Empresas municipais de desporto: contributos para a sua caracterização legal,
funcional e relacional
INTRODUÇÃO
Já é um lugar-comum afirmar que as Autarquias Locais são das entidades com uma
intervenção mais assinalável na estrutura global do sistema desportivo e,
actualmente, as principais financiadoras do associativismo e da própria
actividade desportiva.
Daí a importância que as mesmas revestem actualmente e podem continuamente a
exercer nos âmbitos do fomento e desenvolvimento do desporto.
E esta importância decorre precisamente da incumbência aos Municípios da
concretização do princípio constitucional do direito ao desporto, ao se
entender que eles são parte integrante do próprio Estado
(3)
.
Na esteira da Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da UNESCO e
da Carta Europeia do Desporto, rege em Portugal, o artigo 79.º da Constituição
da República Portuguesa que é peremptório quanto à universalidade do desporto e
à função da Administração Pública no seu fomento e desenvolvimento:
“(…) incumbe ao Estado, em colaboração com as escola e as associações e
colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e
a difusão da cultura física e do desporto (…).
Acção esta, considerada como tarefa fundamental do Estado de acordo com o que
se encontra vertido no artigo 9º, alínea d), parte final, deste mesmo texto
constitucional.
Igualmente na regulamentação específica destas autoridades locais o desporto é
contemplado como uma das atribuições da Câmara Municipal, conforme o estatuído
no artigo 64.º, n.º 4, alínea b), da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro:
(…) apoiar ou comparticipar, pelos meios adequado, no apoio às actividades de
interesse municipal, de natureza social cultural, desportiva, recreativa ou
outra (…).
À tradicional orgânica das autarquias locais enquanto instâncias de uma
complexa estrutura da organização do poder político e da administração, mas que
consubstanciam formas autónomas de corresponder às necessidades das populações
locais, introduziu-se nos últimos anos uma figura organizacional que se
configura como um instrumento privilegiado de gestão autárquica.
Este novo sujeito de gestão pública municipal, a empresa municipal, apesar de,
pelo menos, desde a lei das autarquias locais de 1977
[a]
ter tido acolhimento e autorização expressa por parte do legislador, só após
1998 se afirmou e expandiu com impacto crescente. Contudo, a Lei n.º 58/98, de
18 de Agosto, Lei-Quadro das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais,
como salienta Pedro Gonçalves
[b]
, padecia de defeitos e ambiguidades, por exemplo, quanto à natureza jurídica
das empresas, à ausência de determinações claras sobre os limites do respectivo
objecto (facto que conduziu à criação de empresas sem objecto empresarial, para
o exercício de funções administrativas ou, por exemplo, para se ocuparem da
“gestão de parques desportivos” compostos por um campo de futebol e um pavilhão
desportivo), a ausência de definição rigorosa das condições de viabilidade
económica das empresas a constituir (o que conduziu à criação de empresas
inviáveis), a total omissão de regras sobre a escolha de parceiros privados ou
a ausência das exigência geral de um quadro de regulação contratual entre a
empresa e o município
(6)
.
Assim se justifica que passados oito anos este regime tenha sido revogado com a
publicação da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, denominadaRegime Jurídico
do Sector Empresarial Local (RJSEL)
[c]
, que como é propalado em seu abono, agiliza procedimentos, permite maior
flexibilidade da gestão, possibilita recrutamento de técnicos qualificados, e
promove a especialização de tarefas e adopção de instrumentos, mais eficientes,
de direito privado para a prossecução dos objectivos estatutários, colocando o
Município ao nível de uma qualquer sociedade comercial na área dos serviços,
ressalvando que:
(…) Não podem ser criadas, ou participadas, empresas de âmbito municipal,
intermunicipal, ou metropolitano cujo objecto social não se insira no âmbito
das atribuições da autarquia (…) sendo proibida a criação de empresas para o
desenvolvimento de actividades de natureza exclusivamente administrativa ou de
intuito predominantemente mercantil
[d]
.
Por conseguinte, dadas as limitações impostas para este trabalho, será
sobretudo neste diploma que centraremos a nossa análise jurídica, no que
respeita a aspectos que consideramos essenciais para a operacionalização e
funcionalidade sobretudo das empresas municipais, finalizando com uma
caracterização sumária dos principais traços fisionómicos destas entidades
existentes no sector do desporto.
MATERIAL E MÉTODOS
A norma pública é o principal instrumento utilizado para a interpretação
jurídica do regime das empresas municipais. Não descurando a abordagem
diacrónica do enquadramento legal das empresas públicas, é essencialmente sobre
o diploma referente ao Regime Jurídico do Sector Empresarial Local, Lei 53-F/
2006, de 29 de Dezembro, que recai a nossa interpretação, cruzando este diploma
com outros cuja matéria tenha conexão.
Para a análise estatística dos dados relativos às empresas municipais estudadas
utilizamos o programa da Microsoft Office Excel 2003 e calculamos a frequência
de cada variável. A base de dados seleccionada foi o Ficheiro de Unidades
Estatísticas do Instituto Nacional de Estatística, extracção de 09 de Julho de
2008. A amostra foi constituída pelas empresas municipais que integram na sua
designação ou nos seus Códigos de Actividade Económica, referências
a“desporto”, “desportiva” ou “desportivo”.
Um novo sujeito de gestão pública local
Como supra-mencionado, a Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro aprovou o Regime
Jurídico do Sector Empresarial Local, que integra as empresas municipais,
intermunicipais emetropolitanas (artigo 2.º, n.º 1) e regula as condições em
que os Municípios, Associações de Municípios ou Juntas Metropolitanas podem
criar empresas dotadas de personalidade jurídica e de autonomia administrativa,
financeira e patrimonial, com um dualismo organizativo: PRIVADO ou PÚBLICO.
No âmbito privado, como decorre do artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b), as
empresas são constituídas nos termos da lei comercial, nas quais os municípios,
associações de municípios e áreas metropolitanas possam exercer, de forma
directa ou indirecta, uma influência dominante em virtude da detenção da
maioria do capital ou dos direitos de voto, ou do direito de designar ou
destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou de fiscalização.
Os municípios podem, por isso, constituir sociedades anónimas, sociedades por
quotas e inclusivamente sociedades unipessoais. A denominação destas sociedades
é acompanhada da indicação da sua natureza municipal, intermunicipal ou
metropolitana (EM, EIM ou EMT).
Os órgãos sociais, que podem ser nomeados e exonerados pelos municípios ou pela
assembleia geral são, nas sociedades anónimas o conselho de administração, a
assembleia geral de accionistas, o fiscal único ou o conselho fiscal e nas
sociedades por quotas, a assembleia geral e a gerência.
Ao nível público, as empresas são entidades empresariais locais, onde se
incluem as “antigas” EM, constituídas ao abrigo do regime jurídico revogado
pelo actual diploma, onde pontifica a tutela económico-financeira das Câmaras
Municipais, através da aprovação dos planos de actividades e estratégico,
orçamentos e contas, da fixação das dotações para o capital estatutário,
subsídios e indemnizações compensatórias, da homologação preços ou tarifas a
praticar pela empresa (artigo 39.º).
Os municípios, associações de municípios e juntas metropolitanas detêm ainda
poderes de superintendência sobre as entidades empresariais locais, previstos
no regime anterior, através da emissão de directivas e instruções genéricas ao
CA, autorização para a contracção de empréstimos ou definição do estatuto
remuneratório dos membros dos órgãos sociais.
À denominação das entidades empresariais locais deve ser integrado a indicação
da sua natureza municipal, intermunicipal ou metropolitana (EEM, EEIM, EEMT) e
os órgãos de administração e fiscalização das EEM, estruturam-se segundo as
modalidades e com as designações previstas para as sociedades anónimas tendo as
competências genéricas previstas na lei comercial.
A arquitectura do novel regime jurídico procura assim, aproximar o conceito de
empresa municipal do conceito de empresa pública exposto no Regime Jurídico do
Sector Empresarial do Estado
[e]
, ao prever a existência de empresas de direito público – as entidades
empresarias locais (semelhantes às entidades públicas empresariais) onde se
incluem as antigas empresas municipais constituídas nos termos da Lei n.º 58/
98, de 18/08 (v. art.º 34.º, n.º 2) - e introduzindo a possibilidade de se
criarem empresas municipais de cariz comercial e societário, à semelhança do
que já ocorria no sector empresarial do Estado.
Também a disciplina na relação entre as entidades públicas e os parceiros
privados no seio das empresas do sector empresarial local é reforçada,
procurando evitar a discricionariedade que se tinha vindo a assistir na escolha
dos parceiros privados pelos poderes públicos.
Da constituição às funcionalidades da empresa municipal
A constituição de uma empresa municipal é da competência da Assembleia
Municipal, sob proposta da Câmara Municipal, sendo que, sob pena de nulidade e
responsabilidade financeira a proposta de criação da empresa deve ser sempre
precedida dos necessários estudos técnicos, nomeadamente do plano do projecto,
na óptica do investimento, da exploração e do financiamento, demonstrando-se a
viabilidade económica das unidades, através da identificação dos ganhos de
qualidade, e a racionalidade acrescentada decorrente do desenvolvimento da
actividade através de uma entidade empresarial, e ainda de um projecto de
Estatutos (cf. artigos 8.º, n.º 1, al. a) e 9.º, n.ºs 1 e 4 da lei em análise).
O mesmo ocorre nas decisões relativas à tomada de uma participação que confira
ao município a influência dominante nestas empresas.
Quer a criação de empresas, quer a tomada de posição dominante, implicam a
obrigatoriedade de comunicar tais factos à Inspecção Geral de Finanças, bem
como à entidade reguladora do sector, com excepção das EEM ao qual este
normativo não se aplica – art.º 8º, n.º 2.
Quanto às principais formalidades de constituição impõe-se que: (art.º 8º, n.ºs
3, 4 e 5 e art.º 33º):
O contrato constitutivo seja reduzido a escrito ou escritura pública (para
celebração é competente o Notário privativo da Câmara);
Seja comunicada a constituição ao Ministério Público;
Seja publicada no Diário da República e num dos jornais mais lidos na área.
Em termos funcionais, é uma evidência, que as empresas municipais têm se
assumido como um instrumento privilegiado de gestão autárquica e, nessa medida,
articula os seus objectivos com os da Câmara Municipal, assegurando a
necessária complementaridade e uma adequada interligação com o poder político
municipal.
De facto, a possibilidade de agilizar e acelerar procedimentos nesta área de
intervenção, que até às aludidas aberturas legislativas era da competência
exclusiva da Câmara Municipal, coloca o Município ao nível de uma qualquer
sociedade comercial na área dos serviços. Contudo as empresas municipais tem um
objecto social prefigurado na lei, que apenas pode integrar:
A gestão de serviços de interesse geral (artigo 18.º);
A promoção do desenvolvimento local e regional (artigo 21.º);
A gestão de concessões (artigo 24.º).
Matéria com especial acuidade diz respeito ao processo de relacionamento entre
a Câmara Municipal e a empresa municipal, pois apesar de participadas e sob
influência dominante dos municípios, as empresas municipais não se confundem
com eles, constituindo-se como entidades juridicamente distintas, pelo menos
num plano formal.
É o próprio regime jurídico que remete para o instituto do contrato, a
regulamentação entre as duas entidades. Através de um contrato de gestão para
as EM incumbidas da gestão de serviços de interesse geral e de um contrato-
programa as que promovem o desenvolvimento local e regional (exigências
determinadas pelos artigos 20.º e 23º).
E como bem enfatiza Pedro Gonçalves, não estamos perante um contrato “comum”,
mas antes como um “ponto de referência” das condições em que as partes se
obrigam para a realização dos respectivos objectivos
[f]
, sendo a celebração do mesmo necessária ainda que não haja subsídios ou outras
transferências financeiras provenientes das entidades participantes.