Efeitos da gameterapia na mielorradiculopatia esquistossomótica: Relato de caso
INTRODUÇÃO
A mielorradiculopatia esquistossomótica (MRE) é a forma ectópica mais grave e
incapacitante da infecção pelo Schistosoma mansoni (Ministério da Saúde [MS],
2006; Lambertucci, Silva, & Amaral, 2007). Quando há o contato com água
doce contaminada, a cercária penetra na pele do hospedeiro e dirige-se à
circulação portal e mesentérica, iniciando a deposição dos ovos (Gryseels,
Polman, Clerinx, & Kestens, 2006). Os ovos partem para as veias vertebrais
através do plexo avalvular de Batson que possui anastomoses com as veias
profundas ilíaca e cava inferior que ligam as veias da pelve e do reto com a
medula espinhal (Balliauw, Martens, Steen, Bladt, & Vanhoenacker, 2010;
Jongste et al., 2010). Uma reação inflamatória é desencadeada a partir da
deposição dos ovos no sistema nervoso central (Silva et al., 2004).
As manifestações clínicas surgem na fase aguda ou subaguda com piora decorrente
do quadro, ou na fase crónica, ao longo de meses ou até mesmo anos. Cerca de 51
a 77% dos casos a MRE apresentam dor lombar ou em membros inferiores (MMII),
12% com disfunção vesical, 7% com redução de força em MMII, parestesia em 6% e
impotência sexual com 0.7% (Silva et al., 2004). Relatos de literatura afirmam
que esforços físicos, manobras de valsalva ou qualquer outra forma de aumento
de pressão intra-abdominal podem desencadear a MRE (Silva et al., 2004; Ueki,
Parisi, & Onofrio, 1995).
Devido a grandes variações de expressão clínica, a prevalência da MRE em área
endémica ainda não é conhecida (Santos, Campos, Diniz, Leal, & Rocha, 2001;
Vidal, Gurgel, Ferreira, & Azevedo Filho, 2010). A cada ano, o número de
casos aumenta e há falhas no mapeamento e notificação da doença, esses fatores
mascaram a realidade que proporcionam consequências graves para os infetados.
Dentre os casos descritos, os homens em idade produtiva são mais acometidos
pela MRE, com incidência em torno de 71% a 83%. Tais valores ocorrem em
detrimento da maior exposição ocupacional (Araújo, Silva, Santos, Barbosa,
& Ferrari, 2010; Jongste et al., 2010; Nobre et al., 2001; Silva et al.,
2004).
Em estudo realizado por Araújo et al. (2010) envolvendo 139 indivíduos com
diagnóstico de MRE, observou-se que 100% relataram fraqueza muscular em MMII,
predominantemente assimétrica, e 93.7% apresentaram distúrbio da marcha. A
disfunção vesical foi relatada por 78.5% dos pacientes e a intestinal esteve
presente em 60.6% dos casos. A dor lombar e/ou em MMII, a hipoestesia e as
parestesias também estiveram presentes, sendo encontradas em 80.3%, 89.5% e
57.4% dos casos, respetivamente.
Estima-se que 95% dos pacientes com MRE que não recebem tratamento morrem ou
não apresentam melhora clínica. No estudo de Silva et al. (2004) obteve-se
melhora do quadro neurológico mesmo quando a terapia foi iniciada após 12 meses
de instalada a MRE. O tratamento das sequelas varia conforme o nível de
comprometimento e consiste basicamente em cinesioterapia visando a
funcionalidade do paciente (Silva et al., 2004).
Considerando os sinais, sintomas clínicos bem como potencialidades
remanescentes apresentadas por portadores de MRE, hipotetiza-se que a
estimulação visual é um forte aliado à terapia tradicional. Está comprovado que
o feedback visual estimula a plasticidade neural e a informação captada pelos
olhos fornece um potente sinal para a reorganização dos circuitos
sensoriomotores. Sugere-se que movimentos repetidos aliados com uma estimulação
visual podem moldar a atividade neural em áreas pré-motoras e motoras
(Adamovich, Fluet, Tunik, & Merians, 2009; Bray, Shimojo, & O'Doherty,
2007; Hadipour, Niktarash, Lee, Desmond, & Shadmehr, 2007; Richardson et
al., 2006). Para resultados mais promissores, deve-se estar atento para o fato
de que o tratamento deve ser individualizado e executado diversas vezes
(Sveistrup, 2004).
Um dos equipamentos de RV mais comummente utilizado na reabilitação é o
Nintendo Wii®. Utiliza-se uma televisão, fornecendo feedback visual, além de um
joystick sem fio (wiimote) que possui sensores, os quais captam movimentos do
participante e transmite para o jogo (Butler, 2010). É um recurso que poderá
contribuir para melhora da proprioceção do paciente, coordenação motora grossa
e fina, fortalecimento da musculatura, estímulo da atividade cerebral, aumento
da capacidade de concentração e equilíbrio (Burdea et al., 2008; Barcala,
Colella, Araujo, Salgado & Oliveira, 2011). Outro acessório que complementa
a terapia é a plataforma Wii Balance Board® composta pelo Wii Fit®. O jogador
posiciona-se sobre a mesma e através dos quatro sensores de pressão, é possível
analisar peso, índice de massa corporal (IMC) e centro de gravidade (COG) dos
usuários (Bieryla & Dold, 2013; Clark et al., 2010). Atualmente, não há
estudos que relacionem a intervenção com a plataforma Wii Balance Board® e a
MRE. O objetivo do estudo foi avaliar os efeitos do Nintendo Wii® e a
plataforma Wii Balance Board® sobre o desempenho neuromusculoesquelético de uma
voluntária com MRE.
MÉTODO
Participante
A voluntária foi selecionada por conveniência, através de convite individual e
depois de informada sobre o propósito do estudo, assinou termo de consentimento
autorizando a realização e a publicação do estudo. Foi respeitada sua autonomia
e assegurando sua privacidade como rege a Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde. As intervenções foram realizadas no Departamento de Morfologia da
Universidade Federal de Sergipe, Brasil. Trata-se de um estudo de caráter
exploratório do tipo caso piloto realizado no período de Agosto a Setembro de
2011. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal de Sergipe sob o número de certificado de apresentação para apreciação
ética (CAAE): 0135.0.107.000-11.
A participante da pesquisa, aqui referida como JBMS, 30 anos de idade, sexo
feminino, sedentária, residente na cidade de São Cristóvão/SE, Brasil,
diagnóstico clínico de MRE, epidemiologia positiva para esquistossomose
mansônica e sem nenhuma experiência prévia com o Nintendo Wii® ou similares
apresentou os primeiros sintomas neurológicos oito anos após o contato com a
água contaminada pelo S. mansoni no povoado Jenipapo-AL, Brasil. O tempo de
evolução da doença desde o aparecimento dos primeiros sinais neurológicos até o
quadro atual foi de 30 dias. Durante a apresentação dos sinais neurológicos,
realizou-se o exame parasitológico de fezes que identificou infecção pelo S.
mansoni, a ressonância nuclear magnética detetou um alargamento medular ao
nível da décima vértebra torácica e o estudo urodinâmico identificou a bexiga
neurogênica hiperreflexa. Na avaliação inicial, 12 anos após a contaminação
pelo parasita e quatro anos desde o surgimento dos sintomas neurológicos, a
paciente estava com carga parasitária negativa e já havia realizado sem sucesso
terapia com corticoides.
Procedimentos e Instrumentos
A paciente foi avaliada inicialmente, em seguida submetida à fisioterapia
utilizando o Nintendo Wii®, após o tratamento foi reavaliada. Assim, o presente
estudo teve um delineamento intrasujeito do tipo A-B, sendo A a mensuração em
linha de base (avaliação inicial) e B a mensuração que ocorrem depois da
intervenção (avaliação final) (Lourenço, Hayashi, & Almeida, 2009). Não há
notificação da doença nem registro de pacientes no município de Aracaju-SE,
Brasil, dificultando a seleção dos pacientes e consequentemente um maior
tamanho amostral para esse estudo.
O procedimento de avaliação adotado no estudo visou a descrição e análise do
comprometimento causado pelas afeções aqui discutidas. Os seguintes parâmetros
foram investigados: anamnese, força muscular de MMII, flexibilidade de
isquiotibiais, equilíbrio e centro de gravidade (COG). Para mensuração e
avaliação do quadro clínico, utilizou-se o teste de função muscular: divide-se
o teste em uma escala de seis níveis, ou seja, 5 = normal, ou movimento pleno
com resistência completa; 4 = bom, ou mobilidade total contra gravidade e um
pouco de resistência; 3 = fraco, ou mobilidade completa apenas contra a
gravidade; 2 = contração pobre, possível mobilidade completa apenas sem a ação
da gravidade; 1 = evidência da contração muscular, mas sem movimento e 0 = sem
evidência da contração (Daniels & Worthingham, 1973; Palmer & Epler,
2000).
A flexibilidade foi avaliada através do teste de sentar e alcançar no banco de
Wells: sentar-se sobre o colchonete com as pernas plenamente estendidas e
plantas dos pés contra o banco de Wells. O paciente inclina e se projeta para
frente até onde for possível, deslizando os dedos ao longo da régua. A
distância total alcançada representa o escore final, sendo que são realizadas 3
tentativas de alcance (Wells & Dillon, 1952), as provas de equilíbrio de
Fukuda e Romberg: no primeiro, o paciente marcha, elevando os joelhos
aproximadamente 45° sem deslocar-se, executando 60 passos (um por segundo) com
os braços estendidos e os olhos fechados. São considerados resultados
patológicos se houver deslocamento maior do que 1m e/ou rotação superior a 30°.
Já no segundo pede-se para o paciente permanecer em pé com os pés juntos, mãos
ao lado do corpo e olhos fechados por um minuto (Fukuda, 1959; Khasnis &
Gokula, 2003). Por fim, realizou-se a avaliação do COG através da plataforma
Wii Balance Board® (Figura_1).
Após a anamnese iniciou-se o protocolo de tratamento com o Nintendo Wii® e a
plataforma Wii Balance Board® (Figura_2): 20 sessões com hora de duração cada,
com frequência de três vezes por semana com várias modalidades de jogos
divididas em seis minutos de Super Hula Hoop®, 10 minutos de Peguin Slide®, 10
minutos Table Tilt®, 10 minutos de Tightrope Walk®, 10 minutos de Ski Slalom® e
10 minutos de Tennis®. O tratamento completo teve duração de sete semanas.
Ressalta-se que o nível de dificuldade dos jogos variou de acordo com o limite
imposto pela paciente com a atividade do programa Wii Fit®, ou seja, os níveis
mais complexos das atividades só seriam jogados se a usuária ultrapassasse os
níveis anteriores.
RESULTADOS
Ao exame físico, JBMS apresentou força muscular de membro inferior esquerdo
(MIE), reduzida grau 4 para os músculos glúteo médio, quadríceps femoral,
isquiotibiais, gastrocnémio e tibial anterior. O membro contralateral
apresentou grau de força 5 para todos os grupos musculares conforme teste de
função muscular (Daniels & Worthingham, 1973).
A marcha da paciente caracterizava-se por padrão ceifante devido à discrepância
de força entre os MMII causada pela MRE. A deambulação era realizada com
auxílio de acompanhantes ou bengala. Foi observado dificuldade para realização
de atividades de vida diária (AVD) tais como subir e descer escadas, sentar-se
e levantar-se. Com o tratamento, foi percebido que a marcha da paciente evoluiu
de forma significativa ocorrendo redução da báscula pélvica e maior harmonia na
cadência dos passos.
O IMC, a graduação de força de MIE e flexibilidade no banco de Weels
permaneceram com os mesmos parâmetros. As provas de equilíbrio de Fukuda e
Romberg permaneceram dentro dos valores ditos como normais.
A Tabela_1 apresenta os valores da avaliação inicial e final.
Os efeitos do tratamento utilizando o Nintendo Wii® podem ser observados na
Tabela_2, que apresenta os valores absolutos das atividades utilizadas.
Alterações significativas ocorreram nos escores das atividades. Houve melhora
de desempenho, agilidade e pontuação, com destaque para o Peguim Slide® e o Ski
Slalom® que obtiveram um dos melhores resultados. Além das pontuações do jogo,
a maior alteração observada foi mudança do COG mensurado no Wii Fit®. O COG se
anteriorizou aproximando-o do centro e melhor distribui as cargas em ambas as
pernas, pois no início o mesmo encontrava-se posteriorizado e com ênfase no
MID. Houve melhora da postura ortostática, equilíbrio e consequentemente a
marcha que não precisou mais de bengala ou ajuda.
DISCUSSÃO
Existem evidências de que a fisioterapia contribui para a melhora do quadro
clínico de portadores de mielopatias não traumáticas. No entanto, não está
clara qual abordagem fisioterapêutica deve ser enfatizada (Calis, Kirnap,
Calis, Mistik, & Demir, 2011). Embora o uso de videogames na reabilitação
de indivíduos com doenças neurológicas seja frequente, a inserção desses
dispositivos na reabilitação da MRE ainda é um campo a ser explorado. Esse fato
dificulta a discussão dos achados deste estudo com a literatura corrente e
direciona o confronto de ideias para os experimentos que foram realizados em
pacientes com outras doenças que envolvem o SNC.
A intervenção da RV em sequelas medulares tem apresentado resultados
promissores em relação a interação dos indivíduos com o ambiente, níveis de
desempenho, aumento da motivação e prazer (Kizony, Katz, e Weiss, 2003; Kizony,
Raz, Weingarden, & Weiss, 2005). Shih, Shih, e Chu (2010) demonstraram
resultados efetivos sobre o controle de estímulos e atitude postural em duas
crianças com paralisia cerebral que foram tratadas utilizando-se a plataforma
Wii Balance Board®. Yalon-Chamovitz e Weiss (2008) observaram que a utilização
da RV proporcionou maior grau de satisfação durante a terapia de jovens com
paralisia cerebral.
Para Sung et al. (2005), a satisfação gerada contribui de forma relevante para
a evolução clínica e condicionamento físico dos pacientes. Através de
ressonância nuclear magnética, esses autores concluíram que a RV pode
influenciar a reorganização cortical e recuperação locomotora no acidente
vascular encefálico. Portanto, percebe-se que a inclusão da RV no tratamento
fisioterapêutico poderá possibilitar um ambiente lúdico e potencial para ganhos
funcionais dos pacientes.
O presente estudo corrobora com os relatos da literatura quanto ao desempenho
neuromotor na execução das atividades funcionais do tipo levantar-se, sentar-se
e manter-se em pé. Em 2011 o ensaio de Villinger et al. (2011) mostrou eficácia
no tratamento de seis pacientes com lesão parcial de medula espinhal. Destaca-
se que a RV foi bem aceita pelos usuários, mesmo quando os indivíduos não
estavam familiarizados com a consola, além de que a terapia foi motivadora,
melhorou a função e elevou a concentração do paciente para a realização da
tarefa. Os autores demonstraram que o tratamento estimulou a atividade neuronal
cortical.
Clark et al. (2010) comparou dados da Wii Balance Board® com a plataforma de
força e obteve resultados promissores entre os dois. Os resultados da Wii
Balance Board® permitiram monitorização confiável das alterações de equilíbrio
dos indivíduos. Shih et al. (2010) descreve a Wii Balance Board® como uma
ferramenta atuante na correção da postura em pé além de mensuração do COG e
massa corporal. Esta plataforma mostrou ser uma ferramenta portátil, de baixo
custo e que apresenta resultados satisfatórios para a avaliação de equilíbrio
estático e dinâmico.
Os resultados positivos obtidos através dos escores dos jogos do Wii
provavelmente estão relacionados aos estímulos que simulam atividades dinâmicas
similares àquelas necessárias no quotidiano da voluntária. Os jogos utilizados
envolviam força das cadeias anteriores e posteriores de membros inferiores e
tronco e posturas que se assemelhavam à atividade de levantar-se e sentar-se.
Supõe-se que o treino contínuo aliado à retroalimentação estimulada durante a
terapia, possa ter contribuído para melhora da funcionalidade da marcha,
transferências de posturas e confiança para a realização da tarefa da
voluntária (Baram, 2013).
Ao comparar os valores iniciais e finais apresentados na tabela_1, observa-se
uma redução de aproximadamente 50% no tempo de execução da atividade Ski
Slalom®. É uma atividade que simulou a postura do esqui, ou seja, o indivíduo
realizou flexão de joelhos e quadris além fazer oscilações laterais; isso
contribuiu diretamente no ganho de equilíbrio e harmonia do movimento da
paciente, além de melhorar as atividades de sentar-se e levantar-se. Já a
atividade Penguin Slide® obteve um aumento de 33.5% na pontuação, a atividade
priorizou o equilíbrio dinâmico e oscilações posturais, mesmos quesitos que
evoluíram na funcionalidade da paciente.
Além disso, a paciente obteve uma melhora no desempenho graças ao feedback
visual, auditivo e propriocetivo exigido pelos jogos. Há uma autoexigência do
usuário para sempre superar suas marcas e vencer os desafios. Outra vantagem em
utilizar a gameterapia é que é uma terapia simples de usar, que não exige um
alto grau de treino e as consolas atuais tornam-se cada vez mais acessíveis no
mercado, possibilitando sua implementação em clínicas e laboratórios (Betker,
Szturm, Moussavi, & Nett, 2006; Betker, Desai, Nett, Kapadia, & Szturm,
2007).
Uma das limitações do presente estudo é que se trata de um relato de caso e,
portanto não se pode afirmar que os resultados obtidos possam ser reproduzidos
para todos os pacientes com MRE. Contudo, várias características da RV podem
assegurar que os resultados podem ser realmente promissores nos casos de MRE, o
caráter lúdico, por exemplo, evita a monotonia que muitos pacientes
experimentam na fisioterapia convencional.
CONCLUSÕES
Há um amplo campo na descoberta e tratamento de portadores de MRE. Apesar de
ser um estudo de caso, observa-se que o uso da RV resultou efeitos promissores
para o tratamento de sequelas neurológicas ocasionadas pela MRE. A plataforma
Wii Balance Board® se mostrou uma ferramenta de baixo custo e com resultados
satisfatórios na reabilitação neuromotora de uma paciente com MRE.