Procedimento de Latarjet artroscópico: Indicações, técnica e resultados
INTRODUÇÃO
A estabilidade do ombro é o resultado de uma interação complexa entre
restrições estáticas (predominantemente capsuloligamentares, ósseas e labral) e
dinâmicas (neuromusculares) do ombro. Lesões destas estruturas manifestam-se
como um espectro de patologias clínicas que vão desde instabilidade/subluxação
subtil à luxação glenoumeral. Estas patologias ocorrem com frequência em
atletas, com picos nas segunda e sexta décadas de vida [1].A maioria (98%) das
luxações traumáticas são anteriores, sendo frequente a recorrência,
principalmente na população adolescente [2,3,4].
Os dois pilares no tratamento cirúrgico da instabilidade recorrente anterior do
ombro têm sido:
• O procedimento de Latarjet por via aberta
• A reparação de Bankart por via artroscópica O uso da artroscopia tem
permitido o diagnóstico de muitas lesões dos tecidos moles e lesões ósseas (da
glenoide e cabeça do úmero) [5,6] subjacentes a muitos casos de instabilidade
do ombro. A reparação de Bankart por via artroscópica tem demonstrado ótimos
resultados, quando usada no tratamento de lesões isoladas de Bankart, sem
atingimento ósseo[7,8]. No entanto, apesar da evolução da técnica e dos
instrumentos cirúrgicos, existe ainda uma taxa não desprezível de recorrência
de luxação associada a esta técnica, geralmente quando não é tratada a causa
subjacente à instabilidade patológica [9]. Os casos mais comuns estão
associados a lesões mais extensas, tais como:
1) Lesão de Bankart Óssea (fratura da porção antero-inferior da glenoide)
[10,11,12]
2) Lesão de Hill Sachs (lesão osteocondral na região póstero-superior da cabeça
do úmero,secundária a impactação no rebordo glenoideu, presente em 80% das
luxações traumáticas)
3) Humeral avulsion of the glenohumeral ligament (HAGL) [13]
4) Glenoid labral articular defect (GLAD - lesão de uma porção de cartilagem
articular, juntamente com o labrum) [14]
5) Anterior labral periosteal sleeve avulsion (ALPSA)
A taxa de recorrência após a cirurgia é maior nestes casos, especialmente
quando se tratam de pacientes jovens (<20 anos) ou envolvidos em desportos de
contato ou de arremesso [15,16,17]. Os fatores de risco mais importantes,
associados a até 75% de instabilidade recorrente, após a cirurgia de Bankart,
são três: perda óssea na glenoide, perda óssea na cabeça do úmero e
hiperlaxidez ligamentar inferior. Nestes casos, uma abordagem diferente, que
aborda a causa subjacente da instabilidade, deve ser considerada.
Por outro lado, o procedimento de Latarjet aberto tem demonstrado boa
reprodutibilidade dos resultados[18,19,20,21,22]. Como seria de esperar, o
próximo passo seria encontrar um modo de combinar os bons resultados do
procedimento de Latarjet aberto, com as vantagens diagnósticas e terapêuticas
de um procedimento minimamente invasivo, como é a artroscopia.
PROCEDIMENTO DE LATARJET
Latarjet descreveu [23], em 1954, um procedimento em que a parte horizontal da
apófise coracoide era transferida para a margem antero-inferior da glenoide,
para a posição entre as 2 e 6 horas (Figura_1). Neste procedimento, a parte
superior do subescapular era desinserida. Com o tempo, o procedimento foi
modificado de modo a colocar o enxerto através de uma divisão horizontal no
subescapular, fixando-o com 2 parafusos.
Os bons resultados do procedimento de Lataret têm sido associados com o chamado
efeito de triplobloqueio [24]. Este efeito é obtido através: (i) da
reconstrução óssea da glenoide anterior (aumento do arco articular da glenoide,
o que impede o contacto de uma lesão de Hill-Sachs com a borda ântero-inferior
da glenoide), (ii) da nova posição do tendão conjunto, através da divisão do
subescapular, tensionando este músculo em abdução e rotação externa,
proporcionando estabilidade dinâmica, (iii) da cápsula poder ser suturada ao
ligamento coracoacromial restante na coracoide. A vantagem de um procedimento
de Latarjet sobre um bloco ósseo livre é dada pelo efeito de banda elástica do
tendão conjunto sobre o músculo subescapular [25]. Este efeito estabilizador é
dinâmico, já que aumenta em rotação externa, à medida que a tensão aumenta na
parte inferior do subescapular. O procedimento inicial de Bristow consistia
simplesmente na sutura da extremidade da apófise coracoide ao ventre muscular
do subescapular [26]. Mais tarde evoluiu para a fixação com um único parafuso
da apófise coracoide, na posição de pé, à glenoide. No procedimento de
Latarjet, a apófise coracoide é fixa numa posição deitada, de modo que a forma
natural da apófi se coracoide acompanha a forma curva da glenoide. Além disso,
a fixação com dois parafusos permite uma maior área de contato ósseo e
estabilidade rotacional, promovendo a cicatrização óssea. Outra vantagem do
procedimento de Latarjet é a de permitir uma reabilitação pós-operatória
acelerada.
VANTAGENS DO PROCEDIMENTO DE LATARJET ARTROSCÓPICO
Como descrito anteriormente, a evolução natural do tratamento cirúrgico da
instabilidade anterior recidivante do ombro seria combinar os bons resultados
do procedimento de Latarjet, com as vantagens da cirurgia artroscópica. As
principais vantagens do procedimento de Latarjet artroscópico são:
1. Posicionamento mais preciso do enxerto ósseo - vários pontos de vista
artroscópicos permitem uma melhor colocação do enxerto, controlando o possível
impingement.
2. Tratamento das lesões associadas - a presença de outras lesões (como lesões
SLAP), é tratada de melhor forma artroscopicamente.
3. Presença de Instabilidade Posterior - o uso de blocos ósseos para tratar a
instabilidade posterior pode ser feito durante o mesmo procedimento
artroscópico, evitando o uso de uma abordagem diferente.
4. Aderências e rigidez articular - a frequência destas complicações
diminui nos procedimentos artroscópicos.
5. Manutenção do procedimento por via artroscópica - Se durante a artroscopia a
qualidade dos tecidos moles não permitir a realização de uma reparação de
Bankart, a mudança para o procedimento de Latarjet pode ser realizada, sem ser
necessário converter para cirurgia aberta.
6. Cirurgia minimamente invasiva - procedimentos artroscópicos têm menos
dor pós-operatória, mobilidade mais precoce, reabilitação e regresso mais
rápido à prática desportiva.
7. Estética - com procedimentos artroscópicos o resultado estético final é
melhor.
INDICAÇÕES
Como discutido anteriormente, as indicações para um procedimento de Latarjet
artroscópico, nos casos de instabilidade recorrente anterior do ombro,
tornaram-se mais claros com o tempo. É essencial a realização de uma história
clínica e exame físico adequados, de modo a caracterizar o tipo de
instabilidade. Além disso, um estudo radiográfico e com Artro CT/RMN deve ser
sempre realizado, para melhor compreensão da lesão anatómica subjacente[27,28]
. As indicações são:
Perda óssea
Glenoide - Nesta situação, uma de duas lesões estátipicamente presente: uma
avulsão óssea de Bankart ou uma fratura do bordo anteroinferior da glenoide. As
lesões características no raios-x anteroposterior padrão são: fratura ou perda
do contorno/densidade diminuída do rebordo da glenoide entre a posição das 3 e
6h. Este tipo de lesão pode também ser avaliada com uma incidência axilar/
Bernageau. O TAC é essencial para avaliar a perda óssea [29], especialmente com
a reconstrução 3D. A quantidade de perda óssea da glenoide também pode ser
avaliada artroscopicamente [30], medindo a distância entre o bare spot e o
rebordo glenóideu. O potencial de cicatrização de um fragmento de osso
necrótico após a redução pode ser diminuto[31], assim como a taxa de falência
de um procedimento de tecidos moles isolado é elevada, quando há perda óssea
signifi cativa. Nestes casos, uma reconstrução óssea pode ter melhores
resultados, restaurando o arco articular corretamente. Úmero - É essencial a
avaliação artroscópica da presença, localização e tamanho de uma lesão de Hill-
Sachs, capaz de reduzir o arco articular e promover o encravamento da lesão na
glenoide.Dois procedimentos cirúrgicos estão disponíveis, para o tratamento
desta lesão. A remplissage [32], realizada com cápsula posterior e
infraespinhoso, pode promover o aumento das forças de contato na articulação
durante a rotação externa, bem como limitar este movimento. A utilização de um
bloco ósseo aumenta o arco glenoideu anterior, permitindo uma melhor rotação
externa antes do encravamento da lesão e, portanto, não aumenta a pressão de
contato articular.Glenoide e Úmero - É comum a existência destas duas lesões
simultaneamente. A avaliação dinâmica artroscópica é essencial para determinar
as consequências da sua presença. Normalmente, um procedimento com bloco ósseo
é a melhor solução.
Lesões de Tecidos Moles Major/Combinadas
Uma lesão por vezes presente na instabilidade anterior recidivante do ombro é a
lesão HAGL. O diagnóstico é frequentemente realizado artroscopicamente. A
maioria das séries de reparação artroscópica direta são pequenas e têm curtos
período de seguimento. A rigidez é uma complicação comum após estes
procedimentos, e mesmo se macroscopicamente o ligamento glenoumeral parece não
ter mudanças significativas, em casos de instabilidade recorrente, a qualidade
do tecido é geralmente má, assim como os resultados da reparação. Portanto, um
procedimento com bloco ósseo apresenta melhores resultados.
Cirurgia de revisão
Quando uma reparação de Bankart falhou, devem ser investigadas as razões
anatómicas relacionadas com esta falha, já anteriormente discutidas. No
entanto, muitas séries têm mostrado bons resultados a médio prazo, em pacientes
que mudaram para um estilo de vida menos ativo após o procedimento. Nestes
casos, a taxa de recorrência aumenta após 5-7 anos, provavelmente porque a
lesão anatómica subjacente ao problema não foi corrigida no primeiro
procedimento. Normalmente, lesões associadas a stock ósseo diminuído podem ser
reparadas com um procedimento com bloco ósseo.
Estilo de vida
Pacientes com estilos de vida ativos, especialmente os envolvidos em trabalhos
manuais ou desportos de contacto/arremesso, têm melhores resultados quando
tratados com um procedimento com bloco ósseo, devido à alta exigência física a
que submetem o ombro, muitas vezes em posições não-fisiológicos da articulação
gleno -umeral. A baixa taxa de recorrência e um rápido regresso à atividade são
as principais vantagens deste procedimento.
TÉCNICA CIRÚRGICA
Desde 2003, ano em que foi realizado pela primeira vez, o procedimento de
Latarjet artroscópico já percorreu um longo caminho. O que demorava quase
quatro horas no início, não demora mais de 45 minutos atualmente, com o
desenvolvimento de um kit especial de ferramentas, que tornou esta técnica
sistemática e reprodutível. A conversão para um procedimento aberto pode ser
facilmente realizada em qualquer momento, utilizando os mesmos instrumentos. O
procedimento foi dividido em 5 etapas principais, conforme apresentado a seguir
[33,34].
1. Avaliação da articulação e exposição
A abordagem intra-articular começa através do soft spot posterior habitual
(portal A). Através do portal E, estabelecido com a técnica outside-in, uma
sonda é introduzida pelo intervalo dos rotadores. Os portais anteriores podem
ser visualizados na Figura_2. É realizada a avaliação da estabilidade dinâmica,
e as estruturas internas (pesquisa de defeitos da glenoide/úmero, HAGL, etc)
são avaliados com a sonda.
Abertura do intervalo dos rotadores e exposição de ambos os lados do
subescapular.
A articulação glenoumeral é aberta na borda superior do subescapular (Figura
3), e o eletrocautério é utilizado para ressecar o labrum ântero-inferior e o
ligamento glenoumeral médio entre as 2-5h, de modo a expor o colo da glenoide.
O local pretendido para a colocação do enxerto é marcado, e a cápsula entre o
colo da glenoide e o subescapular é aberta. De modo a permitir um leito
propício à cicatrização do enxerto, o colo da glenoide é cruentado com o
shaver. Ambos os lados do tendão do subescapular são então expostos, com
particular atenção para o lado articular do subescapular. Estas libertações são
necessárias para facilitar a transferência do enxerto coracoide. Qualquer outra
patologia intra-articular pode ser tratada nesta fase, como por exemplo a
reparação de uma lesão tipo SLAP. Se o ligamento glenoumeral inferior ou labrum
posterior estão danifi cados, poderão ser reparados com âncoras de sutura. A
preparação intra-articular está então concluída, podendo passar-se para a
preparação extra-articular.
Preparação dos tecidos moles da coracoide
O ligamento coracoacromial é localizado e seguido até à coracoide, onde é
destacado. A porção anterior do tendão conjunto é libertada da fáscia, na face
profunda do deltoide; a face lateral do tendão conjunto é libertada, sendo o
limite inferior o tendão do peitoral maior. Atrás do tendão conjunto existe uma
barreira medial de tecido que separa o plexo braquial da bursa subcoracóide.
Esta barreira é aberta, de modo a revelar os nervos para o subescapular;
prosseguindo a disseção em sentido inferior é exposto o nervo axilar. A
visualização destas estruturas nervosas é relevante, no sentido de programar
alguns portais futuros. Os restantes tecidos moles ligados à coracoide e à
bursa são dissecados, libertando a coracoide para a sua transferência
posterior. O artroscópio é movido do portal posterior A para o portal
anterolateral D, permitindo uma melhor visualização das estruturas anteriores.
Este portal é 1 cm inferior e lateral à extremidade antero-lateral do acrómio
e, novamente, é estabelecido através de uma técnica de outside-in.
2. Divisão do subescapular
Estabelecer o portal I no ápice da prega axilar.
Este portal dá acesso à face anterior do colo da glenoide, na direção correta
para colocação dos parafusos com o enxerto. É introduzida uma agulha no ápice
da prega axilar anterior e, sob visão direta,a agulha é passada lateralmente ao
tendão conjunto e superiormente ao subescapular. A agulha é colocada no colo
da glenoide, no local do enxerto, sendo então feita uma incisão de 2 cm na pele
para o portal I.
Determinar o nível da divisão do subescapular
O switching stick é inserido através do portal A e passado através da
articulação glenoumeral ao nível do defeito na glenoide. Em seguida, é avançado
através do subescapular, estabelecendo o nível da divisão. O tendão conjunto e
o plexo são retraídos medialmente, de modo a prevenir lesões neurológicas. O
switching stick afasta o tendão conjunto e o plexo medialmente, à medida que
penetra o subescapular.
Estabelecer o portal J
Este portal é colocado sensivelmente a meio de um arco entre os portais I e D,
usando uma técnica outside-in. Permite uma visão direta sobre a coracoide,
enquanto o portal D dá uma melhor visão lateral. Estes dois portais permitem
uma visualização em planos perpendiculares da coracoide, sendo necessários para
uma preparação ideal desta estrutura.
Divisão do subescapular
O subescapular é elevado com o switching stick, o eletrocautério é introduzdo
através do portal J, iniciando-se a divisão (Figura_4). O artroscópio é mudado
para o portal J e o eletrocautério para o portal I, para completar a divisão. A
divisão é completada até ao colo da glenoide, na direção das fibras do
subescapular, estendendo-se a partir da inserção lateral do subescapular na
tuberosidade menor, passando medialmente perto do nervo axilar. Neste ponto,
pode ser colocado um enxerto de crista ilíaca, no caso de se tratar de uma
cirurgia de revisão, uma vez que a divisão do subescapular foi realizada e o
colo da glenoide está exposto.
3. Colheita do enxerto de coracoide
Neste ponto, o artroscópio é introduzido no portal J e o eletrocautério no
portal I. É colocado um trocar no portal D e elevado o espaço acima da
coracoide, de modo semelhante à utilização de um afastador na cirurgia aberta.
Definir o portal H
O portal H é necessária para permitir o acesso de instrumentos à porção
superior da coracoide. Duas agulhas são colocadas para localizar a extremidade
e a porção média da coracoide (Figura_5). Em seguida, o artroscópio é rodado,
de modo a dar uma visão perpendicular da coracoide e garantir o alinhamento
correto das agulhas; será assim possível orientar a posição do guia de brocas
para a coracoide. Realiza-se então uma incisão superior para o portal H. O
tendão do peitoral menor, no bordo medial da coracoide, é agora desinserido,
tendo o cuidado de permanecer junto ao osso ao nível da coracoide (Figura
6).Inferiormente, o tendão conjunto pode ser libertado medialmente usando
dissecção romba, tendo especial cuidado para evitar lesões do nervo
musculocutâneo e do plexo. Após esta dissecção e visualização da posição das
estruturas nervosas, é possível considerarque a região lateral ao tendão
conjunto é "segura".
Perfuração do coracoide
É importante alterar regularmente o ângulo de visão do artroscópio, através da
rotação deste, de modo a garantir o alinhamento latero-medial do guia de brocas
para a coracoide. O guia é colocado na junção dos dois terços laterais com o
terço medial da coracoide; é efetuado um furo (inferior e distal) com um fio de
Kirschner (K). É importante manter a visualização sob a coracoide, de modo a
verificar se a direção dos fios K é perpendicular à superfície superior da
coracoide e evitar penetrar muito profundamente o subescapular. O guia de
furagem da coracoide é alinhado rotacionalmente, em redor do fio α, e o fio de
K é inserido no orifício β?(proximal) (Figura_7). É removido o guia de furagem
e verificadas as posiçõesdos fios com o artroscópio nos portais D e J. Realiza-
se então a brocagem de ambos os orifícios e removem-se os fios de K.
Inserção dos top hats
Os furos são tradados para preparar a coracoide para os top hats e parafusos da
glenoide (5.0/3.5 mm). Os trados são canulados e permitem a introdução do fio
Chia flexível. Este fio é passado através de furos roscados na coracoide e
exteriormente através do portal H. Permite a introdução dos top hats e também,
posteriormente, controlar a transferência da coracoide entre portais. Os top
hats são então inseridos ao longo do fi o Chia (Depuy Mitek), e um plug é
colocado no portal H para evitar a saída de soro (Figura_8). O channeler
subescapular (Depuy Mitek) é, nesta fase, introduzido no portal I, através
dosubescapular, em direção ao colo da glenoide, no local pretendido para o
enxerto. Deste modo é avaliado se a recessão de tecidos moles foi adequada para
permitir a transferência da coracoide para o colo de glenoide.
Recuperação dos fios Chia através do portal I
A coracoide acabará por ser transferida a partir do portal I e, como tal, os
fios Chia devem ser transferidos para esse portal. São utilizados ganchos
crochet através da cânula de posicionamento da coracoide (Depuy Mitek), na
portal I axilar, para recuperar os fios Chia (Figura_9). Uma vez recuperados,
são colocados slotted pegs canulados sobre os dois fios Chia, de modo a evitar
a saída de soro através da cânula.
Osteotomia da Coracoide
Estando a coracoide preparada, é possível realizar a osteotomia. A broca é
utilizada na face superior, inferior e lateral da coracoide, proximalmente ao
orifício β. A face medial do local da osteotomia pode ser completada através do
portal H. O osteótomo é então colocado no portal H, e uma osteotomia controlada
é realizada (Figura_10).
4. Transferência da Coracoide
A posição do enxerto deve ser controlada, através do seu posicionamento na
cânula coracoide. Isto é conseguido através da colocação de tração suave em
ambos os membros do fio Chia (Figura_11) passando depois o parafuso 3,5 sobre
os fios Chia. Os parafusos avançam através dos top hats e da coracoide. Nesta
fase a coracoide está segura na cânula.
Regularização do Enxerto
O enxerto recém-colhido está mobilizado, e todas as aderências restantes do
peitoral menor a fáscia medial são removidos. Uma atenção especial deve ser
dada de modo a evitar lesões do nervo musculocutâneo, durante esta fase do
procedimento. O enxerto de coracoide geralmente tem um spike medial (originário
da sua base) que deve ser cortado para permitir o contacto com a glenoide. O
assistente segura o artroscópio e o cirurgião, usando uma técnica de duas mãos,
orienta o enxerto com a cânula com uma mão e regulariza-o com o shaver com a
outra mão. Idealmente, o shaver é mantido fixo, enquanto a coracoide é
manipulada em torno do shaver ,minimizando os riscos de lesão do plexo
braquial. O enxerto está então pronto para a transferência e fixação à
glenoide. A coracoide é transferida com a cânula (portal I) para o colo da
glenoide. Esta manobra é facilitada pela elevação da divisão do subescapular
com o switching stick.
5. Fixação da Coracoide
Uma vez colocado o enxerto no colo da glenoide, na posição desejada, a fixação
é realizada (Figura_12). Dois fios longos K são inseridos através da cânula de
posicionamento da coracoide, passando pelo enxerto e pela glenoide, de modo a
ganhar fixação temporária. A omoplata deve ser puxada posteriormente pelo
assistente, utilizando uma gaveta posterior sobre o braço, para diminuir a
anteversão relativa da glenoide. A cânula deve ser empurrada medialmente para
garantir a angulação mínima entre os fios K e a superfície da glenoide. Estes
fios vão perfurar a pele posterior do ombro, sendo colocado um clip sobre eles.
A posição do enxerto é verifi cada a partir de portais diferentes para garantir
a melhor orientação vertical e horizontal, sendo o ideal entre as 3-5h,
nivelado com a glenoide.
Brocagem e fixação com parafusos do enxerto
O parafuso de 3,5 (inferior) é removido, e a broca 3,2 é passada ao longo do
fio K. O comprimento definitivo do parafuso pode ser lido a partir do medidor
de profundidade na broca. É retirada a broca (o fio K permanece) e colocado o
parafuso no buraco α (Figura_13). A mesma ação é repetida para o buraco β, após
o que os parafusos inseridos são apertados alternadamente para comprimir o
enxerto contra o colo da glenoide. Os fios de K pode então ser removido por via
posterior.
Verificações finais
A posição do enxerto e dos parafusos é verificada através dos portais D, J e A
(Figura_14), e qualquer ajuste final pode ser realizado nesta fase com o
shaver.
Pós-operatório
No pós-operatório, os pacientes não necessitam de imobilização, sendo
permitidos movimentos ativos imediatamente. Podem regressar ao trabalho logo
que a dor o permita, e aos desportos de baixo risco às 3 semanas. Para
desportos de alto risco (contacto/ arremesso), é recomendável aguardar 6
semanas (Figuras_15 e 16).
RESULTADOS
Os resultados de 100 procedimentos de Latarjet artroscópico foram publicados em
2010 [34]. Os procedimentos foram realizados entre dezembro de 2003 e maio de
2008, sendo os dados colhidos prospectivamente. A coorte tinha 98 pacientes (46
ombros direitos e 54 ombros esquerdos). O rácio entre homens e mulheres foi de
4:3, e a média de idades dos pacientes foi de 27,5 anos (variação, 17-54
anos).88% dos pacientes praticavam desporto (55% de alto risco, 15% desportos
de contato e 11% desportos de arremesso), 38% destes a um nível competitivo.
Todos os pacientes tinham sofrido luxações anteriores do ombro (1-3 episódios
em 40%, 4-10 em 50% e mais de 10 em 10%); 97% das luxações foram traumáticas.
Tinham sido realizadas anteriormente reparações de Bankart em 15% dos
pacientes. O tempo médio desde a luxação inicial até ao procedimento de
Latarjet foi de 54 meses (variação de 1 mês-20 anos). A avaliação radiográfica
revelou lesões de Hill Sachs em 89% dos ombros e 25% tinham evidência de uma
fratura da glenoide.
Todos os procedimentos foram realizados pelo mesmo cirurgião (Laurent Lafosse).
O tempo operatório diminuiu de 4 horas nos primeiros procedimentos para uma
média de 45 a 50 minutos. Na avaliação artroscópica, 7% dos pacientes tinham
lesões intra-articulares associadas (6 SLAP, 1 lesão de Bankart posterior) que
foram tratadas no mesmo procedimento. Dois parafusos foram necessários para a
fixação da coracoide em 93% dos ombros e um parafuso foi utilizado em 7%.
Aos 18 meses, 62 pacientes estavam disponíveis para revisão clínica, dos quais
27 foram entrevistados através de contacto por telefone, sendo realizado um
questionário estruturado; 11 pacientes foram perdidos para follow-up. No
follow-up clínico aos 18 meses, 80% dos pacientes descreveram o seu resultado
como excelente e 18% como bom; 2% ficaram desapontados com o resultado. Todos
os pacientes retomaram a sua atividade laboral em média aos dois meses após a
intervenção (intervalo de 7 dias-4 meses), retomando a atividade desportiva em
média às 10 semanas (intervalo de 21 dias-6 meses).
Aos 26 meses, os resultados relatados pelos pacientes revelaram 91% de
pontuações excelentes e 9% boas, em 35 pacientes disponíveis para avaliação. A
amplitude de movimento demonstrou uma perda média de rotação externa de 18 º,
quando o lado oposto (64 º) foi comparada com o ombro operado (46 º).
Foram avaliadas evidências radiográficas de artrose, sendo efetuada uma
comparação com exames pré-operatórios, de acordo com critérios estabelecidos
por Samilson e Prieto [35]. 11% dos pacientes tinham progredido um grau no
estadiamento: 24 pacientes (69%) estavam no estadio 0; 9 (26%) no estadio 1; 2
(6%) estavam no estadio 2.
A posição do enxerto de coracoide foi avaliada através de tomografia
computorizada. O enxertoencontrava-se nivelado com a glenoide em 80% dos casos,
foi colocado medialmente em 8%, e houve desvio lateral em 12%. O posicionamento
vertical era perfeito em 78% dos casos (3 a 5 horas), muito alto em 7%, e muito
baixo em 5%. O ângulo dos parafusos em relação à face da glenoide foi em média
de 29 º (variando de 2º-50º). As complicações perioperatórias incluiram 2
hematomas, uma fratura intraoperatória do enxerto, e uma paralisia do nervo
musculocutâneo transitória, que recuperou totalmente.
As complicações tardias incluiram 4 casos de não união do enxerto à glenoide e,
destes quatro casos, dois tinham sido fixados com apenas um parafuso. Três
ombros apresentaram lise em torno dos parafusos, levando a proeminência do
enxerto. Quatro pacientes necessitaram de remoção artroscópica do parafuso. Não
houve casos de luxação recidivante.
CONCLUSÕES
A Cirurgia do Ombro tem evoluído muito nos últimos 20 anos. O que inicialmente
era considerado por alguns como uma cirurgia com resultado muito pouco
satisfatório para o paciente, tornou se agora um campo sofi sticado e complexo
em ortopedia, que proporciona excelentes resultados para o paciente, nas
patologias do ombro mais comuns.
Com o advento da artroscopia na cirurgia do ombro, com todas as suas vantagens,
surgiu uma tendência inicial de tratar a maioria dos casos de instabilidade
anterior recorrente com reparações de Bankart por via artroscópica. Isto
significou que procedimentos como o Latarjet foram deixados de lado
temporariamente por alguns cirurgiões do ombro. No entanto, com o seguimento
cuidado dos pacientes, foi possível constatar que em muitos casos onde existia
perda óssea (da glenoide e/ou úmero), lesões complexas de tecidos moles (por
exemplo, HAGL), ou atividade intensa do paciente, os resultados da reparação de
Bankart não se revelaram tão bons quanto se poderia desejar. O próximo passo
foi tentar unir as vantagens da cirurgia artroscópica com um procedimento como
o de Latarjet, que tinha provado no passado ter bons resultados nos casos acima
mencionados.
O Procedimento de Latarjet Artroscópico tem demonstrado excelentes resultados.
No entanto, é um procedimento complexo, tecnicamente exigente, com uma curva de
aprendizagem íngreme e longa.Isso deve ser levado em consideração, ao escolher
o tratamento adequado para o paciente.