Reinserção artroscópica do supra-espinhoso: O que fazer com a longa porção do
bicípite braquial? Estudo prospetivo de 42 doentes
INTRODUÇÃO
A lesão da longa porção do bicípite braquial, associada à rotura da coifa dos
rotadores, é muito frequente, podendo ocorrer em 76% dos casos[1]. Esta lesão
determina queixas que se confundem com a apresentação clínica da rotura da
coifa, com dor anterior e perda de elevação do ombro[2]. Na presença de
patologia da longa porção do bicípite, tal como uma rotura parcial, ou uma
lesão em vidro de relógio, a decisão de intervir com uma tenotomia ou tenodese
é relativamente consensual. Contudo, no contexto de uma rotura da coifa dos
rotadores, a decisão de tenotomizar ou tenodesar a longa porção do bicípite
continua a ser baseada na experiência clínica sem evidência[3]: o mecanismo
patológico que determina a lesão da longa porção do bicípite não está
esclarecido, e não se sabe se as alterações da longa porção do bicípite poderão
melhorar após a reparação da coifa dos rotadores.
Estudos recentes, realizados em modelos animais (ratos)[4], demonstraram que o
mecanismo para a patologia da longa porção do bicípite braquial, na presença de
uma rotura da coifa dos rotadores, poderá ser o aumento da carga compressiva
distalmente à sua inserção óssea proximal e que, uma vez removida essa carga,
há uma melhoria da histologia, organização e composição do tendão. À luz destes
resultados, pode-se por a hipótese de que a reinserção da coifa dos rotadores,
ao repor a biomecânica do ombro, pode favorecer a reversão da evolução
patológica da longa porção do bicípite braquial, deixando de haver justificação
para concomitantemente realizar um gesto sobre a longa porção do bicípite
braquial. Contudo, pode-se, também, por a hipótese de que a reinserção do
supra-espinhoso nunca reporá fielmente a biomecânica natural do supra-
espinhoso, logo a carga sobre a porção intra-articular da longa porção do
bicípite braquial nunca será a natural, e a causa da patologia da longa porção
do bicípite braquial podese perpetuar, podendo determinar um mau resultado
funcional global do ombro, apesar da reposição da integridade do supra-
espinhoso. Justificar-se-ia, assim, a decisão de realizar um gesto sobre a
longa porção do bicípite concomitantemente (tenotomia ou tenodese),
independentemente de esta apresentar sinais patológicos macroscópicos.
Quanto ao tipo de gesto na longa porção do bicípite, vários estudos têm tentado
demonstrar as vantagens da tenotomia sobre a tenodese[2]: gesto tecnicamente
mais fácil e rápido, bem tolerado, produzindo menos dor bicipital, em média de
19%[5]; ou as vantagens da tenodese sobre a tenotomia: maior razão tendão/
falência sob carga, menor incidência de sinal de Popeye, menor incidência de
diminuição da força de flexão e supinação do cotovelo, requerendo menos
reabilitação pos-operatória, com um retorno mais rápido à atividade física.
Contudo, ainda não há consenso na literatura, nem há estudos prospetivos
conclusivos que analisem especificamente a repercussão, no resultado funcional
global do ombro, do gesto na longa porção do bicípite na reinserção do supra-
espinhoso. Perceber se há repercussão do gesto na longa porção do bicípite
braquial no resultadofuncional global do ombro pode ajudar o cirurgião na sua
decisão.
O objetivo deste estudo foi avaliar se, na reparação artroscópica do supra-
espinhoso, o gesto na longa porção do bicípite braquial (nenhum gesto,
tenotomia ou tenodese) tem repercussão no resultado funcional global do ombro,
na frequência de sinal de Popeye e de dor bicipital, e no grau de satisfação do
doente.
MATERIAL E MÉTODOS
Todos os pacientes deram consentimento informado por escrito, antes de serem
operados, compreendendo os riscos e benefícios dos procedimentos, tendo sido
informados que os seus dados clínicos seriam utilizados para investigação.
Desenho do estudo
Desenhou-se um estudo prospetivo comparativo do resultado global funcional dos
ombros submetidos a reinserção artroscópica do supra-espinhoso, em que a
decisão de realizar nenhum gesto sobre a longa porção do bicípite, versus
tenotomia, versus tenodese, seria tomada intraoperatoriamente, através da
integração de um conjunto de critérios: idade do doente, tipo de profissão,
grau de obesidade do braço, patologia associada do complexo bicípite-labrum,
sinais macroscópicos de lesão da longa porção do bicípite, lesão associada do
subescapular, avaliação artroscópica glenoumeral de ausência de conflito
dinâmico entre a longa porção do bicípite braquial e o supra-espinhoso
reinserido.
Seleção dos doentes
Os critérios de inclusão do estudo foram: doentes consecutivos, com diagnóstico
pré-operatório de rotura da coifa dos rotadores, programados para operar pelo
primeiro autor, de 1 de dezembro de 2008 a 31 outubro de 2010, e submetidos a
reinserção artroscópica da rotura do supra-espinhoso. Os critérios de exclusão
foram doentes programados para reparação de rotura da coifa com: cirurgia
prévia do ombro; fratura proximal do úmero; rotura da coifa em que o supra-
espinhoso não foi reinserido(reinserção do subescapular e tenotomia ou tenodese
da longa porção do bicípite braquial, associada a desbridamento de rotura
parcial do supra-espinhoso, ou rotura maciça irreparável da coifa dos
rotadores). Em 86 doentes programados para operar com o diagnóstico de rotura
da coifa dos rotadores, foram incluídos no estudo os 42 doentes em que foi
realizada a reinserção artroscópica do supra-espinhoso, e foram excluídos de
integrar o estudo 44 doentes (3 doentes para revisão de reparação de rotura da
coifa dos rotadores; 1 doente para reinserção do supra-espinhoso, com cirurgia
prévia do ombro; 31 doentes com rotura parcial do supraespinhoso tratada por
desbridamento; 3 doentes com rotura do subescapular reinserida, associada a
rotura parcial do supra-espinhoso tratada por desbridamento, e tenodese ou
tenotomia da longa porção do bicípite braquial; e 6 doentes com rotura maciça
irreparável da coifa dos rotadores tratada por desbridamento da coifa, e
tenodese ou tenotomia da longa porção do bicípite braquial).
Técnica cirúrgica
Os doentes foram operados sob anestesia geral, em posição de semissentado, com
utilização de sistema de tração com 3 Kg, com o ombro entre 45º e 60º de
elevação, por via artroscópica glenoumeral e subacromial. As roturas do supra-
espinhoso e do subescapular foram reinseridas com suturas não reabsorvíveis
(polietileno número 2) em monofileira de âncoras reabsorvíveis (âncoras de
poli-L-ácido láctico, PLLA, em 40 casos) ou de âncoras não reabsorvíveis
(âncoras de poli-eter-eter-cetona, PEEK, 2 casos). A tenodese da longa porção
do bicípite realizada foi intra-articular, com fixação por sutura não-
reabsorvível (polietileno número 2) de uma âncora reabsorvível de 5mm de
diâmetro de PLLA implantada na goteira umeral do bicípite, numa posição
suficientemente distal à cartilagem articular da cabeça umeral para não gerar
conflito intra-articular do coto. A sutura à âncora (Figura_1) foi realizada
com uma passagem de uma linha da sutura através da longa porção do bicípite
braquial, seguida de uma passagem circunferencial da mesma linha de sutura em
torno da longa porção do bicípite braquial, antes de serem dados os nós (um nó
de correr, tipo fishing knot, seguido de três meios nós). Seguidamente foi
realizada a secção por radiofrequência, e remoção da porção intra-articular da
longa porção do bicípite braquial, deixando a antiga zona de ancoragem proximal
do bicípite regularizada. A tenotomia da longa porção do bicípite foi realizada
através da secção por radiofrequência da longa porção do bicípite na zona da
goteira umeral bicipital, seguida da secção na zona de ancoragem proximal do
bicípite braquial e remoção do segmento intra-articular, sendo o método e o
nível de secção da longa porção do bicípite braquial na goteira bicipital
idêntico ao da tenodese. A decisão do gesto a realizar foi tomada
intraoperatoriamente: a realização de nenhum gesto na longa porção do bicípite
braquial foi favorecida em doentes com menos de 50 anos, trabalhadores manuais
ativos, sem patologia do complexo bicípite-labrum, e sem rotura da longa porção
do bicípite braquial ou do subescapular associadas à rotura do supraespinhoso,
mas foi condicionada à confirmação, por via artroscópica glenoumeral, de
ausência de conflito dinâmico da longa porção do bicípite com o supraespinhoso
reinserido; a tenotomia foi favorecida em doentes com mais de 50 anos de idade,
com obesidade do braço e lesão do complexo bicípite-labrum, ou rotura da longa
porção do bicípite ou do subescapular; a tenodese foi favorecida em doentes com
menos de 50 anos de idade, com patologia do complexo bicípitelabrum, ou rotura
da longa porção do bicípite braquial ou do subescapular.
Protocolo de reabilitação
Os doentes foram imobilizados em suspensão braquial com banda torácica
comercial ainda no bloco operatório, antes de revertida a anestesia. Foi dada
indicação para iniciarem exercícios do ombro passivos, de duas em duas horas, a
partir do dia da cirurgia (movimentos pendulares, elevação passiva até 90º) e
até às 3 semanas pos-operatórias, data em que iniciaram fisioterapia formal, em
diferentes centros de fisioterapia, sem intervenção seletiva dos autores. A
banda torácica foi removida às 3 semanas, e a suspensão braquial foi removida
às 6 semanas pós-operatórias. Foi dada indicação para iniciar, às 3 semanas
pós-operatórias, a mobilização passiva completa, e para a mobilização ativa não
resistida ser limitada pelo limiar da dor. Foi interdito o início de exercícios
ativos resistidos até aos 4 meses pósoperatórios, consoante a gravidade e
complexidade da reparação da rotura do supra-espinhoso e o limiar da dor. Foram
dadas indicações específicas suplementares para os doentes do grupo da tenodese
e da tenotomia: mobilização do cotovelo passiva durante as primeiras 3 semanas,
mobilização ativa não resistida entre as 3 e as 6 semanas, e mobilização ativa
resistida permitida a partir das 6 semanas pós-operatórias.
Avaliação dos doentes
A avaliação funcional global do ombros foi realizada pré-operatoriamente e aos
6 meses pósoperatórios, utilizando: o Simple Shoulder Test (SST)[6]; e o score
de Constant-Murley (CM) [7], excluindo a variável objetiva de avaliação de
força de abdução deste score (pelo que o máximo de pontuação possível passou
para 75 pontos, correspondendo à soma das variáveis subjetivas e objetiva
restante do score). A presença de sinal de Popeye, definido como a tradução
clínica da migração distal no braço do corpo muscular da longa porção do
bicípite braquial à flexão e supinação do cotovelo, foi avaliada aos 6 meses
pós-operatórios. A presença de dor bicipital, definida como dor anterior, tipo
moinha, cãibra ou dor constante, no trajeto da longa porção do bicípite
braquial, foi avaliada por questão dirigida, aos 6 meses pós-operatórios. O
grau de satisfação do doente aos 6 meses pós-operatórios foi aferido através da
resposta à questão: recomendaria a cirurgia a outra pessoa? Considerou-se que
uma resposta positiva seria correspondente a um doente satisfeito, e que uma
resposta negativa seria correspondente a um doente insatisfeito com a cirurgia.
Análise estatística
Os três grupos de doentes a comparar foram definidos pelo gesto realizado na
longa porção do bicípite braquial (grupo com nenhum gesto na longa porção do
bicípite braquial, grupo com tenotomia da longa porção do bicípite braquial, e
grupo com tenodese da longa porção do bicípite braquial). A análise estatística
foi realizada através de testes para comparação de grupos, com recurso ao
software IBM® SPSS® Statistics 19.
Os grupos foram comparados em termos da avaliação inicial das variáveis: idade,
sexo, lesão da longa porção do bicípite braquial (diagnóstico artroscópico: sem
rotura, rotura parcial, ou rotura completa), classificação artroscópica da
rotura da coifa dos rotadores (classificação de Snyder) [8], classificação
artroscópica da rotura do subescapular (classificação de Lafosse) [9],
classificação artroscópica da lesão do complexo bicípete-labrum (lesão do
labrum superior anterior-posterior, SLAP, classificação de Snyder)[10], tipo de
trabalho do doente (manual ou intelectual), pedido de indemnização do
trabalhador, resultado do SST pré-operatório e do score de CM pré-operatório.
Os grupos foram depois comparados em termos do resultado do SST pós-operatório,
da melhoria do SST (incremento ou deltaSST), do score de CM pósoperatório, da
melhoria do score de CM (incremento ou deltaCM), da presença de dor bicipital,
da presença sinal de Popeye, e do grau de satisfação com a cirurgia aos 6 meses
pós-operatórios. Foram utilizados testes ANOVA (análise de variância), Kruskal-
Wallis, t-Student, qui-quadrado e Fisher's exact test.
RESULTADOS
Participantes e dados descritivos
Os 42 doentes em que se procedeu à reinserção artroscópica do supra-espinhoso
foram divididos em três grupos consoante o gesto realizado na longa porção do
bicípite braquial: grupo 1: nenhum gesto (8 doentes); grupo 2: tenotomia (12
doentes); grupo 3: tenodese intra-articular com sutura de âncora (22 doentes).
No Quadro_I apresentam-se os dados demográficos por grupo de tratamento, e no
Quadro_II apresenta-se a distribuição das lesões por grupo de tratamento. A
média dos resultados dos scores de avaliação da função do ombro pré e pós-
operatórios está resumida no Quadro_III.
Resultados da análise estatística
Não houve diferença estatisticamente significativa entre os 3 grupos quanto às
variáveis iniciais: idade, sexo, tipo de profissão, pedido de indemnização do
trabalhador, lesão da longa porção do bicípite braquial, rotura do supra-
espinhoso (classificação de Snyder), SST e score de CM pré-operatórios (valores
de p>0,05 nos testes ANOVA de análise de variância, ver Quadros_II e III, bem
como nos testes de Kruskal-Wallis, t-Student e Qui-quadrado), ou seja, o gesto
sobre a longa porção do bicípite braquial foi independente destas variáveis.
Contudo, houve diferenças estatisticamente significativas entre os grupos
quanto à lesão do subescapular (classificação de Lafosse), com p=3,5795e-005
(Fisher's exact test) e à lesão de SLAP (classificação de Snyder) com p=
0,0147, Fisher's exact test.
Não houve diferença estatisticamente significativa entre os três grupos na
melhoria do SST (médias de deltaSST: 5,37 no grupo de nenhum gesto; 5,91 no
grupo da tenodese; 6,27 no grupo da tenotomia; p=0,862; teste ANOVA) e na
melhoria do score de CM (médias de deltaCM: 35,25 no grupo de nenhum gesto;
39,36 no grupo da tenodese; 37,09 no grupo da tenotomia; p=0,807; teste ANOVA)
aos 6 meses pós-operatórios. No grupo da tenotomia houve um doente com sinal de
Popeye (9,1%) e uma maior percentagem de doentes com dor referida ao bicípite
(18,1%) do que no grupo da tenodese (9,1%), mas esta diferença não foi
estatisticamente significativa (p=0,5723, Fisher's exact test). Não houve
diferença estatisticamente significativa (p=0,647, Fisher's exact test)
no grau de satisfação avaliado pela questão da recomendação da cirurgia a outra
pessoa entre o grupo da tenotomia (100% de doentes satisfeitos, 12 dos 12
doentes recomendam cirurgia) e o grupo da tenodese (95,45% de doentes
satisfeitos, 21 em 22 doentes recomendam a cirurgia). A satisfação foi menor no
grupo com nenhum gesto na longa porção do bicípite braquial (37,5%, intervalo
de confiança (IC) de 95%=[8,5%;75,5%]) do que nos grupos da tenotomia e
tenodese (97,1%, IC95%=[84,7%;99,9%]), com significado estatístico (p=3.7E-4,
Fisher's exact test).
Uma doente do grupo da tenotomia (1/12) foi excluída no decurso do estudo, da
avaliação funcional global do ombro, por ter sido reoperada antes dos 6 meses
pós-operatórios, para tratar uma rigidez articular pós-operatória que não
respondia ao programa de reabilitação, com consequente interferência ativa nas
variáveis objetivas dos scores funcionais. O timing para intervir na rigidez
pós-operatória refractária à reabilitação (mínimo de 6 meses de reabilitação)
foi antecipado para os três meses e meio pós-operatórios, por suspeita de
rerrotura precoce no contexto de uma intercorrência no primeiro dia pós-
operatório (início não autorizado de mobilização ativa resistida), sendo
difícil, por meios complementares de imagem, fazer o diagnóstico diferencial de
rigidez versus falência da reparação nessa fase. Neste caso confirmou-se
artroscopicamente a integridade da reparação do supra-espinhoso (procedeu-se à
manipulação sob anestesia geral, passando de 90º para 180º de elevação passiva,
e à libertação do intervalo dos rotadores com ressecção do ligamento
coracoumeral e remoção das linhas de sutura do supra-espinhoso, bem cicatrizado
na footprint, por via artroscópica glenoumeral e subacromial). Assim, esta
doente não foi excluída da avaliação da dor bicipital (ausente), do sinal de
Popeye (ausente) e do grau de satisfação aos 6 meses pós-operatórios
(satisfeita), atribuindo-se o quadro de capsulite à intercorrência descrita.
DISCUSSÃO
A dependência do gesto realizado sobre a longa porção do bicípite braquial
quanto às variáveis iniciais lesão do subescapular e lesão de SLAP decorre dos
critérios de decisão utilizados neste estudo para a realização do gesto. O
facto de existirem procedimentos adicionais sobre o subescapular tem de ser
considerado na interpretação dos resultados deste estudo. Contudo, a natureza
da patologia da longa porção do bicípite braquial, que raramente se encontra de
forma isolada[11], determina que seja difícil realizar estudos comparativos dos
diferentes gestos sobre a longa porção do bicípite[5], sem ser no contexto de
outros procedimentos cirúrgicos do ombro, bem como a utilização de um
verdadeiro grupo de controlo. Ainda assim, é de sublinhar que houve
independência da variável rotura do supra-espinhoso quanto ao gesto na longa
porção do bicípite braquial, e que não foram realizados outros procedimentos
geralmente incluídos noutros estudos, como a descompressão subacromial
(acromioplastia) ou a ressecção clavicular distal[5], e que constituiriam
outras variáveis de confundimento.
A análise da função global do ombro através do score CM também foi utilizada no
estudo de Boileau[12], que também concluiu não haver diferença no resultado da
tenodese versus tenotomia. Contudo o contexto não era o da reparação do supra-
espinhoso, mas da tenotomia ou tenodese em roturas irreparáveis do supra-
espinhoso.
A frequência de 9,1% do sinal de Popeye na tenotomia neste estudo está perto do
limite inferior da frequência de 3 a 70% reportada na literatura[2]. Na
realização da tenotomia não se optou pela técnica cirúrgica mais generalizada,
em que a secção é feita na zona de ancoragem proximal, deixando a porção distal
migrar livremente para a goteira bicipital, tendo-se optado por realizar a
secção na goteira umeral, e depois remover o segmento remanescente proximal,
numa tentativa de simular o comprimento e tensão da longa porção do bicípite
braquial final obtido pela tenodese. Assume-se que se possa dar um
encarceramento da longa porção do bicípite tenotomizada na goteira umeral, que
possa simular a tenodese e torná-las sobreponíveis, desde que seja seguido um
protocolo de reabilitação, com proteção da tenotomia.
Neste estudo optou-se por seguir o mesmo protocolo de reabilitação na tenotomia
e na tenodese, numa tentativa de retirar essa variável de confundimento da
análise do outcome dos dois procedimentos. É admissível que a técnica cirúrgica
de realização da tenotomia possa ter influência nos resultados em termos de
frequência do sinal de Popeye e de dor bicipital, mas a sua fundamentação
requereria um estudo comparativo entre as duas técnicas de tenotomia referidas.
Neste estudo optou-se por não categorizar o grau de deformidade cosmética do
braço. Em vez disso, avaliou-se o sinal de Popeye simplesmente como presente ou
ausente, para reduzir a carga de subjetividade implícita numa gradação da
deformidade. Pela mesma razão, a dor bicipital foi avaliada apenas como
presente ou ausente. Verificou-se que a maior frequência de sinal de Popeye e
de dor referida ao bicípite na tenotomia versus tenodese não determinou uma
diferença do grau de satisfação dos doentes, o que está de acordo com os
resultados obtidos por Duff[5] na sua revisão de 117 doentes submetidos a
tenotomia, incluindo doentes jovens trabalhadores manuais ativos, em que,
apesar duma frequência de 19% de dor referida ao bicípite, se registou um grau
de satisfação de 97% com o procedimento.
A aplicação da tenotomia concomitante à reparação do supra-espinhoso tem sido
condicionada pela preocupação com a deformidade cosmética, do sinal de Popeye,
e pela dor bicipital nos trabalhadores ativos manuais, mas neste estudo não se
encontrou diferença na satisfação dos doentes com tenotomia versus tenodese,
mesmo tratando-se de uma população maioritariamente trabalhadora ativa manual,
pelo que também não se encontra razão para recomendar a tenodese versus
tenotomia com base no argumento clássico do tipo de profissão. Contudo, neste
estudo não foi analisada a força de flexão e supinação do cotovelo, geralmente
referida na literatura com sendo mais afetada pela tenotomia do que pela
tenodese[2]. Para além disso, também foi excluída a variável objetiva de
avaliação de força de abdução do score de CM, com o objetivo de reduzir o
impacto da idade e da dominância do membro operado na comparação dos
resultados, fator que tem de ser tido em conta na interpretação dos resultados.
Quanto ao menor grau de satisfação dos doentes com nenhum gesto na longa porção
do bicípite braquial, poderá constituir uma tradução subjetiva da hipotética
alteração da excursão da longa porção do bicípite na polia, após a reinserção
do supraespinhoso, mas esta alteração não foi objectivável na avaliação
dinâmica por via artroscópica glenoumeral dos doentes sem gesto na longa porção
do bicípite. Esta menor satisfação pode ser um argumento para associar sempre a
tenotomia ou a tenodese à reparação do supra-espinhoso. Contudo, o follow up de
6 meses poderá ser considerado insuficiente para se poder fazer esta
recomendação, e ser considerado uma limitação deste estudo. O pouco tempo
decorrido após a reparação do supra-espinhoso pode não ser suficiente para que
as lesões da longa porção do bicípite revertam, dado que os estudos realizados
em modelos animais demonstraram que só 2 meses após a reparação da coifa dos
rotadores é que se começou a verificar a melhoria das lesões da longa porção do
bicípite[4]. Por outro lado, a hipotética alteração da polia da longa porção do
bicípite braquial, que a reinserção do supra-espinhoso poderá determinar,
poderá ser independente do tempo decorrido após a reparação, pelo que, se for
este o fator condicionante da menor satisfação dos doentes, esta poderá não ser
alterada com o aumento de follow-up.
Contudo, podem haver outras variáveis de confundimento, que não foram
analisadas neste estudo, e que expliquem as diferenças no grau de satisfação
dos doentes verificadas, tal como o facto de os doentes realizarem a
reabilitação em centros de fisioterapia diferentes (apesar de serem fornecidas
pelo cirurgião indicações específicas para a reabilitação).
CONCLUSÕES
O gesto sobre a longa porção do bicípite braquial na reparação da rotura do
supra-espinhoso não tem repercussão sobre o resultado funcional global do
ombro, e não determina diferenças significativas na frequência de sinal de
Popeye ou de dor bicipital aos 6 meses pós-operatórios.
Não intervir na longa porção do bicípite braquial traduz-se, no entanto, num
menor grau de satisfação do doente, quando comparado com a tenotomia ou a
tenodese aos 6 meses pós-operatórios, pelo que poderá ser aconselhável realizar
sempre a tenotomia ou a tenodese quando se proceder à reparação de uma rotura
do supra-espinhoso.