no circuito lucrativo da cidade. Já nos detivemos na análise destes
processos noutro lugar (cf. Fernandes e Pinto, 2004; Fernandes, 2006),
advertindo também para o facto de o expediente nada ter de original, pois
detecta-se em várias latitudes geográficas, correspondendo a um estilo concreto
de política de cidade na gestão de “populações problemáticas”.
1
Neste artigo pretendemos deslocar a análise das relações entre droga e exclusão
social para um outro terreno, afastando-nos das formas elementares das análises
mediática e sociopolítica. A simples enunciação dos termos “droga” e “exclusão
social” é produtora de ambiguidades: são conceitos-contentor, no interior dos
quais cabe uma série de temáticas, de saberes, de intervenções. Temo-lo vindo a
repetir: mais do que perante conceitos, estamos perante áreas de convergência
temática, que geram um efeito-íman sobre uma dispersão de actores e situações,
e organizam formas de falar a vida conturbada das grandes cidades, oferecendo
simultaneamente causas e consequências para uma grande quantidade de situações
vividas como problemáticas. Acresce que, nas últimas três décadas, têm também
convergido uma sobre a outra: como se a droga potenciasse a exclusão e esta
potenciasse aquela – exemplo esclarecedor, o do sem-abrigo que mora na rua por
causa da sua trajectória desestruturadora de toxicodependente, mas a sua
trajectória foi realmente desestruturadora porque vivia num “bairro crítico”,
era um desescolarizado e desempregado de longa duração (atentemos nos prefixos
seme des: a exclusão define-se por aquilo que desapareceu ao longo do ciclo de
vida do indivíduo).
Em que terreno nos colocaremos, então, para a análise? No empírico, como é
próprio das ciências sociais e humanas. Num empírico feito duma longa
permanência no terreno, no contacto directo com os actores e as actividades em
dois bairros de que o cidadão comum tem notícia por causa do “mundo da droga”.
O presente texto retoma, assim, uma narrativa que já vem de trás, quando, no
princípio dos anos 90, iniciávamos no Aleixo a etnografia do fenómeno droga num
bairro que era já na época apontado como um dos principais núcleos de exclusão
social do Porto e um dos seus mais dinâmicos “hipermercados das drogas”2.
Continuamos, deste modo, o exercício duma analítica das condições reais da
exclusão: tanto da que se exerce a partir de fora pela acção de determinantes
estruturais, como a que se produz a partir de dentro pela vivência quotidiana
condicionada por tais determinantes. Veremos como o fenómeno droga, tanto no
plano experiencial do ser-se junkieem territórios marginais da cidade, como no
plano da reacção social que suscita, se constitui como um analisador das
relações entre violência estrutural e violência quotidiana – porque é na
relação entre elas que podem desocultar-se os processos de exclusão.
Guardaremos para a secção final a explicitação destes tipos de violência, à luz
do percurso que propomos pelos dois bairros em que tem decorrido a investigação
empírica.
2 – Metodologia
O presente artigo dá conta de alguns dados provenientes de uma investigação em
curso desde Agosto de 2007, realizada em parceria entre a Fundação Filos
3
, numa primeira fase, a Cooperativa Arrimo4, numa segunda fase, e a Faculdade
de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, con-forme
protocolo celebrado entre elas para o efeito. O estudo em causa tem como
objectivo principal a caracterização dos Territórios Psicotrópicos5da Zona
Oriental do Porto, correspondentes à área de intervenção da equipa de redução
de riscos e minimização de danos ARRIMO. Esta caracterização visa constituir
uma base de conhecimentos que facilite aos profissionais no terreno um adequado
feedbackinformativo que lhes permita tomar decisões para a melhoria da
qualidade assistencial. Esta investigação encontra-se ainda a decorrer.
O método utilizado é o etnográfico, usando como técnicas nucleares a observação
directa, evoluindo para observação participante sempre que as condições do
setting o permitam, e a entrevista nas suas diferentes modalidades, da
programada à informal, realizada aos actores das drogas, a moradores e a
profissionais da rede sociossanitária. A presença no terreno acontece,
sistematicamente e desde o início, pelo menos três vezes por semana, estando um
dos investigadores integrado na Equipa de Rua da Cooperativa Arrimo (ER). Estar
com a equipa na rua constituiu-se, inicialmente, como a âncora de terreno que
naturalizava a presença do investigador ali. Com o passar do tempo foi-se dando
uma progressiva autonomização, alargando a outros territórios das mesmas zonas
o trabalho de observação e as entrevistas.
Uma das características dos territórios psicotrópicos é a sua grande
mobilidade. Constituem-se quando e onde se reúnem uma série de condições
ecossociais específicas e deslocam-se quando estas são alteradas. Foi o que
aconteceu antes e durante o estudo que estamos a levar a cabo. No seu início, o
Bairro São João de Deus (BSJD) ainda era um dos principais palcos do fenómeno
droga, apresentando uma grande concentração de consumidores e, por esta razão,
acolhia a sede da Arrimo e grande parte do giro da ER decorria aí. A restante
zona oriental apresentava bastante menos actividades ligadas ao “mundo das
drogas”. A desarticulação do bairro fez com que estes territórios se movessem,
num mecanismo adaptativo que se revelou altamente eficaz para a sobrevivência
das actividades em torno das drogas. Assim, após a demolição do bairro, a cena
drugdeslocou-se, no que diz respeito à zona oriental, para o bairro do Cerco e
cercanias, estendendo-se posteriormente para alguns bairros vizinhos e para os
seus espaços desactivados/ desabitados (fábricas, viadutos, casas
abandonadas...). Fiéis ao princípio etnográfico de seguir as sinuosidades do
objecto, passámos também a realizar trabalho de campo nestes novos territórios.
3 – São joão de deus: construção e crescimento dum “bairro das drogas”
O São João de Deus (BSJD) é um dos principais bairros sociais do Porto,
começado a construir em 1944 e a demolir em 2002. Antes de se iniciar a sua
demolição, habitavam-no cerca de 5000 pessoas, das quais cerca de metade eram
de origens cigana e cabo-verdiana. Resta hoje o conjunto habitacional mais
antigo, com uma tipologia diferente da que conotamos com o “bairro social”. O
estatuto de espaço marginal que, sobretudo a partir da segunda metade dos anos
80, viria a conhecer, cedo começou a construir-se. A sua fama de lugar
proscrito valer-lhe-ia o cognome de Tarrafal: à semelhança doutros conjuntos
residenciais camarários, também o BSJD se tornou, devido talvez ao seu marcado
isolamento, num “bairro de castigo”, destino daqueles a quem o Antigo Regime
retirava o direito de viver noutros bairros sociais, devido a “mau porte moral
ou cívico”, conforme o texto da lei de 1945 sobre o regulamento dos bairros
camarários. Assim, tanto no imaginário da cidade como no de quem lá habitava,
uma imagem estigmatizante, reforçada pela realidade que aí se vivia, foi sendo
consolidada ao longo dos tempos (Caspurro, 2004). É neste cenário pouco
favorável que viria a inscrever-se uma importante actividade em torno das
drogas ilegais, que o conduziria, nas duas últimas décadas do século, ao
estatuto de maior “supermercado de droga” do Porto. A preocupação pública que o
tema droga suscitava então atraiu sobre si uma grande atenção mediática,
reforçando-lhe a imagem negativa e o olhar estigmatizante que o resto da cidade
lhe lançava.
4 – O São João de Deus e a cena drug
“De todo o bairro emana uma dimensão sacrificial. Sacrifício dum
bairro abandonado desta forma, sacrifício duma população obrigada a
viver em tais condições, sacrifício da vida destes consumidores.”
(excerto do diário de campo)
Quando o nosso estudo teve início, uma parte muito significativa do bairro
tinha já sido demolida. A população que o caracterizava, a forma como ela se
inter-relacionava, o intenso movimento humano de que o bairro era palco, a
organização do mercado de drogas e os próprios locais de consumo tinham sofrido
recentes mas profundas alterações. Faremos uma incursão pelo estado do bairro
em 2007 e 2008, recuando, sempre que os dados recolhidos nos permitam, aos
inícios de 2000, altura em que o São João de Deus estava no seu apogeu como
“bairro de drogas”.
4.1 – O Tarrafal, um supermercado de drogas
Quem vem da Universidade Lusíada começa por descer uma ampla e moderna via
rodoviária. Do lado esquerdo, depois da universidade, um lar de 3ª idade
afirma-se como uma das últimas construções antes de entrar nos baldios. A
seguir a este, apenas meia dúzia de casas desamparadas. Do lado direito, o
baldio vem já desde o início da rua. No muro de betão que separa o passeio do
descampado alguém escreveu, talvez à laia de aviso: “ADORO DROGAS”. O Bairro
São João de Deus está isolado por uma extensa zona de descampado por um lado, e
pelo outro é tamponado por uma via rápida de intenso tráfego. Dificilmente
alguém chega aqui inadvertidamente.
A nova via desemboca numa rotunda, donde saem mais duas ruas asfaltadas
recentemente e uma terceira, em direcção a um oeste cheio de pó, esburacada e
sem passeios, entra no bairro. São João de Deus ergue-se à direita, numa
encosta em agonia. Os prédios beges escuros estão completamente degradados,
cheios de manchas de humidade, vidros partidos, janelas emparedadas, portas
rebentadas. As áreas comuns estão destratadas, crescem ervas daninhas e há
entulho nos canteiros. Do complexo inicial restam apenas 5 blocos que assumem,
grosso modo, a configuração da letra E. Da entrada do bairro avista-se ao alto
uma caixa de electricidade, em cujas paredes está grafitado em letras garrafais
azuis e pretas: “TARRAFAL”. Mais ao lado pode ler-se: “Rui Rio, as pessoas
deste bairro também são gente“, por baixo, em letras menores: “Jobs for the
boys”.
No ar, o cheiro do bairro remete para a estagnação e para a sujidade. A
atmosfera é de tal forma desoladora, de tal forma alheada do mundo, que
rapidamente se propaga e, por osmose, se transforma num sentimento de
esquecimento e de destruição interior: “Na berma da estrada está um esgoto ao
ar livre, os cães deitam-se nele para se refrescarem, o cheiro é nauseabundo.
Vê-se gente à janela a observar. Nos dias de sol, famílias inteiras de ciganos
transportam para o exterior cadeiras e bancos, alguns quase desfeitos. Às vezes
montam tendas à porta dos blocos. Sentam-se a desfrutar do sol e do ar livre
enquanto conversam e vêem quem passa. Há personagens dignas de uma película de
Kusturica (…) o marido da Dona A. lá está, na sua cadeira de praia de estofo
esburacado e sujo, muito alto e magro, com a tez morena manchada (é portador de
VIH). Veste sempre impecavelmente de negro, usa uns óculos de sol espelhados e
anéis de ouro na mão esquerda. Tem a pose altiva de um lorde, cumprimenta-me
com um mui digno inclinar de cabeça. Parece reinar sobre toda aquela
destruição.” (diário de campo, 9.9.2007);
“Nas bermas estão estacionadas carrinhas de feirantes mas também carros de alta
cilindrada, muitos deles com vidros fumados. É frequente ver carros
violentamente acidentados, alguns ficam lá abandonados e acabam por se tornar a
casa de alguns dos consumidores de rua.” (diário de campo, 12.11.2007).
Entrar no bairro exige uma finalidade. Ninguém lá vai passear ou a caminho de
algum lugar, por isso existem sempre vigias às suas entradas: «Entrei no bairro
a pé, em direcção ao Arrimo. Vejo algumas mulheres, a sua maioria jovem, a
conversar à porta dum dos blocos. Olham-me desconfiadas. De repente, uma cigana
mais velha, talvez de 50 anos, salta do muro e tapa-me o caminho, perguntando-
me aonde é que eu ia. Respondi-lhe que trabalhava lá em baixo no Arrimo: “Ai,
desculpe doutora, não a conhecia.”» (diário de campo, 22.09.2007).
Ultrapassado o check point, verificamos que a estrada, logo no seu início,
sofre uma bifurcação à esquerda, a qual dá acesso ao centro comunitário e a uma
pequena e agora isolada mercearia. Neste local situavam-se vários blocos e,
segundo registos da ER da Arrimo, a venda de drogas e o tráfego humano eram
intensos. O ambiente do bairro era sentido como ameaçador: «“Na parte de baixo
do bairro havia uma sucata, aquilo ainda estava cheio de prédios. As pessoas
punham tábuas de madeira para passarem duns edifícios para os outros. Era uma
barulheira que nem imaginas!” S. conta-me como era o bairro antes de se terem
iniciado as demolições. Do lado esquerdo da estrada principal, onde resta
apenas uma pequena mercearia, aponta-me vestígios de uma escada: “Tás a ver
aqui estas escadas? Era um formigueiro de gente, sempre a descer e a subir. A
primeira vez que vim ao Arrimo, para começar a trabalhar, vim a pé. Havia
imensa gente na rua, eu perdi-me e andei por aqui à toa.O que valia era que eu
vinha da favela no Brasil e já estava habituado, mas isto tinha um ambiente
muito pesado. Era muito perigoso!”» (S., 35 anos, Técnico Arrimo).O bairro
parecia reger-se por uma lei interna muito própria: “Aqui havia sempre muitos
carros, chegavam a fazer fila. As pessoas vinham cá comprar e, como tinham
medo, evitavam sair do carro. Às vezes, um cigano passava-se porque queria que
eles viessem a pé, pegava num bastão e batia nos carros todos. Chapa, faróis,
tudo amolgado e partido. E ninguém dizia nada, nem saía do carro.” (V., 27
anos, assistente social).
Segundo registos da Arrimo, o bairro era, em 2003, visitado diariamente por
1500 consumidores. Estava plenamente estabelecido o estatuto de “bairro de
droga”, actividade na qual uma parte da população participava: “Uns vendiam,
outros cortavam, alguns guardavam o material ou o dinheiro… outros participavam
no sistema de vigia… eu acredito que a dada altura, mais de 85% da população do
São João de Deus estava metida no negócio da droga.” (A., 54 anos, morador do
BSJD); “Em termos humanos, deparamos com uma amálgama. Convivem (e habitam) no
espaço comum, os moradores do bairro (destacando-se a etnia cigana, pela sua
exuberância) e a população toxicodependente. Estes, na sua maioria (mais de
90%), são oriundos de fora do bairro, que funciona todas as vinte e quatro
horas de cada dia do ano como um “supermercado” de heroína e cocaína, aberto a
toda a cidade (…)” (Caspurro, 2004).
Foi justamente a visibilização destas actividades, operada pelos diversos meios
de comunicação social, sempre associada aos temas da marginalidade e da
exclusão, que ajudou a consolidar a imagem negativa que o bairro carregava já
desde as suas origens. Alguns responsáveis autárquicos fariam eco desta imagem,
legitimando assim a decisão de demolir aquele que qualificaram como “cancro da
cidade que urge extirpar”.
4.2 – Plataformas Junkie: os clientes, os flutuantes e os residentes
Seguindo a estrada principal, encontramos ainda os indefectíveis junkies: uns
capeam
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, outros vigiam, outros descansam estirados nos canteiros, no meio do lixo. São
sem-abrigo, estão magros e têm a roupa desfeita no corpo. Podem ver-se alguns
braços com edemas e feridas. Pouco falam e se falam, dificilmente olham
directamente nos olhos do interlocutor. É muito frequente ver (e falar com)
indivíduos com a seringa espetada no braço ou nas pernas: «… D. teve uma agulha
espetada no braço durante a hora e meia que a equipa esteve no bairro, diz que
está com dificuldade em encontrar veias e assim o “trabalho está facilitado”.
Isso não o impede de andar de um lado para o outro, capeando e falando com os
outros consumidores» (diário de campo, 9.9.2007); “… R. estava sentado num
degrau. Tinha a seringa espetada na perna, pés e mãos muito inchados, cheios de
feridas e crostas de sangue. Mostrou-nos uma ferida que tinha na barriga e que
sangrava. É seropositivo. Olhava-nos com uns olhos muito tristes, sem fundo.”
(diário de campo, 14.9.2007).
Em termos estatísticos, e recorrendo aos dados do relatório de actividades da
Arrimo dos anos 2000-2004, registou-se, num total de 281 colheitas de sangue
realizadas a utentes deste serviço, a seguinte prevalência de doenças infecto-
contagiosas: 45% portadores do vírus de imunodeficiência humana (VIH); 71%,
infectados com o vírus da Hepatite B; 77% com Hepatite C e 10% com Sífilis.
Os utilizadores podiam ser, grosso modo, divididos em três grandes grupos de
indivíduos: os clientes7– consumidores que iam ao bairro comprar substâncias
psicotrópicas e que aí permaneciam apenas o tempo indispensável para tal; os
flutuantes, que iam ao bairro comprar e consumir, voltando depois às suas
actividades angariadoras de dinheiro (mendicidade, arrumação de carros,
prostituição…) e logo que o obtinham, voltavam aí para reiniciar o ciclo
consome-angaria-compra-consome; e os residentes (ou fixos), que correspondiam a
indivíduos em ruptura social, eram sem-abrigo e viviam em total exclusividade
de e para o “mundo das drogas”, reduzidos à expressão mínima no que toca a
cuidados alimentares ou de higiene. Estes três grupos correspondem a três graus
de envolvimento: desde um mínimo, em que a ida ao bairro é meramente
instrumental, a um máximo, em que o local se torna lugar de vida.
Os residentes organizavam-se de forma a nunca ter de abandonar o bairro,
encontrando nele forma de angariar dinheiro para os seus consumos. Usualmente
exerciam três funções principais, que muitas das vezes acumulavam: capear,
venderou desempenhar o papel de “enfermeiros”. Os capeadorestrabalhavam para os
vendedores de drogas, atraindo a clientela e dirigindo-a para determinadas
“bocas de venda”. Os vendedores comercializavam seringas e todo o material
necessário para as práticas de consumo, bem como cigarros e medicamentos
dalguma forma ligados à procura psicotrópica (serenal, paxilfar, metadona…).
Por sua vez, os enfermeirosauxiliavam aqueles que manifestavam dificuldade em
injectar-se. Eram frequentemente indivíduos com bastante experiência como
utilizadores, que estavam há mais tempo no bairro e que, eventualmente, também
forneciam/vendiam material de consumo (seringas, toalhetes…). Injectavam
indivíduos que, normalmente devido ao mau estado geral das suas veias, não o
conseguiam fazer sozinhos. Em troca do seu serviço recebiam tabaco ou uma
pequena parte do caldo,assegurando assim os seus próprios consumos. Assim se
constituem os elementos que pontuam a vida quotidiana das plataformas
junkie.Características de alguns territórios psicotrópicos das “zonas
degradadas”, estão organizadas numa espécie de assentamento temporário, podendo
mesmo tomar a forma de acampamento, tal como testemunha o nosso trabalho de
campo.
Quando falamos nos flutuantes e nos residentes ou fixos, estamos a nomear os
actores que dão o carácter de plataforma a um dado território psicotrópico:
lugares de concentração de actividades drug, onde uns chegam e partem e
regressam, onde outros estão em permanência mas em condições precárias, que
asseguram a logística para as necessidades do consumo de drogas no imediato.
Elas desempenham, portanto, um papel instrumental ao serviço de “quem anda na
vida”. Atraindo a si os utilizadores, permitem-lhes a aquisição e o consumo do
“produto”, bem como a obtenção duma série de informações estratégicas para a
“vida nas drogas”.
As plataformas estabelecem-se em determinados lugares urbanos ou peri-urbanos,
conferindo-lhes uma marca visível que, em boa medida, acaba por constituir um
signo de reconhecimento externo: “ali é o mundo da droga”
8
. É isto que as faz funcionar também como um irradiador do “problema da droga”,
através do labor da comunicação social, que o visibiliza a partir de
determinados elementos que vão constituindo o estereótipo deste objecto.
Chamámos-lhes plataformas porque promovem a comunicação necessária à actividade
que é perseguida pelos actores envolvidos. E, tal como há as plataformas do
tráfico, figura de há muito do léxico da repressão da oferta, também aqui há o
correspondente na procura: ela é assegurada por estas plataformas junkie, que
põem lado a lado quem dispõe da oferta e quem faz a procura.
4.3 – A polícia e o bairro: quando o desvio vence a norma
A segunda bifurcação, também à esquerda, conduz-nos até à escola do BSJD e
permite o acesso à zona de vivendas unifamiliares. Os muros da escola estão
todos grafitados, Tarrafalé a palavra de ordem. A zona das vivendas é
claramente um bairro à parte. Crianças e mulheres vêem-se na rua, brincando e
conversando, e as casas, ainda que bastante degradadas, estão num estado de
conservação mais razoável. Podem observar-se algumas casas emparedadas. Na rua
principal, onde se localiza a esquadra da polícia, frondosas árvores ladeiam os
passeios. Pelos registos da ER e pelos testemunhos recolhidos, parece evidente
que a presença da polícia no bairro, nos seus últimos tempos de vida, se
relacionava apenas com uma diminuição temporária do número de consumidores no
bairro, ou com esperas sentadas nos degraus dos prédios ou nas pedras
abandonadas, para que quando partissem, tudo voltasse a funcionar dentro da sua
normalidade.
No entanto, nem sempre foi assim. Se recuarmos até ao início do milénio,
verifica-se que as forças policiais tinham grande dificuldade em entrar no
bairro, sendo-lhes muito difícil o exercício de qualquer tipo de autoridade:
”uma vez veio aqui o carro da PSP buscar um cigano para depor. A família e os
amigos dele juntaram-se todos à volta do carro, tiraram os dois polícias cá
para fora e queriam bater-lhes. Lá se conseguiram safar, mas iam apanhando uma
coça…” (F., 40 anos, Técnico Arrimo); «O caso mais grave ocorreu em Março de
2001, no bairro São João de Deus: “Estávamos a tentar deter um traficante de
droga, ele estava dentro de um carro e simulou a rendição. Parou e colocou as
mãos no ar, mas quando me aproximei arrancou a toda a velocidade e levou-me 30
metros em cima do capô”.» (fórum da PSP, revista de imprensa, dossiê nº25).
Mais do que pouco respeitada, a polícia era persona non grata, era vista como o
inimigo a abater: “Vinha um carro da polícia em alta velocidade a perseguir
outro que entrou no bairro. O polícia não conseguiu controlar o carro e
espetou-se contra o muro. Um deles sangrava muito e o outro estava
inconsciente. Alguns ciganos não queriam deixar ninguém aproximar-se do carro.
Foi uma gritaria! Gritavam: “Eles que morram, os filhos da puta!” (F., 40 anos,
Redutor de Danos).
O reverso destas situações também é frequente: episódios em que agentes
policiais exercem força desproporcionada em relação ao fim da acção que
realizam, seja no terreno, seja depois na esquadra, ao pretenderem obter
informações sobre envolvimentos no mercado de drogas: “Eles chegam aqui, e por
mais que lhes peçamos para não nos bater, eles não se importam. E quando
pedimos para não bater numa perna ou num braço, porque estamos doentes ou
porque nos dói, ainda batem mais depressa nesses lugares” (Consumidor, registos
da equipa de rua, 8.1.2005). Durante os interrogatórios, o uso de violência
física era quotidiano e, embora muitas vezes fossem utilizados verdadeiros
métodos de tortura, raramente o valorizavam: “Fiquei fodido! Nem foi por eles
me terem enchido a mala, foi porque estive lá tanto tempo que faltei aí a uma
combinação! Podia ser agora um homem rico” diz M., gesticulando muito. (diário
de campo, 3.12.2007)
9
.
Por que é tão frequente a violência policial sobre estes actores sociais?
Veremos na secção seguinte que ela é apenas um aspecto dum quadro mais geral em
que violências várias, mais ou menos difusas, mais ou menos escondidas ou
ostentadas, aparecem como um traço do quotidiano nestes contextos. Podemos
lançar a hipótese de que a forma como o “mundo da droga” foi sendo assimilado,
no quadro das políticas proibicionistas, a um não-valor, como que autoriza o
exercício da violência sobre aqueles que representam o seu lado mais
vulnerável. mas, parece-nos também, que a naturalização da violência é uma das
dimensões da exclusão: quando acontece reiteradamente num lugar, põe em
evidência o quanto aí se suspendem as regras da sociabilidade comum. como se
entrássemos num território à parte, em que a violência exprime, pela sua
vulgaridade, a excepcionalidade que aí se vive – e esta é uma das dimensões
centrais com que a exclusão é olhada a partir de fora. Eis por que a droga é,
tal como dizíamos na introdução, um bom analisador das relações entre violência
estrutural e violência quotidiana.
4.4 – Da quotidianização da violência: os bodes expiatórios
Os consumidores eram muitas vezes, nas relações com a restante população do
bairro, alvo de grande violência. apresentavam-se constantemente com chumbos
nas mãos e nas pernas, sendo alvejados principalmente por jovens com idades
entre os 12 e os 18 anos, que, não raro, integravam a cadeia de venda de drogas
muito cedo. Frequentavam intermitentemente uma escola que não lhes
interessava,como nos foi repetidamente dito tanto por eles como pelos
professores, e pareciam afirmar-se pelo exercício de uma marcada violência
contra qualquer pessoa que não pertencesse aos “seus”. Amiúde atiçavam-lhes os
cães, batiam-lhes e tinham comportamentos que punham em causa a sua integridade
física: “Uma vez os putos pediram-me um cigarro, como não tinha atiraram-me
pela ribanceira abaixo. Fodi as costas todas” (Consumidor, registos da equipa
de rua, 24.06.2006);“Eles (a sua família) não entendem! Tratam mal os drogados,
batem-lhes e chamam-lhes nomes, os putos fazem pouco de nós e atiram-nos
coisas. Mas nós também somos gente, precisamos de carinho, sabe? Não basta
darem de comer, o mais importante é o carinho!” (consumidor de etnia cigana,
diário de campo, 3.12.2007).a violência destes jovens tornou-se numa das
imagens de marca do Tarrafal.
Também nas relações estabelecidas com os vendedores eram muitas vezes
agredidos, facto que criava grande mas impotente revolta: “Estes gajos só sabem
contar dinheiro, o lugar deles é em Custóias” (Consumidor, registos da equipa
de rua, 31.3.2006); «Vários consumidores estão à porta do bloco x, esperando
que abra a venda. Uns vão trocando conversa, outros permanecem calados, olhando
para o chão ou para um qualquer obscuro ponto longínquo. De repente, sai um
indivíduo de meia-idade da porta do prédio, furioso: “Drogados filhos da puta,
ide-vos embora!” grita enquanto lança pontapés e empurrões em todas as
direcções. É o pai do vendedor que esperavam. Ninguém esboça defesa, dispersam-
se rapidamente.» (diário de campo, 4. 2.2008)
Enfim, a violência apresenta-se de várias formas e é exercida sobre vários
actores. São, no entanto, os junkiesde rua que aparecem como alvo preferencial:
agredidos pelos jovens, pelos vendedores, pelos polícias. Configuram-se como
perfeitos bodes expiatórios: enfraquecidos, sem voz e sem ninguém que os
defenda. Aquele que, na cidade dominante, é tantas vezes olhado como figura da
ameaça, é afinal aqui uma vítima, ocupando uma espécie de posição de fim
delinha que parece autorizar a violência. E a sua frequência e intensidade não
podem deixar de interpelar-nos sobre o seu significado, exercida sobre pessoas
que, na maioria das vezes, nem esboçam defesa – como se o indivíduo que arrasta
os seus consumos nas plataformas junkieem lugares esquecidos da cidade fosse
uma espécie de quase-morte que é necessário esconjurar.
Este quotidiano das plataformas junkiepassaria para o exterior dum modo
caricatural, próprio da narrativa mediática, que aposta nas imagens de impacto
que tragam à luz o lado marginal da vida urbana. o são João de deus estava
definitivamente instalado na galeria dos perigos públicos: o discurso mediático
exibia-o como exemplo do caos, os dirigentes políticos erguiam-no como bandeira
da sua prometida luta contra a exclusão, a polícia tomava-o como terreno para
as suas incursões no combate à droga, os redutores de danos trocavam perto de
1800 seringas por jornada. Este cenário de aglomerado urbano em situação de
emergência justificava a opção do poderlocalpela sua desarticulação, que traria
duas vantagens: apagar do mapa do Porto o seu “cancro” (linguagem dos
responsáveis autárquicos) e devolverjá recuperada à cidade uma zona que, fruto
da desordem em que mergulhara, se lhe tornara estranha. No ponto seguinte
analisaremos as consequências desta operação urbanística sobre as dinâmicas do
fenómeno droga.
5 – Do São João de Deus para o cerco: os territórios psicotrópicos também se
realojam?
«Um dos ciganos com maior influência inter pares caracteriza a
situação social no Cerco como explosiva: ”A governadora civil chama-
me constantemente para tentar resolver conflitos que surgem quase
diariamente no bairro. Aquilo é uma bomba que vai explodir a qualquer
momento!”»
(excerto diário de campo)
À medida que a Câmara Municipal do Porto foi procedendo aos realojamentos dos
habitantes do BSJD, os locais de venda de drogas foram-se também deslocando,
levando ancorados a si alguns consumidores. Actualmente, resta apenas um
capeador e é já muito raro encontrar consumidores. Alguns deles passaram a
frequentar o Cerco, outros vão agora comprar e consumir a bairros sociais da
zona ocidental do Porto, à zona do Alto da Maia e ao centro histórico da
cidade. No entanto, não estamos em condições de saber, de um modo sistemático e
exaustivo, para onde têm vindo a processar-se as suas deslocações.
A população do Cerco e os técnicos de intervenção social a trabalhar no terreno
referem constantemente que, desde que os habitantes do BSJD chegaram, o
“ambiente piorou muito”. Várias pessoas (mas sobretudo as mais idosas) dizem
ter medo de sair de casa depois do escurecer e recear os assaltos na rua. É
também referido um aumento de assaltos a casas, a idosos, a jovens e a
consumidores, reflectindo um incremento da violência e um sentimento de
insegurança permanente. Por seu lado, o modo como decorreu a saída do BSJD
parece também ter sido sentido como violento – ou seja, estamos perante uma
operação urbanística na qual tanto quem foi deslocado como quem recebeu novos
vizinhos parece ter ainda agravado a sua condição de morador de “bairro social
problemático”. O terreno forneceu-nos abundantes dados sobre as vivências deste
processo que não exploraremos aqui por se afastarem do nosso argumento.
No ponto em que se encontra agora a investigação, e sublinhando a sua
circunscrição geográfica à zona oriental do Porto, podemos dividir o efeito da
desarticulação do BSJD em dois momentos temporalmente distintos: um primeiro,
no qual foi constatado um grande incremento de venda e de consumo de
substâncias psicoactivas no Cerco, e um segundo, que corresponde à actual
situação, no qual se verificou novo movimento dos consumidores, desta vez para
as suas limítrofes e para locais e casas abandonadas, dispersos um pouco por
toda a zona oriental. Analisaremos de seguida cada um deles.
5.1 – A cena drugno Cerco
“Junto aos portões vêem-se pequenas labaredas cortando a noite: são os
consumidores a fumar. Estacionamos junto ao campo, do lado de cá, onde dois
vendedores servem a clientela, que não ultrapassa uma dezena de pessoas. Alguns
vão-se logo embora, mas uma parte significativa dirige-se para os tais portões
e consome à vista de toda a gente” (28.8.2007); ”Cerca de 50 pessoas aguardam
em ordeira fila indiana a chegada do vendedor.” (3.12.2007). O conjunto
habitacional camarário do Cerco do Porto, nascido em 1964, tem também uma
história que o inscreve como um dos espaços mais conotados com o desvio – e, em
particular, com o fenómeno droga.
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As consequências da chegada de muitos dos actores das drogas vindos do BSJD não
seriam, propriamente, as de trazer alguma grande novidade, mas as de virem
mexer num status quoinstalado desde há muito.
Era discurso recorrente entre os consumidores que muitos dos vendedores do
BSJD, mesmo os que não foram realojados no Cerco, aí alugaram casa para
continuarem o seu negócio: ”D. arrendou uma casa no bloco y, não quis perder a
clientela. E não foi só ele!” (M., consumidor, diário de campo,
5.01.2008).Através da observação e dos testemunhos recolhidos, quer de
consumidores, quer de moradores entrevistados, pode afirmar-se com segurança
que a venda de substâncias psicotrópicas se difundiu por vários blocos do
bairro, fazendo-se com pouca oposição dos moradores: “… os vendedores sentam-se
nos degraus junto aos portões e contam maços de notas. Chegam três mulheres de
fato de treino e sentam-se ao seu lado, falando alegremente. Crianças andam de
bicicletas e passam tangentes aos degraus. Jovens habitantes do bairro sobem e
descem descomprometidamente as escadas.” (diário de campo, 4.4.2008).
No que diz respeito aos hábitos de consumo visíveis na rua verificou-se um
claro contraste com o que se passava no BSJD: aqui as suas práticas recorrem
muito mais à via fumada. Atendendo a que a equipa de rua continuou a trocar um
grande número de seringas, parece poder concluir-se que a via injectada é
reservada para o resguardo dos locais privados – o que provavelmente se
relaciona com a própria história do bairro, onde o consumo “chutado” nunca foi
muito evidente no espaço público, estando associado a um forte estigma: “O
consumo picado é muito mal visto aqui, quem troca seringas fá-lo da forma mais
discreta possível. O injectar está aqui ligado ao último grau de degradação.”
(diário de campo, 3.2.2008).
5.2 – Consumos na cidade abandonada
Muitos utilizadores têm protagonizado,desde há aproximadamente um ano, uma
clara fuga radial do interior do bairro. Os locais de consumo de rua situados
no seu centro estão agora quase completamente desactivados. Um número
importante de indivíduos migrou até a uma capela que se situa na periferia do
bairro. Outros dispersaram-se pelos escaninhos da cidade. Há uma constante
mobilidade e mutabilidade dos locais de consumo, dos pontos de venda, dos
vendedores. A geografia, os actores e o palco transmutam-se, mas a acção segue.
É necessário, quase diariamente, seguir o seu rasto. Estão agora dispersos por
toda a zona oriental, formando pequenos grupos – muitas vezes de apenas duas
pessoas – mudando frequentemente de local de consumo, na busca constante dum
sítio próximo da “boca de venda”, onde possam consumir sem ser incomodados,
quer pela população, quer pela polícia. Entre os mais significativos,
escolhemos, a título ilustrativo, os seguintes:
A casa abandonada perto do bairro do cerco. Trata-se das ruínas daquilo que
terá sido uma grande casa de lavoura: um grande portão na fachada dá acesso a
um pátio interior, rodeado de dependências, algumas já quase a céu aberto.
Muitas das paredes e a maior parte do tecto ruíram ou encontram-se prestes a
ruir. Tendo começado por ser um local frequentado essencialmente por
consumidores por via endovenosa, regista-se actualmente uma elevada frequência
de fumadores. os consumos injectados e fumados são realizados em dependências
distintas, utilizando estes últimos o local menos degradado da casa – um
pequeno corredor que desemboca numa casa de banho desactivada: «… Estão mais de
dez indivíduos a consumir, uns na prata, outros no caneco. “Já viu? Isto agora
está muito limpinho. O J. trouxe uma vassoura e agora o último a sair tem de
deixar isto como encontrou!” diz a R., empunhando orgulhosamente a vassoura.»
(diário de campo,8.5.09). ao invés, os locais da casa eleitos para o consumo
injectado estão repletos de todo o tipo de lixo e escombros: «O V. está a
consumir de pé, em cima dum monte de traves de madeira apodrecidas. Aproximamo-
nos, esquadrinhando cada centímetro onde pomos os pés. Vejo em cima duma pedra
muito material, algum ainda não foi usado. Reparo também num pedaço de espelho
no meio daquela parafernália. V. diz-me que serve para “a malta que tem de se
picar no pescoço ou atrás dos joelhos conseguir ver.”» (diário de campo,
24.4.09)
O viaduto. O viaduto foi um dos últimos locais descobertos (através das
indicações dos consumidores) pela ER. Situa-se muito perto de dois bairros
vizinhos do cerco, locais onde existe registo de um incremento considerável das
actividades de venda de substâncias psicotrópicas: «Entramos no bairro X e
avistamos de imediato três utentes nossos conhecidos (…) o G. aproxima-se da
carrinha, sorridente, vem trocar “máquinas”: “Ai vocês agora vem para aqui?
Fazem bem, aqui há muito petróleo. Há vários poços, até!” diz sorridente».
(diário de campo, 24.02.2009). A entrada no viaduto faz-se por um pequeno
buraco quadrado com menos de 1 metro de área. Ficando abaixo do nível da rua,
torna-se necessário saltar 1,5 metros para lhe aceder. Desta forma, chega-se
aos pilares que sustentam o viaduto e ladeiam a linha ferroviária: «É um local
muito escuro, com um intenso cheiro a lixo, apenas iluminado por alguns postes
que acompanham a linha de comboio e pela luz que emana pela rotunda, ao alto. O
local desenrola-se em comprimento, os consumidores juntam-se no seu final, para
onde já trouxeram cadeiras e colchões. L., aproveitando um pequeno buraco no
muro de betão, colocou lá um colchão e pendurou um pano a servir de cortina. Há
bastante lama no chão e muitos vestígios de consumo. Vislumbro uma grande
ratazana a correr. Aqui a equipa de rua encontrou vários utentes que tinham
desaparecido desde a desactivação do BSJD: “Parecem coelhos a saltar duma
cartola!” afirma uma técnica da ER.”» (diário de campo, 13.01.2009).
Estes novos locais de consumo são altamente insalubres, têm reduzida
visibilidade e são de difícil acesso. Continuam a vender-se drogas nos bairros
mas tolera-se mal a presença dos consumidores, no que parece ser uma tentativa
de procrastinação da intervenção policial. São induzidos a utilizar as drogas
em locais cada vez mais isolados e com péssimas condições sanitárias. A
constante pressão exercida sobre eles, proveniente quer da população dos
bairros onde se vendem drogas (levada a cabo sobretudo por crianças ou
adolescentes a mando dos vendedores) quer pela polícia, resulta numa cada vez
maior ocultação, ostracização e abandono, agravando as condições de existência
dos toxicodependentes das franjas que já se encontravam em grandes
dificuldades. A dispersão e fragmentação territorial destas franjas na
sequência da demolição do BSJD torna-as mais difíceis de detectar, podendo
criar a ilusão de que o desaparecimento daquele que era considerado o mais
importante território psicotrópico do Porto contribuiu decisivamente para
combater o “problema da droga”. O que nos diz a pesquisa de terreno, no
entanto, é que a adaptação ecossocial do fenómeno droga a esta operação de
renovação urbana resultou na sua invisibilização, sobretudo por comparação com
o que foram os tempos, abundantemente mediatizados, da concentração drugdo
Tarrafal.
6 – Conclusão: das relações entre droga e exclusão social
Produzamos agora um afastamento em relação ao imediatismo da experiência de
terreno, para salientarmos duas dimensões que, sugeridas pelos dados
etnográficos, nos interpelam aos níveis teórico e interventivo.
– Nível Teórico: o que é um “bairro em exclusão”? Estamos perante uma ordem
interna que se afundou, como se a exclusão e a marginalidade se autoproduzissem
e a nós nos coubesse apenas mapear as zonas que colapsam e intervir sobre elas
como quem, de fora, leva o remédio?
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Ou estes bairros são apenas o lugar de impacto da exclusão, tomando aqui a
expressão de Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004), revelando em toda a sua
destrutividade mecanismos que residem muito a montante? Esta questão faz-nos
regressar à relação entre violência estrutural e violência quotidiana, de que o
fenómeno droga nas plataformas junkieé um claro analisador.
A violência estrutural, de acordo com Philippe Bourgois (2001), diz respeito à
forma como a organização polí-tico-económica de uma sociedade se traduz na
produção de desigualdades e opressões sociais crónicas, da pobreza à saúde,
passando pelos direitos humanos e conduzindo, na maioria das vezes, a situações
de sofrimento social. Acrescentemos que são, não raro, as próprias instâncias
estatais a concorrer para a produção deste tipo de violência, seja por omissão,
seja por acção directa, como vimos acontecer no nosso terreno de estudo tanto a
propósito do modo como foi levada a cabo a operação de desarticulação do São
João de Deus como em certo estilo de acção policial. Exprime-se também no modo
como situações de desvantagem se fixam com muito maior impacto em certas zonas
e franjas da população, como a desinserção crónica em relação ao mercado formal
de trabalho, o abandono escolar ou as novas formas de pobreza.
A violência quotidiana diz respeito às práticas e expressões de violência ao
nível das interacções micro.
De acordo com Bourgois (2001), a quotidianidade de tais práticas e expressões
acaba por normalizar a violência ao nível das relações interpessoais, criando-
se um ethoslocal de cultura de violência – eis também o que vimos acontecer nas
zonas da nossa pesquisa de terreno.
– Nível Interventivo: recoloquemo-nos agora de novo no papel de redutores de
danos, para afirmar que os técnicos da Arrimo perderam o rasto a um número
significativo dos utentes do programa de rua. Dito doutro modo, o impacto da
desarticulação do bairro sobre os consumidores implicou a quebra da sua relação
com a equipa de redução de riscos, comprometendo a eficácia de um trabalho
deste tipo, que se baseia na continuidade, sem a qual não é possível a
construção de relações numa população fortemente afectada, justamente, pela
sucessiva quebra de relações no seu percurso biográfico.
Uma das grandes dificuldades da equipa de rua da zona oriental tem sido, já o
referimos, reencontrar os antigos utentes do BSJD e descobrir os seus novos
locais de consumo. Quando acontece descobri-los, vimos já como representam a
continuidade duma situação de grande marginalidade e sofrimento: não é melhor
estar no viaduto ou na casa abandonada de que demos notícia atrás do que estar
no “vale dos leprosos” do extinto São João de Deus… No discurso das autoridades
do poder local, urgia “extirpar o cancro” que a droga tinha feito crescer no
São João de Deus. Afinal, produziram-se pequenas metástases… Houve, no entanto,
um ganho de curto prazo: invisibilizou-se temporariamente o espectáculo que o
bairro oferecia, criando a ilusão de que, “matando o bicho, se acaba a
peçonha”…
NOTAS:
1 – Cf. Enrique Ilundain (2004) para o caso dum dos principais concentradores
junkieda Catalunha, o bairro de Can Tunis em Barcelona, ou Alba Zaluar (1985)
para o caso das transferências de várias favelas para “comunidades urbanas” no
Rio de Janeiro.
2 – Cf. Fernandes e Agra (1990) Uma topografia urbana das drogas. Lisboa:
gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga. Esta seria a
primeira de várias monografias etnográficas sobre os actores e os territórios
psicotrópicos, em vários bairros conotados com forte actividade em torno das
drogas, nas zonas ocidental e oriental do Porto.
3 – Instituição privada de solidariedade social cujo objectivo é a promoção de
iniciativas de respostas sociais através de projectos de intervenção junto de
pessoas ou grupos em situação de pobreza ou exclusão. Na altura em que a
investigação teve início, acolhia o projecto Arrimo, que sensivelmente um ano
depois se autonomizou e constitui a Cooperativa Arrimo.
4 – Organização cooperativa para o desenvolvimento social e comunitário,
desenvolve projectos de intervenção comunitária no domínio da
toxicodependência, nomeadamente nas áreas de redução de riscos e reinserção
social.
5 – Por território psicotrópicoentende-se “um atractor de indivíduos que têm
interesses em torno das drogas, com um programa comportamental orientado para
os aspectos instrumentais ligados a um estilo de vida em que elas têm um papel
importante” (Fernandes, 1998: 164-204).
6 – gíria utilizada pelos autóctones.
7 – Estas designações resultam, respectivamente, da linguagem dos actores
sociais dos nossos territórios, duma expressão em uso nos técnicos que
intervinham no Casal Ventoso e da equipa da Arrimo. A expressão “flutuantes”
deu nome a uma reportagem no Canal 1 em Junho de 2005, onde o BSJD é elevado ao
estatuto de caso nacional, herdando o posto anos antes ocupado pelo Casal
Ventoso.
8 – Contrariamente a outros territórios psicotrópicos, cuja espacialidade
intersticial, funcionamento quase clandestino, carácter portátil ou tamanho
reduzido (em espaço e em número de participantes) os tornam pouco visíveis.
9 – Os registos do nosso diário de campo são confirmados pelos relatos de
redutores de riscos da Arrimo. Uma boa parte das equipas de redução de riscos
com que temos contactado referem também episódios de violência policial nos
territórios onde intervêm. Tratamos com mais profundidade os nossos dados
relativos ao tema da violência policial na comunicação “Forças policiais e
mundo das drogas: para além duma ética do Bem e do Mal”, à 5ª conferência
Latino-Americana sobre Redução de Riscos (Porto, Julho de 2009).
10 – Entre 1997 e 1999 desenvolvemos investigação etnográfica no Cerco. Para
uma síntese dos resultados, ver Fernandes e Neves (2002) Ethnographic Space-
Time: culture of resistance in a dangerous place in, S Brochu., C. Agra, da
& M. M, Cousineau (eds) Drugs and Crime Deviant Pathways, Aldershot:
Ashgate.
11 – Por vezes, um certo tipo de investigação psicológica que lê as situações
desligadas do contexto contribui involuntariamente para a ideia de autoprodução
da exclusão. Referimo-nos a investigações sobre famílias desestruturadas, más
práticas parentais, violência doméstica, insucesso escolar, alcoolismo,
toxicodependências, em que estas situações e comportamentos, na ausência de
leitura contextual, aparecem como “traços” de certos grupos sociais.