Preferência lateral e coordenação motora
INTRODUÇÃO
A lateralidade funcional pode ser definida como a preferência por um dos
membros ou dos órgãos dos sentidos. A preferência manual (PM) é o índice de
preferência lateral mais estudado e é expresso pela preferência de utilização
de uma mão em relação à outra. Enquanto uns autores observaram uma associação
entre a PM e a proficiência manual (Annett, 2004; Bagi, Kudachi, & Goudar,
2011; Hausmanm, Kirk, & Corballis, 2004), outros sugerem que nem sempre a
mão com melhor desempenho corresponde à mão preferida (Mp) (Porac & Coren,
1981). Tal como a PM, a preferência podal (PP) constitui uma expressão da
lateralidade humana e reporta-se, neste caso, ao pé mais frequentemente
utilizado na execução de tarefas motoras unipodais. Estas podem ser divididas
em tarefas estáticas, como o equilíbrio (Eq) num só pé, e dinâmicas, como
chutar uma bola. Nas estáticas, o pé preferido (Pp) é normalmente utilizado
para efetuar o apoio; nas dinâmicas, o Pp é geralmente usado para executar o
movimento e o pé não preferido (PNp) serve de apoio. Tal como se verifica na
PM, na PP também se distingue a preferência da proficiência. Por exemplo,
tarefas envolvendo força, como carregar num pedal, ou tarefas de precisão, como
pontapear uma bola para determinada zona da baliza, são executadas pelo pé mais
proficiente, que nem sempre coincide com o Pp.
A proporção de sinistrómanos na população é de aproximadamente 10% (McManus,
2002), podendo variar entre os 0.6 e os 19.8% dependendo de fatores culturais e
étnicos (Porac, Rees, & Buller, 1990). Muitas teorias tentaram explicar as
taxas desproporcionadas entre destrímanos e sinistrómanos. O modelo genético
mais amplamente aceite é o Right Shift (Annett, 1985), o qual refere que a
lateralidade é definida por um gene que influencia a tendência que o indivíduo
apresenta com relação à própria lateralidade. Outra teoria genética (similar),
o Dextral Chance(McManus, 1985) propõe que o genótipo DD produz apenas
destrímanos, o genótipo CC produz uma mistura aleatória de 50% destrímanos e
50% de sinistrómanos, e o genótipo heterozigoto DC produz 25% de sinistrómanos
e 75% de destrímanos. Se por um lado, todas as teorias concordam que a PM é
biologicamente determinada (Annett, 1985), por outro as teorias envolvem também
a aceitação dos constrangimentos sociais e culturais, que conduzem a
percentagens diferentes de sinistrómanos entre as várias culturas. A hipótese
do mundo orientado à direita ("right-based world", Porac & Coren,
1981) revela que o ambiente físico favorece os destrímanos e impõe uma
adaptação aos sinistrómanos que, face à falta de equipamentos e utensílios
apropriados (abre latas, tesouras, ), são forçados a utilizar a sua mão não
preferida (MNp) na realização de tarefas na sua vida diária.
A literatura sugere que os sinistrómanos são menos lateralizados do que os
destrímanos (Gurd, Schulz, Cherkas, & Ebers, 2006) e que na sequência da
sua adaptação a um mundo destro são mais proficientes com a sua MNp (Judge
& Stirling, 2003). Este aspeto tem como consequência uma menor assimetria
motora funcional, por parte dos sinistrómanos, a qual parece proporcionar
vantagem em tarefas de coordenação combinada de ambos os membros (Gorynia &
Egenter, 2000).
O desenvolvimento de competências motoras depende de vários fatores, como a
lateralidade, o sexo e a idade. No âmbito da lateralidade e das assimetrias
funcionais dela decorrentes, a literatura revela que os sinistrómanos não são
tão lateralizados quanto os destrímanos (Bagi, Kudachi, & Goudar, 2011;
Steenhuis & Bryden, 1999) e apresentam, comparativamente a estes, uma
performance superior com a MNp, em muitas tarefas, como por exemplo, as que
envolvem destreza manual (DM) fina ("Peg-moving", Annett &
Kilshaw, 1983), DM fina e força de preensão (Bagi et al., 2011; Steenhuis &
Bryden, 1999) e destreza digital ("Finger tapping", Schmidt,
Oliveira, Krahe, & Filgueiras, 2000). O estudo de Vasconcelos (1993), com
253 crianças dos 11 aos 14 anos, revela que os destros apresentaram melhores
desempenhos com a Mp, os sinistrómanos foram superiores com a MNp e
apresentaram, na tarefa de força, melhores desempenhos, com qualquer das mãos,
comparativamente aos destrímanos. Por outro lado, algumas investigações apontam
uma melhor coordenação motora em destrímanos (Giagazoglu, Potiadou,
Angelopoulou, Tsikoulas, & Tsimaras, 2001; Kastner-Koller, Deimann, &
Bruckner, 2007). Relativamente ao sexo, alguns autores (e.g., Engel-Yeger,
Rosenblum, & Josman, 2010; Livesey, Coleman, & Piek, 2007) referem, que
as meninas apresentam melhor desempenho no Eq e na DM e que os meninos revelam
um melhor desempenho nas habilidades com bola (HB). No entanto, outros estudos
não verificaram diferenças na coordenação motora (CM) entre sexos (e.g., Shala,
2009; Venetsanou, & Kambas, 2010). Quanto à idade, a literatura revela
resultados controversos na CM avaliada através do Movement Assessment Battery
for Children (M-ABC) de Henderson e Sugden (1992). Este instrumento é
reconhecido a nível mundial como uma medida de ouro na avaliação das
dificuldades da CM (Blank, Smits-Engelsman, Polatajko, & Wilson, 2012).
Enquanto alguns estudos verificaram melhores desempenhos por parte das crianças
mais velhas (Chow, Yung-Wen, Henderson, Barnett, & Sing Kai, 2006;
Henderson & Sugden, 1992) outros observaram piores desempenhos (e.g., Silva
& Beltrame, 2013; Valentini et al., 2012).
Como profissionais de Educação Física e Desporto, sobretudo intervindo junto da
população infanto-juvenil, devemos ter um conhecimento aprofundado sobre as
questões coordenativas, de importância crucial neste período da vida, e da
relação destas questões com variáveis que interferem no processo de ensino-
aprendizagem. A lateralidade é uma dessas variáveis, pois a literatura remete-
nos para um efeito da PM e da PP no desempenho motor de crianças e jovens. São
vários os estudos sugerindo, por exemplo, que os sinistrómanos são mais
proficientes do que os destrímanos no que respeita à MNp (Judge & Stirling,
2003) e também que são menos assimétricos do que os destrímanos (Rousson,
Gasser, Caflisch, & Jenni, 2009). Procurando contribuir para o conhecimento
neste domínio, o nosso estudo pretende verificar o efeito da PM, da PP, da
idade e do sexo na CM das crianças, de modo a podermos intervir com mais
conhecimento e de forma mais consciente no processo de ensino-aprendizagem.
MÉTODO
O presente estudo é de natureza experimental e transversal.
Participantes
Tendo em consideração que o objetivo deste estudo foi comparar as crianças com
diferente preferência manual, numa fase inicial realizamos o levantamento de
todas as crianças com preferência manual esquerda através da mão da escrita e
sem experiência desportiva. Estes dados iniciais foram levantados em crianças
entre os 4 aos 12 anos de idade, em 8 escolas públicas pertencentes ao distrito
do Porto (Portugal), num total de 1700 crianças. Estas crianças foram
convidadas a participar neste estudo e foram selecionadas, posteriormente, de
forma aleatória, crianças com a mesma idade, sexo e sem experiência desportiva
dentro da mesma turma. Assim, foi elaborada uma amostra de conveniência
constituída por 319 crianças, dos 4 aos 12 anos de idade (7.96±2.38 anos). Os
dados relativos à prática desportiva das crianças foram obtidos através de um
questionário preenchido pelos encarregados de educação e apenas foram incluídas
no estudo as crianças que não apresentavam experiência desportiva
extracurricular. A PM foi confirmada através do Card-reaching task (Carlier et
al. 2006, adaptada de Bishop et al., 1996) e do Questionário de PM de Van
Strien (2002). Assim, 154 crianças foram classificadas como fortemente
destrímanas e 119 crianças como fortemente sinistrómanas, tendo sido expurgadas
46 crianças na análise da PM. Relativamente à PP, avaliada através da tarefa de
pontapear uma bola (Hart & Gabbard, 1996), 225 crianças apresentaram PP
direita e 94 crianças a PP esquerda. Relativamente ao sexo, 167 eram do sexo
masculino e 151 do sexo feminino. A amostra foi subdividida em 4 grupos de
idade, conforme as bandas de idade do teste M-ABC (Henderson & Sugden,
1992): Banda 1 (4-6 anos, n= 100); Banda 2 (7-8 anos, n= 89); Banda 3 (9-10
anos, n= 71) e Banda 4 (11-12 anos, n= 59).
Este estudo foi realizado segundo as normas da Declaração de Helsínquia. Foi
obtido um termo de consentimento informado dos encarregados de educação das
crianças participantes, no qual foram apresentados os procedimentos, a duração
do experimento e os seus direitos como participantes da pesquisa. Os
procedimentos experimentais foram aprovados pelo Comité de Ética da
Universidade do Porto. Não foram incluídas crianças com necessidades educativas
especiais comprovadas ou com diagnóstico de deficiência motora, problemas
neurológicos, comportamentais ou ortopédicos.
Todos os participantes realizaram os testes numa sala ampla e isolada, no seu
estabelecimento de ensino, durante o tempo letivo. A aplicação dos testes teve
uma duração total de aproximadamente 35 minutos.
Instrumentos
Para avaliar a PM das crianças aplicamos o Card-reaching task (Carlier et al.
2006, adaptada de Bishop et al., 1996) e o Questionário de PM de Van Strien
(2002). Para avaliar a PP aplicou-se a tarefa de pontapear uma bola (Hart &
Gabbard, 1996).
Card-reaching task (Carlier et al. 2006, adaptada de Bishop et al., 1996)
Numa mesa são colocados 21 cartões com diferentes figuras, cada uma repetida em
3 cartões sobrepostos, posicionados conforme a figura_1. O participante sentado
em frente a uma mesma com as mãos nos joelhos, coloca os cartões no recipiente
(caixa), colocado na linha média, conforme a ordem indicada pelo avaliador. É
registada a mão utilizada em cada uma das 21 tentativas. A criança é
classificada como destrímana quando alcança no mínimo 11 vezes com a mão
direita e como sinistrómana quando alcança as cartas no mínimo 11 vezes com a
mão esquerda.
Questionário de PM de Van Strien (2002)
Foi registada a mão utilizada em 10 tarefas: pegar no lápis quando desenha;
segurar a escova; lavar os dentes; desenroscar a tampa de uma garrafa; lançar
uma bola; dar as cartas de um baralho; pegar numa raquete; abrir a tampa de uma
caixa; pegar numa colher quando come sopa; apagar com uma borracha; abrir uma
porta com uma chave. Para a opção pela mão direita atribuiu-se o valor +1, para
a opção pela mão esquerda o valor −1, e à opção por qualquer delas, o valor
0. Os participantes foram classificados como fortemente destrímanos (com
valores entre 8 e 10) e fortemente sinistrómanos (com valores entre −10 e −8).
Tarefa de pontapear uma bola (Hart & Gabbard, 1996)
Foram classificados com PP direita as crianças que em três tentativas de
pontapear uma bola, utilizaram o pé direito pelo menos 2 vezes e com PP
esquerda as que utilizaram o pé esquerdo pelo menos 2 vezes.
A CM foi avaliada através do teste motor do M-ABC de Henderson e Sugden (1992).
Este teste foi concebido para avaliar os níveis de coordenação motora de
crianças dos 4 aos 12 anos de idade, combinando dados quantitativos e
qualitativos resultantes da avaliação de testes estandardizados para a
motricidade fina e global. Esta bateria é constituída por trinta e duas provas
e uma lista de verificação que avalia o impacto das dificuldades motoras da
criança em contexto educacional. Para cada uma das quatro faixas etárias (4-
6 anos; 7-8 anos; 9-10 anos e 11-12 anos), a bateria avalia três capacidades
através da execução de oito provas: três de DM, duas de HB, uma de equilíbrio
estático (EE) e duas de equilíbrio dinâmico. Esta bateria foi traduzida e
adaptada culturalmente para a população portuguesa relativamente às quatro
bandas de idade e foram estudadas as suas qualidades através de uma análise da
equivalência métrica (sensibilidade e fiabilidade) com amostras da população
portuguesa (Cardoso, Silva, Silva, & Vasconcelos, 2009, 2009). O primeiro
passo é registar a pontuação do desempenho de cada tarefa do teste e colocar um
F se a criança não completar a tarefa, um I se a tarefa for inapropriada ou
um R se a criança não quiser cooperar. Relativamente aos valores de
desempenho de cada tarefa este é convertido numa escala de pontuação que varia
de zero a cinco, representando as pontuações mais baixas os melhores
desempenhos. Assim, o valor zero é atribuído ao sucesso completo numa
determinada tarefa avaliada, sendo que o valor cinco significa uma falha. Um
F, I ou R é convertido numa pontuação de cinco valores.
Para este estudo consideramos apenas as provas motoras unilaterais, isto é,
aquelas que são executadas, à vez, pelo membro preferido e pelo membro não
preferido. Foi então possível obter, nas 4 bandas de idade, a média da DM
(provas 1 e 3) e das HB (prova 5) para a Mp e para a MNp e a média do EE (prova
6) para o Pp e para o PNp (ver Tabela_1). De referir que, nas provas motoras,
as crianças foram contrabalançadas em relação ao membro de início da tarefa. A
pontuação atribuída, quer para o membro preferido, quer para o membro não
preferido, teve por base a mesma cotação, isto é, a do membro preferido.
Análise Estatística
Foi efetuada a análise exploratória dos dados de forma a avaliar a normalidade
da distribuição correspondente a cada uma das variáveis em estudo e a eventual
presença de outliers, utilizando o teste Kolmogorov-Smirnov (K-S). Efetuámos
uma ANOVA multivariada 2 (PM ou PP) × 2 (sexo) × 4 (banda de idade) para
examinar o efeito dos fatores principais no desempenho da CM. O teste post hoc
utilizado foi o de Bonferroni e o nível de significância foi fixado em p≤ 0.05.
Os resultados serão apresentados versando os fatores principais ou interações
com significado estatístico.
RESULTADOS
A Tabela_2 apresenta os valores médios correspondentes às provas que avaliam as
capacidades de DM, HB e EE, com os membros preferido e não preferido, para cada
grupo de preferência (manual ou podal).
Relativamente à Mp, as crianças fortemente destrímanas apresentam melhores
desempenhos do que as crianças fortemente sinistrómanas na DM (F1,257= 30.378,
p< 0.001) e nas HB (F1,257= 5.481, p= 0.020). Em contrapartida, no que respeita
à MNp, as crianças fortemente sinistrómanas apresentam um desempenho
significativamente superior na DM (F1,257=20.558, p< 0.001) relativamente às
fortemente destrímanas. No que respeita à PP, considerando o PNp, as crianças
com PP esquerda demonstram um EE significativamente (F1,302= 4.695, p= 0.031)
mais proficiente comparativamente às crianças com PP direita. Não se
verificaram diferenças significativas entre a preferência direita e esquerda
nas HB com a MNp e no EE com o Pp.
A Tabela_3 mostra os valores médios correspondentes às provas que avaliam as
capacidades de DM, HB e EE, com os membros preferido e não preferido, para cada
sexo.
O sexo feminino obteve um melhor desempenho comparativamente ao sexo masculino,
com diferenças estatisticamente significativas na DM com a MNp (F1,257=
5.574,p= 0.019) e no EE com o PNp (F1,302= 5.134, p= 0.024). Não se verificaram
diferenças significativas entre os sexos nas HB com a Mp e com a MNp, na DM com
a Mp e no EE com o Pp.
A Tabela_4 expõe os valores médios relativos às provas que avaliam as
capacidades de DM, HB e EE, com os membros preferido e não preferido, para as
quatro bandas de idade.
Verificamos que a banda de idade 1 (4-6 anos) apresenta um desempenho
significativamente superior na DM com a Mp (F3,257=65.85, p< 0.001) e com a MNp
(F3,257= 77.80, p< 0.001), para a sua idade, comparativamente aos restantes
grupos, o mesmo constatamos nas HB com a MNp (F3,257= 4.07, p= 0.008).
Observamos que a banda de idade 2 é aquela que apresenta um melhor EE quer com
o Pp (F3,302=38.82, p< 0.001), quer com o PNp (F3,302=28.59, p< 0.001),
seguindo-se a banda 1 (4-6 anos), a banda 3 (9-10 anos) e, por fim, a banda 4
(11-12 anos). Verificamos um pior desempenho da DM, das HB e do EE nas idades
mais avançadas, realçando todavia o carácter transversal e não longitudinal do
presente estudo.
Verificamos uma interação estatisticamente significativa (F3,257= 6.760, p<
0.001) entre a PM e a Idade, na DM com a Mp. Pela análise da Figura_2, podemos
constatar que a diferença encontrada entre fortemente destrímanos e fortemente
sinistrómanos é superior nas bandas de idade mais avançadas, com os destrímanos
a evidenciar melhor desempenho.
A interação PM×Idade×Sexo também evidenciou um efeito significativo na DM com a
Mp (F3,257= 3.290, p= 0.021). Pela análise da Figura_3 e da Figura_4,
observamos diferenças superiores entre fortemente sinistrómanos e fortemente
destrímanos nas idades mais avançadas (banda de idade 3, dos 9-10 anos, e banda
de idade 4, dos 11-12 anos), no sexo masculino e no sexo feminino. Todavia,
esta diferença expressa-se diferentemente em cada sexo.
Verificamos que a DM com a Mp dos meninos destrímanos e sinistrómanos (Figura
3) é semelhante no grupo etário mais novo (4-6 anos) e que através das faixas
etárias a diferença entre os dois grupos de PM aumenta. A partir dos 7-8 anos é
evidente que os rapazes fortemente destrímanos apresentam uma melhor
proficiência com a sua Mp na DM, comparativamente aos rapazes fortemente
sinistrómanos do mesmo grupo de idade. Esta diferença acentua-se nas restantes
bandas de idade (9-10 e 11-12 anos).
Nas meninas fortemente destrímanas e fortemente sinistrómanas, observamos que a
DM com a Mp é distinta nas quatro bandas de idade (Figura_4), apresentando-se
mais acentuada esta diferença na banda dos 9-10 anos.
DISCUSSÃO
Com este estudo pretendemos verificar o efeito da PM, da PP, da idade e do sexo
na CM de crianças entre os 4 e os 12 anos.
Lateralidade
Os resultados revelaram, quanto à PM, que as crianças fortemente destrímanas
demonstraram um melhor desempenho na DM e nas HB com a sua Mp, comparativamente
às crianças fortemente sinistrómanas. Por sua vez, as crianças fortemente
sinistrómanas apresentaram um melhor desempenho com a sua MNp na DM.
Relativamente à PP, as crianças com PP esquerda demonstraram um melhor EE com o
seu PNp, comparativamente às crianças com PP direita. Ao observar um efeito da
PM na DM, o nosso estudo confirma os resultados de estudos anteriores (Hill
& Khanem, 2009; Vasconcelos, 1993). Embora os autores tenham aplicado
outros instrumentos de avaliação da DM, estes verificaram uma melhor
proficiência das crianças destrímanas comparativamente às sinistrómanas, ao
nível da Mp. O mesmo se confirmou no que respeita à MNp na DM, em que os
sinistrómanos demonstram melhor performance que os destrímanos. Baseados na
ideia suportada por Steenhuis e Bryden (1999), que verificaram que os
sinistrómanos não são tão lateralizados quanto os destrímanos, tais resultados
sugerem que, apresentando os sinistrómanos uma menor assimetria motora
funcional, estes poderão apresentar um melhor desempenho com a sua MNp. Esta
hipótese, partilhada mais tarde por Sainburg (2002), denomina-se hipótese
dinâmica da dominância na lateralização motora e foi recentemente confirmada em
participantes sinistrómanos (Przybyla, Good, & Sainburg, 2012). Os
resultados deste estudo demonstraram que os sinistrómanos, nas tarefas motoras,
apresentam um padrão de controlo neuromuscular dos movimentos semelhante ao dos
destrímanos. Todavia, no que respeita ao membro não preferido, os sinistrómanos
desenvolveram um controlo dos movimentos mais coordenado do que os destrímanos,
resultando numa assimetria menos acentuada na sua coordenação intersegmentar,
apesar de manterem a prevalência da Mp sobre a MNP, na manifestação da
preferência, como têm demonstrado estudos como os de Rodrigues, Lamboglia,
Cabral, Barreiros e Vasconcelos (2009). Apesar da menor assimetria, não só na
manifestação da preferência mas também na expressão da proficiência, também os
sinistrómanos têm apresentado um desempenho superior da sua Mp no desempenho de
tarefas de CM (Gurd et al., 2006). Como foi já referido, esta menor
lateralização dos sinistrómanos poderá resultar de uma menor intensidade na
preferência pelo uso da Mp como resultado de uma maior frequência no uso da
MNp, consequência da vivência num mundo favorecendo o uso do lado direito
("right-based world", Porac & Coren, 1981). Por outro lado,
concordamos com Swinnen, Jardin e Meulenbroek (1996), que justificam os
melhores desempenhos dos destrímanos com a sua Mp referindo o facto de estes
usarem quase sempre esta mão nas atividades unimanuais e raramente recorrerem à
sua MNp. Contrariamente, os sinistrómanos, devido ao facto de viveram num mundo
enviesado à direita, utilizam com alguma frequência a sua MNp, sendo então
esta mais proficiente do que a MNp dos destrímanos. Em consequência, verifica-
se uma menor assimetria funcional nos sinistrómanos e alguma perda de
funcionalidade da sua Mp. Isto é, os sinistrómanos são menos sinistrómanos
dos que os destrímanos são destrímanos.
Sexo
Quanto ao fator sexo, verificaram-se diferenças na DM com a MNp e no EE com o
PNp, apresentando o sexo feminino um melhor desempenho do que o sexo masculino.
O melhor desempenho na DM por parte do sexo feminino corrobora com vários
estudos (Brito & Santos-Morales, 2002; Ruiz & Graupera, 2003;
Sigmundsson & Rostoft, 2003; Vedul-Kjelsås, Stensdotter, & Sigmundsson,
2012), tal como o Eq (Chow et al., 2006; Lam, Ip, Lui, & Koong, 2003;
Lejarraga et al., 2002; Nolan, Grigorenko, & Thorstensson, 2005). No
entanto, alguns estudos não verificaram diferenças entre sexos na DM (Vedul-
Kjelsås et al., 2012) e no equilíbrio (Kourtessis et al., 2008; Shala, 2009;
Van Waelvelde, Peersman, Lenoir, Smits Engelsman, & Henderson, 2008;
Venetsanou & Kambas, 2010). Tal como alguns autores, não encontramos
diferenças significativas entre os sexos nas HB (Sigmundsson & Rostoft,
2003). Contrariamente aos nossos resultados, diversas investigações verificaram
um melhor desempenho nas HB por parte dos rapazes com diferenças significativas
(Chow et al., 2006; Engel-Yeger et al., 2010; Livesey et al., 2007; Ruiz &
Graupera, 2003; Vedul-Kjelsås et al., 2012). As questões de âmbito cultural
foram, em geral, apontadas como justificação para os resultados encontrados
nestas investigações. Relativamente ao nosso estudo, como possível explicação,
sugerimos que a falta de espaços recreativos e desportivos apropriados para a
realização de jogos com bola dos meninos estudados na nossa amostra poderá
justificar as semelhanças encontradas nas HB entre os sexos.
No caso do nosso estudo, pensamos que as diferenças entre os sexos relativas ao
membro não preferido, nos testes de DM e de EE, poderão ter origem no
envolvimento sociocultural onde a criança se insere. No geral, as raparigas
tendem a ser mais estimuladas para tarefas que requerem DM, nomeadamente, para
a realização de tarefas que requerem DM fina, por exemplo, a elaboração de
colares, a reprodução e recorte de desenhos projetados em papel, fazer
penteados (como tranças), bordados e enfeites. Por outro lado, elas tendem a
realizar mais jogos recreativos ou tradicionais que apelam ao desenvolvimento
do Eq (estático e dinâmico), nomeadamente jogos como o macaquinho chinês, a
estátua, a macaca, saltar à corda, entre outros. A DM e o EE podem ser
desenvolvidos em atividades executadas com ambos os membros ou apenas com um,
podendo ser mais evidente a diferença entre o sexo masculino e feminino com o
membro não preferido mais estimulado pelas meninas.
Por outro lado, os nossos resultados podem ser complementados pelos de Roeder
et al. (2008) que verificaram uma menor assimetria funcional nas meninas
relativamente aos meninos. Neste estudo foi aplicado o PANESS (Physical
Neurological Assessment of Subtle Signs - Exame físico e neurológico de sinais
subtis) a 130 crianças destrímanas (65 meninos e 65 meninas), dos 7 aos 14
anos, que realizaram tarefas cronometradas com o pé, mão e dedo. Os resultados
revelaram um efeito do sexo, revelando os meninos uma maior diferença entre o
lado direito e esquerdo. Os autores justificaram os resultados referindo-se a
uma maturação mais precoce, nas meninas, das estruturas cerebrais que suportam
a CM e a velocidade.
Idade
No que respeita à idade constatamos que o grupo de crianças mais novas (banda
1) apresenta, para a sua idade, um melhor desempenho na DM com a Mp e com a
MNp. O mesmo verificou-se nas HB com a MNp. A banda de idade 2 apresentou um
melhor EE, para a sua idade, com o Pp e com o PNp, seguindo-se as bandas 3 e 4.
As idades mais avançadas apresentaram piores resultados, para a sua idade, na
DM, nas HB e no EE. Estes resultados corroboram com algumas investigações neste
âmbito realizadas com o M-ABC, em que as crianças mais velhas apresentaram
piores desempenhos na coordenação motora (Engel-Yeger et al., 2010; Ruiz &
Graupera, 2003; Silva & Beltrame, 2013; Valentini et al., 2012).
Contrariamente, outros estudos com o M-ABC verificaram um melhor desempenho por
parte das crianças mais velhas (Chow et al., 2006; Henderson & Sugden,
1992; Livesey et al., 2007b). Uma possível interpretação para os nossos
resultados, no que respeita à DM, baseia-se na observação das brincadeiras e
atividades lúdicas das crianças da nossa amostra, despendendo as crianças mais
novas maiores períodos de tempo em atividades que solicitam a DM, as HB e o EE.
Além disso, estas experimentam também uma maior diversidade de ações motoras
envolvendo as referidas capacidades. Estas atividades, de âmbito recreativo e
contextualizadas também no período de tempo destinado à Educação Física, são
bastante desenvolvidas na idade pré-escolar. Nesta fase, as crianças possuem
muito tempo para as brincadeiras e jogos, nomeadamente com bola, e os
professores dispõem de períodos mais alargados de tempo para as estimular e
envolver de forma mais intensa nas aprendizagens motoras, com o correspondente
desenvolvimento dos padrões básicos do movimento e das respetivas capacidades
motoras. Por outro lado, ao entrarem no 1º Ciclo ou deste para o 2º Ciclo, as
crianças acabam por direcionar essencialmente o seu tempo para as tarefas
cognitivas, como a aprendizagem e o desenvolvimento da leitura, da
interpretação de textos, da escrita e do cálculo, possuindo menos tempo para se
envolver em atividades lúdicas. Outro aspeto que nos parece importante referir
na interpretação das diferenças encontradas entre a banda 1 e as outras bandas,
é o facto de termos constatado que nas Escolas do Agrupamento da nossa amostra
os alunos apenas começam a ter a disciplina de Educação Física a partir do 4º
ano (isto é, a partir dos 9-10 anos de idade). Por outro lado, nas turmas do 1º
Ciclo às quais foi aplicado o M-ABC, a expressão físico-motora não é
desenvolvida pela maioria dos professores do 1º Ciclo, evocando argumentos tais
como o extenso conteúdo curricular nas outras áreas (Português, Matemática e
Estudo do Meio), a falta de habilitação e de motivação para lecionar esta
componente e, principalmente, a limitação, inadequação ou inexistência de
espaços recreativos e desportivos, assim como falta de materiais lúdicos e
desportivos. Todo este contexto ambiental e educativo parece justificar os
resultados encontrados, levando a que os mais novos apresentem, para a sua
idade, melhores desempenhos na DM do que os mais velhos. Hirtz e Hultz (1987)
referem que é entre os 6 e os 9 anos que as crianças se encontram mais
disponíveis para a aquisição e desenvolvimento das capacidades coordenativas,
uma vez que nesta fase acontece uma rápida maturação do sistema nervoso
central. Assim, as crianças da nossa amostra parecem não possuir uma
estimulação suficiente em idades cujo desenvolvimento da CM é fundamental.
Apenas por volta dos 10 anos é que estas crianças voltam a ser estimuladas na
escola no sentido de desenvolver os padrões motores básicos e aprender algumas
habilidades motoras, que deveriam ter sido desenvolvidos e aprendidas mais
cedo. Assim, quando chegam aos 12 anos, elas não apresentam a eficiência que
normalmente deveriam demonstrar a nível coordenativo, caso tivesse ocorrido uma
estimulação frequente e diversificada ao longo do 1º Ciclo de ensino. Mais uma
vez sugerimos que tal ocorrência poderá explicar o motivo pelo qual as crianças
mais velhas apresentaram, para a sua idade, um pior desempenho motor
comparativamente às mais novas. Por outro lado, a banda de idade 2 foi aquela
que apresentou melhor EE, comparativamente aos restantes grupos de idade. Este
resultado pode-se justificar pelo desenvolvimento maturacional da criança de 7-
8 anos comparativamente à criança de 4-6 anos e pela escassa estimulação desta
capacidade nas restantes bandas de idade subsequentes (9-10 anos e 11-12 anos).
CONCLUSÕES
Concluímos que a PM, o sexo e a idade possuem efeitos significativos na CM das
crianças entre os 4 e os 12 anos de idade. Verificamos que as crianças
fortemente destrímanas demonstraram um melhor desempenho na DM e nas HB com a
sua Mp e as crianças fortemente sinistrómanas apresentam um melhor desempenho
com a sua MNp na DM. As crianças com PP esquerda apresentam um melhor EE com o
seu PNp do que as crianças com PP direita. O sexo feminino apresentou melhor DM
com a MNp e melhor EE com o PNp do que o sexo masculino. Observamos ainda um
melhor desempenho da DM, das HB e do EE nas crianças pertencentes às bandas de
idade mais novas. Sugerimos mais investigações neste âmbito englobando a
comparação de sujeitos fortemente lateralizados versus sujeitos fracamente
lateralizados, à esquerda e à direita, de modo a compreender melhor a relação
entre a PM e a CM. Por outro lado, sugerimos mais estudos no sentido de
clarificar o efeito da idade e do tipo de envolvimento e de estimulação motora
nos vários parâmetros da CM, em crianças do 1º e 2º Ciclos de ensino.
Independentemente da preferência lateral, da idade ou do sexo, pensamos que é
essencial proporcionar às crianças diversas experiências motoras desde os
primeiros anos de vida, de modo a desenvolver o seu reportório motor,
permitindo-lhes desempenhos mais proficientes e aprendizagens motoras mais
eficazes e, sobretudo, mais eficientes ao longo da sua vida.