Da Universidade como local e instituição da felicidade
Da Universidade como local e instituição da felicidade [1]
Jorge Olímpio Bento
É, porventura, a última vez na minha vida em que tomo a palavra numa cerimónia
como esta, no desempenho das funções em que estou investido. Todavia não vou
proceder a um balanço, mesmo sendo ele uma peça fácil de fazer, porquanto só
teria que desfiar o rosário das minhas dívidas de gratidão, que são muitas e
inesquecíveis.
No ano passado falei da Universidade e da Faculdade como um lugar da saudade.
Desta feita elegi para tema de uma breve abordagem a Universidade como local e
instituição da felicidade. Sim, por mais que os espante, dado o registo que
tenho colocado, nos últimos tempos, nas minhas intervenções públicas, quero
chamar a vossa atenção para o facto da Universidade e a Faculdade serem uma
instância potenciadora, por excelência, da felicidade.
Não sou céptico ou pessimista por natureza, por essência ou índole ou ainda por
aversão à novidade e à mudança, mas antes por reflexão. Prende-me ao pessimismo
tão-somente a obrigação de olhar em redor e não me vergar à manipulação e
alienação. De resto empunho e ergo o optimismo como bandeira de libertação e
exaltação da nossa condição. Sou e quero ser, aqui e agora, neste momento e
nestas duras e ingratas circunstâncias, um cidadão da esperança, como sempre
fui, que não se resigna à desilusão e que se agarra, confiante e convictamente,
ao sol do bom senso, da razão e lucidez, para dissipar o nevoeiro desta hora
desconcertada e desconsolada. Ao cumprimento futuro de promessas messiânicas
prefiro a proximidade de um presente concretizador da plenitude humana e da
dignidade cívica e ética dos que delas carecem. Eis o meu juramento de honra,
reassumido neste dia.
Mas vamos ao assunto. Quando olho para trás e revejo a minha trajectória como
estudante e como docente universitário, passo-me revista por dentro e por fora,
na superfície e na profundidade e meço-me de alto a baixo; e sou forçado a
concluir que na Universidade recebi o sustento que fez nascer e crescer
paulatinamente em mim o destino da liberdade e felicidade.
Antes tinha ouvidos e olhos, sabia de cor o alfabeto e os números, mas não
sabia verdadeiramente ouvir e ver, escutar e observar, ler e entender, escrever
e contar, perguntar e responder, avaliar e valorar. Aqui absorvi conhecimentos
que se tornaram combustível para o uso e labor da razão. Aprendi a pensar e,
deste jeito, a libertar a mente, a argumentar e formular ideias e conceitos, a
descobrir e alargar novos horizontes e perspectivas, a tecer e sonhar com
ideais e utopias. Apercebi-me do invisível e de que estamos mais ligados a ele
do que ao visível. Consegui ir além da epiderme e aparência das coisas, a tocar
na sua substância e a viver o presente na dimensão do eterno. Com tudo isso
rompi com o conformismo e a auto-satisfação; atrevi-me a acordar e
desassossegar a consciência, a questioná-la e formatá-la de um modo
permanentemente renovado, impondo-lhe metas, desafios, normas, valores e
princípios cada vez mais exigentes. Pouco a pouco deparei-me com a ética e a
estética, aprimorei o gosto e o gesto, as formas de expressão, a palavra dita e
escrita, o verbo pronunciado e o calado, tentando alcançar a postura erecta e
elevar a cidadania ao nível do esplendor da verdade. Foi assim que fui
preenchendo o vazio interior, procurando adquirir um espírito e alma de bom
tamanho. E confirmei que a existência precede a essência, que a maneira do
estar condiciona e configura a do ser.
Ademais conheci pessoas encantadoras, enamorei-me delas e da sua beleza no
corpo, nos sentimentos e actos. Encontrei outras assaz diferentes de mim, mas
igualmente importantes e fantásticas, que me levaram a compreender o sentido e
alcance da alteridade, a valorizar as diferenças, a estabelecer e enaltecer a
aceitação e a tolerância, a ampliar e afinar a consideração e a sensibilidade,
a partilhar causas, paixões e projectos, a confiar nos outros e a revelar-lhes
segredos e desejos, intenções e frustrações, desditas e ansiedades, a celebrar
compromissos e cumplicidades, amizades e fraternidades.
Li livros, manuais e tratados, familiarizei-me com os seus autores. Habituei-me
a nomes célebres, a cientistas, a filósofos e sábios que me mostraram lados
ignorados e sublimes da vida e apontaram vias para a questão da salvação. E
deixei-me seduzir por crenças e mitos que nos incitam à transcendência, a
invocá-la e a viver à sua altura, como nesta oração de Fernando Pessoa:
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra,
Sei, enfim
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
Hoje constato que, sem estas próteses, continuaria acorrentado às mais densas e
diversas formas de hemiplegia espiritual e moral. E percebo bem que a caminhada
é longa e que estou muito distante de lá chegar. Alegro-me pelo quanto já
andei, mas a noção da falta e da insuficiência é mais viva do que nunca. Dentro
de mim ecoam e ouço vozes nítidas de penúria; e sinto prazer em atendê-las e
com elas dialogar. Deste jeito o sabor do poder de conhecer transforma-se em
atracção pelo gozo de saber, sempre pouco e aquém da necessidade, mas bastante
para fazer germinar o grão da ilusão da felicidade.
Ao olhar para aqueles que, nesta cerimónia, vão receber prémios de excelentes
estudantes e diplomas e insígnias de mestres e doutores, tenho em boa conta
quantos por aqui passaram e se formaram. São vários milhares de licenciados, é
mais de um milhar de mestres e centena e meia de doutores. Alguns vieram de
perto e de cima, muitos do meio, outros de muito baixo e ainda não poucos
vieram da lonjura e da distância, atravessaram mares e continentes e fizeram
sacrifícios incomensuráveis para realizar um sonho. Todos venceram barreiras e
obstáculos, todos se desmediram e excederam para chegar a uma forma nova e
superior e alcançar um estado de performance. Entraram aqui pequenos ou
medianos e saíram aumentados e grandes. Todos regressaram às suas terras e
acederam ao mundo dos ofícios e profissões numa melhor condição e com outra e
mais apurada visão, levando e guardando o nome desta Faculdade no cofre do
afecto, do apreço e da gratidão. Porque aqui lhes foram abertas as portas da
afirmação e realização, que o mesmo é dizer, da libertação, da Humanidade e
felicidade.
Em todo o Portugal, em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, em Moçambique, no Peru
e noutras partes há gente que por aqui passou, que diz bem de nós, que tem
saudades do tempo em que cá andou, que nos está grata e entoa cantos de elogio
e louvor. Gente que aqui acrescentou páginas ao passaporte para ser mais feliz.
Temos amigos e conhecidos, consumidores e apreciadores do nosso nome e trabalho
em muitas e longínquas paragens do mundo. É isto que faz desta Escola e do
nosso mister uma oficina, um instrumento e local de felicidade, que nos torna a
todos mais felizes e que nos leva a perceber que ajudar os outros é uma auto-
ajuda, que nos ajudamos uns aos outros a descobrir e perseguir a felicidade.
Por tudo isto eu gosto da Faculdade e da Universidade, identifico-me com elas
tal como são hoje, estou de bem e regozijo-me com aquilo que uma e outra
conseguiram, têm sido e apresentam. Porque nada é imutável, tudo se gasta e
passa, eu amo o seu presente.
Senhoras e senhores, ilustres e distintos convidados, caros professores,
funcionários e estudantes:
Esta sessão é, pois, uma evocação da felicidade, daquela que já vivemos e
daquela que havemos de continuar a encomendar. Aqui e agora, nesta conjuntura
de dúvidas e angústias, de apertos e dificuldades, a todos saúdo e agradeço
pelo trabalho suado e pelo mérito conquistado. E a todos exorto para que não
permitam que seja retirado do cerne da missão da Universidade o inestimável
contributo para a felicidade. Não esqueçam que esta se funda na doçura da
ilusão e quem a quiser roubar, destruir e substituir por uma realidade dura e
crua é agente da amargura, da infelicidade e desumanidade.
Ítalo Calvino, in La città invisibili, atinge-nos no âmago do desassossego e do
sono das nossas obrigações: O inferno dos vivos não é algo que será: se existe
um, é o que já está aqui, o inferno em que vivemos todos os dias, que formamos
estando juntos. Há duas maneiras de não sofrê-lo. A primeira é fácil para
muitos: aceitar o inferno e se tornar parte dele a ponto de não conseguir mais
vê-lo. A segunda é arriscada e exige vigilância e preocupação constantes:
procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não são inferno,
e fazê-los durar, dar-lhes espaço.[2]
Aderir à segunda maneira significa predispor-se a sofrer toda a sorte de
pressões, aleivosias e insídias para aceitar o inferno. Contudo temos o dever
de pressentir e lutar pelo mais e melhor. De fazer perdurar e de dar espaço
àquilo que não é inferno, àquilo que nos encha e aumente de ilusão que é o
alimento preferido da felicidade.
Sim, nascemos, estudamos e trabalhamos para vivermos num nível superior, ou
seja, para esgotarmos as possibilidades de sermos felizes, sabendo que a
felicidade em plenitude é um impossível necessário. É esta a nossa verdadeira
identidade, cuja procura devemos incentivar e tentar, no pressuposto de que ela
nunca seja inteiramente encontrada, sob pena de a graça e o encanto acabarem e
o mistério da felicidade se perder para sempre.
Enfim, por quanto disse, escorre-me da garganta a proclamação de Aquilino
Ribeiro: Adiante e consideremos que para chegar a bom termo da viagem é
preciso ser livres. E felizes, acrescento eu. Continuemos portanto a
perseverar na busca da felicidade. Não nos cansemos de crer e laborar em
impossíveis, em feitos, grandezas e prodígios, com razão e emoção, como Natália
Correia:
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é etéreo num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.[3]
[1] Intervenção na Sessão Solene da Faculdade de Desporto da UP: 12.03.2008.
[2] Bauman, Zygmunt (2007). Tempos Líquidos. ZAHAR – Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro.
[3] Correia, Natália (1990). Ó Véspera do Prodígio IV. In Sonetos Românticos.
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