As mulheres e as práticas corporais em clubes da cidade de São Paulo do início
do século XX
INTRODUÇÃO
O século XX representa um marco para o movimento feminista por transformar
radicalmente discursos e práticas sobre a condição da mulher na sociedade. Em
função da cristalização de papéis sociais a mulher se viu desumanizada enquanto
sujeito histórico, protagonizando apenas o papel social de mãe-esposa-dona de
casa.
Essa condição ganhou amparo legal com o código civil de 1916, que subordinava a
mulher ao homem, legalizando uma dependência e subordinação que já eram
defendidas com argumentos biológicos. Dessa forma, restava à mulher desempenhar
actividades da esfera da vida privada, sendo atribuídas a ela as funções de
casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o carácter dos cidadãos de amanhã
(9)
. E assim firmava-se a oposição entre as esferas pública e privada, definindo
os papéis sociais masculino e feminino, de acordo com as expectativas e
imposições sociais.
Nesse mesmo período o Movimento Feminista viveu um momento de intensa
organização e actuação, ainda que fragmentado e dependente de esforços
individuais, ganhando visibilidade em defesa dos direitos da mulher. Entre suas
bandeiras de luta estavam o direito ao voto, a educação e o acesso ao mercado
de trabalho.
Entendendo que as práticas corporais de movimento acompanham a dinâmica social,
este trabalho tem como objectivo investigar o processo de inclusão das mulheres
na cultura corporal de movimento na cidade de São Paulo durante a década de
1920. Esse recorte histórico justifica-se pela importância desse período para o
Movimento Feminista no Brasil, pela história da Educação Física brasileira e
para as conquistas das mulheres ao longo do século XX.
O referencial teórico utilizado para análise é da epistemologia feminista, na
qual as mulheres são percebidas como sujeitos sociais e políticos, e também
como sujeitos do conhecimento.
Segundo Louro
(8)
, isso expõe conexões e imbricações ocultas entre o público e o privado,
permitindo que se observem vínculos de poder antes desprezados.
Foram tomadas como fontes primárias relacionadas a participação das mulheres em
práticas corporais periódicos, fotos, jornais e documentos de época,
consultados nos centros pró-memória do Clube Esperia, do Esporte Clube
Pinheiros e do Clube Atlético Paulistano.
Os periódicos são uma importante fonte para a compreensão da contrariedade dos
discursos acerca da presença feminina em atividades físicas. Ora exaltavam a
performance das atletas dos clubes e divulgavam imagens das sportswomen de
outros países, ora reafirmavam os propósitos eugenistas e higienistas da
Educação Física feminina proposta por Fernando de Azevedo [1] .
As modalidades encontradas nos periódicos foram o ténis, o atletismo, a
natação, o basquetebol, a dança clássica e os jogos presentes em actividades
sociais. Para finalidade desse artigo abordaremos apenas o atletismo, a bola ao
cesto e os jogos presentes em actividades sociais.
A CONCILIAÇÃO DAS NOVAS DEMANDAS À VELHA ESTRUTURA SOCIAL
O final do império, final da escravidão e início da republica representaram um
importante cenário para o Brasil do início do século XX. As perspectivas de
reestruturação das relações de trabalho em novas bases, a transição do sistema
económico agrário para o fabril, a ampliação e a complexificação dos espaços
urbanos, o aumento significativo da imigração, entre outros aspectos,
sinalizavam o advento de um novo tempo. Também eram formuladas e executadas
novas estratégias de disciplinarização e de representação dos corpos, que
correspondiam as expectativas e interesses dominantes e apontavam para uma nova
ética do trabalho e novos padrões de moralidade para os comportamentos
afectivos, sexuais e sociais.
A ciência despontava como paradigma e a medicina social oferecia as
justificativas para a determinação de papéis e espaços sociais femininos e
masculinos. Por razões biológicas, eram asseguradas como características das
mulheres a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afectivas sobre
as intelectuais e a subordinação da sexualidade a vocação maternal. A gestação
e a maternidade eram as justificativas para esses cuidados.
Essas características eram suficientes para justificar que se exigisse das
mulheres uma atitude de submissão, um comportamento que não maculasse sua
honra. Estavam impedidas do exercício da sexualidade antes de se casarem e,
depois, deviam restringi-la ao âmbito desse casamento com a finalidade de gerar
filhos. As mulheres, segundo Engel
(4)
, dotadas de intenso erotismo e forte inteligência seriam despidas do
sentimento de maternidade, característica inata da mulher normal, e deveriam
ser afastadas do convívio social.
A imagem idealizada de mulher, possível para as elites urbanas, também foi
exigida das camadas populares, muito embora a condição económica não
favorecesse essa identificação. Isso porque a inserção das mulheres no mercado
de trabalho se deu em função da necessidade de suprir as demandas da
industrialização e também para auxiliar na complementação da renda familiar
(13)
. No início da industrialização brasileira era significativo o número de
mulheres e crianças nas fábricas, principalmente de fiação e tecelagem,
representando a maioria da força de trabalho, por ser abundante e barata
(11)
. Colaborou para essa situação as necessidades geradas pela Primeira Guerra
Mundial, como o afastamento dos homens da vida produtiva e a necessidade de
produção de suprimentos de todas as ordens. Após esse período, as mulheres
foram progressivamente expulsas das fábricas, na medida em que avançava a
industrialização e a re-incorporação da força de trabalho masculina.
A variação salarial, bem como a intimidação física, a desqualificação
intelectual e o assédio sexual, eram algumas das barreiras enfrentadas pelas
mulheres para participar do mundo do trabalho. Destaca-se, nesse contexto, a
frequente associação entre a mulher no trabalho e a questão da moralidade(11).
Nas denúncias dos operários militantes, dos médicos higienistas, dos juristas,
dos jornalistas, a fábrica é descrita como antro da perdição', bordel' ou
lupanar', enquanto a trabalhadora é vista como uma figura totalmente passiva e
indefesa (p. 585). Essa visão estava associada, directa ou indirectamente, a
intenção de direccionar a mulher à esfera da vida privada.
Diante das necessidades impostas pelo contexto histórico a sociedade passou a
divulgar a necessidade de uma nova esposa, mais moderna, mais consciente, menos
subjugada a tirania do marido, mas nem por isso menos dedicada ao lar e a
família
A maternidade ganha ares de profissão, baseada em habilidades altamente
qualificadas e especializadas e se toma o valor central das mulheres das
famílias de classe média e alta
(3,p.66)
Na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as lutas
e manifestações esparsas do movimento pelo direito das mulheres cederam lugar a
uma campanha mais orgânica pelos direitos políticos de votarem e de serem
votadas. O movimento sufragista espalhou-se pela Europa e pelos Estados Unidos,
construindo a primeira vaga de feminismo organizado no mundo
(10)
[2] .
Os movimentos europeus e norte-americanos exerceram uma grande influência sobre
as mulheres latino-americanas. No Brasil, a primeira fase do feminismo, que
abrangeu o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, esteve
intimamente associada a personalidades. Mesmo quando apresentou algum grau de
organização, essa derivava do esforço pessoal de alguma mulher, que por sua
excepcionalidade, na maioria das vezes intelectual, rompia com os papéis para
ela estabelecidos e se colocava no mundo público em defesa dos direitos
femininos.
AS PRÁTICAS CORPORAIS E O FEMININO
O comportamento no âmbito das práticas corporais não se encontra isolado da
dinâmica social, mas é reflexo das relações estabelecidas nesse espaço maior.
Portanto, a prática de actividades físicas na década de 1920 pode ser observada
como um microcosmo, dentro do macrocosmo que era a sociedade paulistana do
final da Primeira República.
Nesse período, a disseminação das práticas corporais cada vez mais presentes
em clubes e escolas estava intimamente ligada ao controle corporal, ou seja,
as preocupações higiénicas, eugênicas, médicas, morais e disciplinares. Dessa
forma, havia uma nítida distinção entre as práticas aconselhadas a mulheres e
homens, de forma que a preparação física reforçava as características corporais
e comportamentais que distinguiam a ambos.
Sob a cobertura do natural', uma disciplina dos corpos masculinos se impõe:
os rapazes parecem ser espontaneamente atraídos pela competição, pelo
treinamento físico e pelo desenvolvimento muscular, já que tudo isso só reforça
neles a virilidade e, por conseqüência, a natureza' máscula
(12, p. 37-38)
.
Assim, esperava-se que os jovens seguissem a actualidade esportiva,
participassem dos acontecimentos organizados nos estádios, torcessem por um
time de futebol, se preocupassem com sua forma física e, sobretudo, praticassem
esportes.
O discurso sobre a prática de actividades físicas por mulheres que afirmava a
inaptidão da constituição física feminina sofreu transformações no início do
século XX.
Visando a produção da nova mulher, que deveria acompanhar os desafios da
modernidade, deixava-se de valorizar a debilidade e a indolência feminina,
assim como o ócio e a preguiça passaram a conformar o mal da alma e deveriam
ser substituídos pela vitalidade do corpo e pela capacidade de resistir as
intempéries da vida(4).
Essa transformação do pensamento da época exigiu uma grande dedicação por parte
de alguns intelectuais que buscavam relacionar as benesses físicas e morais da
ginástica feminina com o engrandecimento geral da nação. Dentre eles, Fernando
de Azevedo teve um importante papel por sua longa trajetória científico-
literária, na qual destacam-se Da Educação Physica e Antinous: estudo de
cultura atlhetica, ambos publicados em 1920. Nessas obras procurou construir
uma doutrina pedagógica para a Educação Física brasileira condizente com o
prestigio social dos métodos ginásticos europeus, mais especificamente com os
pressupostos higienistas e eugenistas que os fundamentavam
(5)
.
Fernando de Azevedo pensava a Educação Física como uma acção científica,
inserida dentro de um plano nacional de educação, que desenvolveria ao máximo
a virilidade, as virtudes da raça e as aptidões hereditárias de cada
individuo.
(6, p.161)
. Buscava-se a eliminação da fraqueza orgânica, que além de debilitar cada
sujeito por ela atingido, também debilitava a ideia de uma nação poderosa.
Ainda que fossem várias as restrições impostas e os cuidados a serem seguidos,
Fernando de Azevedo atribuía grande importância aos exercícios corporais
femininos para a formação das obreiras da vida. Essa concepção apontava a
maternidade como a mais nobre missão da mulher, pois dela dependia a
regeneração da sociedade. Ainda assim, a aceitação de mulheres em esportes e
outras actividades físicas vivia a dualidade entre as propostas eugenistas e
higienistas, e certas características comuns ao universo da cultura física
como o suor excessivo, o esforço físico, as emoções fortes, as competições, a
rivalidade consentida, os músculos delineados, os perigos das lesões e a leveza
das roupas que, quando relacionados a mulher, despertavam suspeitas por
parecerem abrandar certos limites que contornavam uma imagem ideal de ser
feminina.
A definição desses limites baseava-se na compreensão naturalizada do que e ser
homem e do que e ser mulher, de acordo com as imposições e expectativas
sociais. Considerava-se, então, que a resistência dos braços, a solidez do
punho, que tem tanta importância para o homem, tem, para a mulher, importância
extraordinariamente menor do que o desenvolvimento da bacia. E impossível
desconhecer e não seria licito na educação por de lado a constituição ou o sexo
e submeter a juventude, como em Esparta, e agora na Escócia, aos mesmos
exercícios; e se importa ter o maior cuidado da organização delicada das
meninas, (...) a educação física da mulher deve ser, portanto, integral,
higiênica e plástica, e, abrangendo com os trabalhos manuais os jogos infantis,
a ginástica educativa e os esportes, cingir-se exclusivamente aos jogos e
esportes menos violentos e de todo em todo compatíveis com a delicadeza do
organismo das mães, como sejam entre estes a dança ao ar livre e a natação, a
que deve preceder um curso regular de ginástica inteligentemente administrada
(1, p.82-33)
.
A dança era a única pratica corporal permitida as mulheres no século XIX,
sobretudo as danças litúrgicas, que conferiam a bailarina um caráter quase
sagrado. Porém, no início do século XX, de acordo com as idéias defendidas por
Fernando de Azevedo, ela foi concebida como um método de educação corporal
feminina baseado na assimilação de um código de movimentos tidos como belos,
harmoniosos e graciosos, que permitem às mocinhas a expressão totalmente
espontânea' de sua natureza' feminina(12, p.45).
Frequentemente realizada ao ar livre, visando o contacto com a natureza e a
valorização do seu aspecto higiénico, tratava-se do treinamento dos gestos para
assegurar que a espontaneidade não estragasse o efeito desejado, objectivando o
controle absoluto sobre o corpo.
A ginástica feminina, segunda prática apontada por Fernando de Azevedo como
adequada as mulheres, foi profundamente influenciada pela dança. Isso porque
era necessária à preparação física dos bailarinos, dos quais se exigia
flexibilidade, destreza, leveza nos saltos etc. A maior parte dos dirigentes de
escolas de bailado da Europa criou formas de trabalho físico que foram
sistematizadas e difundidas em outros países, originando a chamada ginástica
feminina.
Sua característica monótona, repetitiva, contrária a espontaneidade e
controladora das tendências corporais e psíquicas, fez com que a ginástica
estivesse fortemente assimilada as práticas corporais femininas. Além disso, a
ginástica era valorizada por ser completamente despida de competitividade,
agressividade, desejo de vitória, desfavorecendo o desenvolvimento da ambição
individual.
Uma outra prática destacada como fundamental a manutenção da saúde feminina era
a caminhada, ou seja, andar a pé ou correr pequenas distâncias, sobretudo no
campo. Valorizava-se essa prática pelo aspecto higiénico das saídas ao ar livre
e pelo desenvolvimento muscular pouco significativo, já que um simples passeio
era considerado suficiente.
A última prática apontada por Fernando de Azevedo é a natação, que se
justificava como adequada às mulheres por proporcionar a harmonia plástica do
corpo e inspirar a graça dos movimentos. Além disso, era ressaltada nesta
prática a necessidade de intuição de ritmo, relacionada ao sexto sentido
feminino, e a inconstância do meio líquido, que se assemelhava a alma da mulher
e por isso as atraía mais do que aos homens(12).
Apesar do nascimento da natação feminina competitiva só ocorrer na década
seguinte, foram presenciadas na década de 1920 tímidas tentativas de aparições
públicas de nadadoras.
Em São Paulo, coube a um pequeno grupo de moças da colônia alemã romper as
maiores barreiras antepostas a mulher no desporto pelos costumes e preconceitos
locais, ao se apresentar em público para nadar, ainda que envoltas em
prodigiosos costumes de banho, abundantes em dobras e babados. As restrições
encontradas em casa por estas jovens eram menores, porque elas advinham de uma
cultura tradicionalmente adepta aos cuidados como físico e a apreciação dos
encantos da natureza
(
7
, p17)
.
AS PRÁTICAS CORPORAIS DE MOVIMENTO EM CLUBES DE SÃO PAULO
Os periódicos da época apontam o atletismo como uma prática esportiva na década
de 1920. Os registos restringem-se a duas menções em edições da Revista Esperia
nas quais há notas sobre o desenvolvimento do esporte no clube, publicadas na
coluna Indiscrições e algumas fotos.
A primeira nota trata do grande interesse que os treinos femininos estavam
despertando nos frequentadores do clube, o que pode justificar-se pela
modalidade ser tradicionalmente uma prática masculina. Mas as moças que estão
em treino pouco se incomodam com os basbaques; visam apenas fortalecer seu
physico, e fazer brilhante figura, obtendo bons resultados
(14)
. Percebe-se o reconhecimento de que há um envolvimento efectivo dessas
mulheres com sua prática, condição essencial para que elas apresentassem um bom
desempenho e ampliassem suas possibilidades de actuação na modalidade.
Porém, de acordo com a segunda nota, nem todos os espaços apresentavam
condições favoráveis ao crescimento do atletismo feminino:
A Federação de Athletismo, com esse negócio de competições femininas, parece
que esta tapeando o pessoal. Marcam a competição para um certo dia, e dahi a
pouco, ja noticiam a transferência. Depois, a data é alterada novamente. E
assim pouco a pouco vão desanimando as pequenas que estão treinando.
(16)
O posicionamento da Federação reforça a ideia de que a discriminação de género
nos esportes se apresentava de forma cada vez mais velada. Isso porque não se
assumia uma posição contrária a presença feminina nas pistas, mas eram
elaboradas estratégias para desmobilização das atletas.
Embora os textos não se referissem especificamente as provas do atletismo, por
meio das fotos e possível identificar mulheres participando do salto em altura,
do arremesso de dardo e do arremesso de peso. Outro aspecto que se destaca nas
imagens é o uniforme, composto por uma camisa sem mangas e gola e um short.
Esse uniforme se destaca de outros tipos de roupa utilizadas nas demais
práticas corporais por ser extremamente apropriada a exercitação física.
Outra modalidade na qual as mulheres estavam presentes era o basquetebol,
praticado somente no Club Esperia e na Associação Athletica São Paulo. Assim
como a disseminação dessa prática, as menções a participação feminina em
publicações da época também eram poucas, restringindo-se a duas fotografias da
equipe do Esperia e uma reportagem sobre a partida realizada entre os dois
clubes.
Os uniformes utilizados para a prática do basquetebol apresentam-se de formas
bastante distintas nas duas fotos da equipe feminina do Club Esperia. Em uma
delas as atletas estão vestidas com saias pelos tornozelos, camisas com mangas
compridas e punhos, as golas possuem laços e outros detalhes. Na outra foto,
publicada no periódico do clube em 1929, as saias estão na altura dos joelhos,
as camisas não possuem mangas e as golas não apresentam quaisquer ornamentos. O
desconhecimento da data da primeira foto encontrada nos arquivos do clube
apenas com a especificação década de 20 não nos permite inferir sobre uma
possível conquista das atletas em relação aos trajes para a prática esportiva.
A reportagem publicada na Revista Esperia, em 1929
(15)
, trata sobre o encontro de bola ao cesto entre turmas femininas, que foi
parte do programa de uma Semana de Educação Physica. O texto dessa publicação
destaca-se dos demais escritos na época pela utilização de expressões pouco
usuais na descrição de jogos em que havia a participação de mulheres.
O jogo foi disputado com muito ardor, chegando mesmo algumas vezes a assumir
phases violentas, dando um trabalho insano ao juiz do encontro. Apesar disso,
boas jogadas foram registradas, e belos lances a cesta resultaram em pontos,
dos quaes a nossa turma fez a maior parte, assegurando-se deste modo a victoria
das medalhas oferecidas pela Comissão de Educação Physica.
O relato desse jogo demonstra o intenso envolvimento das atletas com a
modalidade e com a competição, o que, somado a rivalidade existente entre as
duas equipes, proporcionou um acirramento da partida. Isso contraria a
concepção de Fernando de Azevedo, que considerava adequadas às mulheres as
actividades desprovidas do sentimento de competitividade. Outro aspecto que
merece destaque neste excerto são os elogios tecidos à dimensão técnica e
tática da partida, reconhecendo o valor das jogadoras pelo seu desempenho na
modalidade. Também cabe destacar a premiação que congratulou as vencedoras com
medalhas.
O texto da reportagem finaliza parabenizando as atletas pela atuação e fazendo
considerações acerca da participação feminina nos esportes:
Seu exemplo é digno de merecer numerosas imitadoras, que um acanhamento
injustificável afasta das competições esportivas, quando seria de desejar que o
esporte feminino fosse desenvolvido paralelamente ao esporte masculino. As
pioneiras da educação physica feminina por isso mesmo merecem maiores elogios,
porquanto arrostam com os preconceitos, certas de agir bem.(15)
É de grande excepcionalidade para a época um homem manifestar-se publicamente
para exaltar o desenvolvimento do esporte feminino com características
similares ao masculino. Isso porque poucos consideravam adequado o envolvimento
de mulheres em actividades físicas que proporcionassem um esforço intenso,
contacto corporal e rivalidade consentida. Vale ainda destacar que, pelo que
foi analisado, não se pode considerar injustificável o acanhamento de muitas
mulheres, uma vez que eram constantemente elaboradas novas formas de dificultar
seu acesso às actividades do mundo público.
Entre essas formas estava a omissão, que pode ser exemplificada pela ausência
de espaço que algumas modalidades femininas tinham na mídia da época. Em
decorrência disso, há poucos registos da participação de mulheres em alguns
esportes, dentre eles a esgrima, a ginástica, o vôlei, pólo aquático e o remo.
Ainda havia eventos sociais promovidos pelos clubes nos quais as atividades
físicas eram tomadas como uma forma de socialização da elite paulistana. Dentre
eles, destacavam-se os five o'clock teas e as garden parties do Club Athetico
Paulistano, onde as pessoas se reuniam e jogavam tênis, croque, diabolo,
pingue-pongue, pelota e peteca. Esses encontros eram valorizados por se
acreditar que os diferentes jogos entre famílias traziam benefícios para a
educação física das mocas e ainda que sem as mulheres, essas actividades se
tornariam embrutecedoras
(2, p.26)
. Porém, essa atribuição da responsabilidade às mulheres pelo
desembrutecimento das actividades supõe a delicadeza como uma característica
inata a sua condição feminina.
Gentis senhoritas e distintos rapazes, por sua vez, jogavam a peteca,
considerada por muitos como nacional e que tem a vantagem de cansar menos. (..)
Nas partidas de pingue-pongue, o sexo forte sempre foi derrotado.
(17)
No excerto é abordada a adequabilidade da peteca à prática mista por sua
reduzida exigência física, o que evidencia a equivocada compreensão de que o
corpo feminino não deveria ser submetido a esforços intensos. Também é retomada
a expressão sexo forte para referir-se ao homem, em oposição a mulher como o
sexo fraco, conforme discutido anteriormente.
O Club Athletico Paulistano, segundo o relatório anual de 1927
(18)
, possuía uma piscina tida como ponto de reunião diário de inúmeras famílias de
associados. Porém, a utilização do espaço estava submetida a uma rígida divisão
de horários: Os homens ficavam a sós' entre as sete e as oito horas de
segunda a sábado. As mulheres tinham a piscina a sua disposição as segundas,
quartas e sextas, entre as oito e dez horas, e as terças, quintas e sábados,
entre as dez e doze horas(2, p. 39). O funcionamento da piscina em regime
misto ocorria aos domingos e feriados, e das catorze as dezenove horas nos
outros dias. No entanto, os relatórios anuais, o periódico e os livros sobre a
historia do clube não apresentam qualquer justificativa para essa separação
entre os sexos.
As festas ao ar livre do Club Esperia, segundo as fotografias publicadas no
periódico do clube sob o titulo Alguns aspectos da ultima festa do Club
Esperia(15) também contavam com actividades físicas, nas quais homens e
mulheres participavam em provas separadas. As modalidades femininas
fotografadas foram a corrida de cem metros para senhorinhas, o carrinho de mão
e a corrida em sacos. Já os homens competiam no remo, corrida de três e cinco
mil metros, corrida de revezamento, corrida em sacos e a prova surpresa.
Apesar do material referente a prática de actividades físicas por mulheres ser
escasso, é evidente a ausência de um consenso sobre a aceitação feminina. Nas
reportagens da época é possível perceber diferentes reacções a esse respeito:
uns exaltavam, outros criticavam, havia os que silenciavam por desmerecerem
ou pela insegurança do porvir. Isso reflectia a instabilidade social gerada
pelo avanço das mulheres em diversas áreas nas artes, na política, no mercado
de trabalho, na educação etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante ressaltar que os espaços e formas de exercitação física constituem
um microcosmo da sociedade, e o que se verifica no campo das práticas corporais
é uma intenção de conter o avanço das conquistas femininas. Há registos de que
desde o século XIX algumas mulheres buscavam romper a resistência masculina
exercitando-se em lugares públicos, ainda que se constituíssem em manifestações
isoladas. A imagem que se veiculava delas correspondia aos valores de uma
sociedade falocêntrica nomeando-as como prostitutas, loucas ou criminosas.
Ainda assim, no início do século XX há uma intensificação da prática de
actividades físicas por mulheres.
Uma solução encontrada para a manutenção do controle sobre o corpo feminino,
inspirado no ideal nazista que se espalhava pela Europa de constituição de uma
raça pura, foi limitar as possibilidades de práticas corporais, atribuindo a
elas objectivos explicitamente higienistas e eugenistas. Dessa forma, as
mulheres não faziam actividades físicas pelo seu direito a prática, pelo
exercício de sua cidadania, mas para a construção de uma nação mais forte, com
a qual elas contribuíam tendo filhos saudáveis, ou seja, exercendo aquilo que
os homens consideravam sua principal função, a maternidade.
Ao tentar descrever uma versão à historia oficial, reconstituindo a
trajectória das mulheres na condição de protagonistas de suas acções, mostra
que até meados dos século XX as mulheres tinham direito a uma vida pública
restrita. Isso significava a impossibilidade de acesso a uma vida profissional,
aos cargos políticos, a cultura e a educação, como também o desfrute de uma
vida social publica. Além de serem consideradas incapazes de governar a si
mesmas e aos outros, devendo, portanto, submeter-se a autoridade masculina em
casa e fora dela, eram também excluídas do direito ao corpo e ao prazer
sexual, sob pena de serem olhadas como anormalidades ou monstruosidades. Desse
modo, a grande conquista feminina e feminista do chamado século das
mulheres', o XX, foi o direito a existência (grifo da autora), sem o que é
impossível começar, se queremos um mundo fundado na justiça social, no respeito
e na liberdade(11, p.34).
É possível afirmar que as experiências advindas da década de 1920 no que se
refere tanto as práticas femininas recomendadas, quanto as que eram
consideradas inadequadas, foram fundamentais para a ampliação das
possibilidades de práticas corporais entre as mulheres brasileiras.