Artropatia de Charcot do pé e tornozelo
INTRODUÇÃO
Nos países desenvolvidos, a neuropatia diabética é a causa mais frequente da
neuroartropatia de Charcot, sendo o pé e tornozelo os locais mais
frequentemente afetados, com uma incidência estimada específica para a
população diabética de 1,4% [1]. Outras condições também relacionadas com esta
patologia incluem o alcoolismo, a lepra, tabes dorsalis, sífilis terciária,
mielomeningocelo, a insensibilidade congénita à dor e recetores de órgãos
sólidos transplantados [2,3].
A sua patogénese não está ainda compreendida e uma teoria unifi cadora do seu
processo patológico ainda não foi encontrada. A teoria neurotraumática sugere
que a neuroartropatia de Charcot é uma lesão de sobrecarga exagerada, em que
articulações insensíveis à dor e sem propriocepção são submetidas quer a
microtraumas de repetição, quer a um evento traumático único, que originam as
alterações típicas de Charcot. Esta teoria é apoiada por vários estudos com
animais experimentais com membros insensíveis. Por outro lado, a teoria
neurovascular (sustentada por estudos que comprovam o aumento dos marcadores da
atividade osteoclástica nestes pacientes), aponta a disfunção do sistema
nervoso autónomo como a responsável pelo aumento do aporte sanguíneo através de
shunts arteriovenosos, aumentando a reabsorção óssea. Teorias recentes
acrescentam o papel das citocinas inflamatórias (TNF-a, IL-1) na patogénese da
destruição neuropática de articulações [3].
A classificação clínica de Eichenholtz modificada, continua a ser o guia para a
orientação terapêutica da neuroartropatia de Charcot (Quadro_I) [4]. Brodsky
identificou padrões específicos de colapso do pé e tornozelo, criando uma
classificação anatómica (Figura_1) [5] e Sammarco e Conti distinguiram padrões
específicos de deformidade óssea no mediopé (Figura_2) [11]. A progressão
clínica desta doença segue padrões previsíveis que podem evoluir para a
deformidade do pé em "mata borrão" e ulcerações crónicas, tal como
ocorre no caso clínico apresentado pelos autores.
Quadro_I
CASO CLÍNICO
Um homem de 42 anos de idade é observado em consulta de Ortopedia de patologia
do pé em dezembro de 2009, por apresentar um quadro com vários meses de
evolução caracterizado por úlceras plantares crónicas na base do primeiro e
quinto raios do pé, exsudato purulento fétido, edema do pé, diminuição da força
muscular e hipostesia bilateral dos membros inferiores até ao nível dos
joelhos. Radiologicamente apresentava fratura do terço médio da diáfise do
quinto metatársico (Figura_3).
Trata-se de um doente com história de polineuropatia amiloidótica familiar,
submetido a transplante hepático em 2001, com diagnóstico de paludismo por
Plasmodium Falciparum em maio de 2008 (viveu 3 meses em Angola, medicado com
micofenolato mofetil 500mg 12/12h, Tacrolimus 2mg 12/12h e Oxazepam 15mg id).
Da sua história pregressa constam também 3 episódios de celulite/ erisipela do
membro inferior com úlcera neuropática na base do 1º e 5º raios do pé, que
motivaram múltiplos internamentos no Serviço de Dermatologia entre 2006 e 2008,
onde foi submetido a cuidados de penso e antibioterapia endovenosa. Foi então
encaminhado para a consulta de Ortopedia de patologia do pé, tendo realizado
radiografi a do pé que não evidenciava alterações (Figura_4).
Inicialmente tratado conservadoramente com bota gessada para neuroartropatia de
Charcot diagnosticada, foi reavaliado clínica e radiologicamente semanalmente,
sob cuidados de penso regulares. Constatou-se exteriorização do fragmento
distal do quinto metatársico pela úlcera externa, mantendo exsudato purulento.
Em março de 2011, após reavaliações semanais, constata-se radiologicamente uma
destruição mediotársica, com desvio dorsal e medial do pé (Figura_5).
Dada a deformidade instável de mediopé com úlceras recorrentes, foi submetido
em março de 2010 à ressecção dos fragmentos ósseos, com redução e fixação
interna do primeiro raio (parafuso Bolt®) e imobilização gessada (Figura_6). O
doente não cumpriu a descarga prescrita e houve falência do material ao nível
do colo do astrágalo, com migração distal do parafuso (Figura_7). Num segundo
tempo cirúrgico em abril de 2010 foi feita limpeza do osso necrótico do quinto
raio, da articulação subastragalina e da mediotársica, artrodese subastragalina
com parafusos, interposição de enxerto ósseo autógeno tricortical e
imobilização com bota gessada (Figura_8). Por manter períodos de fistulização
produtiva lateral e medial, intercalados com períodos de encerramento
espontâneo das úlceras, (deambulava com bota Walker ®) e a estabilidade clínica
e radiológica não ser evidente, em outubro de 2010 é reoperado, submetido a
exérese de sequestros ósseos do mediopé, limpeza cirúrgica, estabilização
calcâneo-metatársica com parafusos, interposição de enxerto ósseo autógeno e
imobilização com bota gessada (Figura_9).
Esteve submetido a antibioterapia dirigida a Proteus vulgaris e Staphilococcus
aureus isolados assepticamente do exsudato descrito, com Trimetoprim e
Sulfametoxazol per os por 6 meses. Realizou TAC do pé afetado que evidenciava
"…osteíte crónica, sem sinais de malignização…", assim como RMN que confirmava
o "…infiltrado inflamatório…sem alterações secundárias…".
De outubro de 2010 a outubro de 2011 manteve o pé plantígrado e seco,
deambulando inicialmente com bota Walker® que abandonou em julho de 2011,
usando desde então botas de sola rija, mantendo a profissão de mecânico
automóvel. Seguiu-se um internamento de 3 semanas no Setor de Infeção Óssea do
Serviço de Ortopedia por tumefação posterior do tornozelo, tendo sido submetido
a drenagem e antibioterpia endovenosa dirigida a Staphilococcus aureus e
Morganella morganii (Meropenem). Analiticamente apresentava anemia (Hemoglobina
10,7 g/dl; Eritrócitos 3,49x1012/L; Hematócrito 31,6 %), Leucócitos 8,6x109/L;
VS 113mm/1ªh; PCR 12,94mg/dl. Os últimos exames radiográficos revelam
manutenção da montagem realizada 1 ano antes, semevidência de fusão da
articulação médiotársica, halo de osteólise ao ível dos parafusos nos
metatársicos (Figura_10).
No caso de falência do tratamento, está indicada a amputação pela coxa, dada a
anestesia manifestada ao nível do joelho.
DISCUSSÃO
A imobilização é o pilar do tratamento das fases de instabilidade da
neuroartropatia de Charcot, sendo o gesso a forma mais acessível de manter a
estabilidade e diminuir o edema do membro [2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11]. O período
médio de imobilização gessada é de 6 semanas, com a progressão para calçado
terapêutico às 12 semanas [3]. O tempo de imobilização recomendado é maior,
quando as articulações do retropé e tornozelo estão afetadas. A decisão pelo
tratamento cirúrgico é influenciada pelas comorbilidades do doente, localização
e severidade da deformidade, presença de infeção, dor e instabilidade [3, 7, 8,
9, 10, 11].
A exostosectomia das proeminências ósseas que incitam úlceras cutâneas deve ser
considerada. Nas deformidades severas, a artrodese de uma ou várias
articulações do pé com fixação interna ou externa tem demonstrado resultados
promissores [3, 7, 8, 9, 10, 11], restaurando o alinhamento e a estabilidade do
pé e tornozelo. A amputação do membro está tipicamente reservada aos casos de
insucesso do tratamento cirúrgico prévio com artrodeses instáveis, ulcerações
recalcitrantes ou infeção resistente [3, 7, 8, 9, 10, 11]. A terapêutica médica
com bifosfonatos e calcitonina nãoé ainda suportada por evidência científica
[3].
Na literatura revista, a percentagem de artrodeses bem sucedidas em doentes com
neuroartropatia de Charcot, utilizando técnicas de fixação interna é de
aproximadamente 65 % a 70% [2, 5, 12]. O risco deamputação major é de cerca de
15% a 20% [5, 8, 12, 13].
CONCLUSÃO
Esta patologia continua a desafiar os clínicos pela dificuldade no seu
diagnóstico precoce e complexidade de tratamento. A sua gestão fundamenta-se em
vários fatores, nomeadamente a localização, estadio da doença, existência de
infeção, deformidade ou comorbilidades. O atraso no seu tratamento pode
originar instabilidade, deformidade severa e proeminências ósseas secundárias.
Ulcerações recalcitrantes podem advir, levando a infeções de tecidos moles e
osteomielite, culminando possivelmente em amputação. O maior objetivo do
tratamento da neuroartropatia de Charcot do pé e tornozelo é a correção da
deformidade, de forma a promover a correta distribuição de pressões para a
cicatrização e prevenção das ulcerações cutâneas. Um elevado índice de suspeita
é requerido em doentes com neuropatia periférica com o aparecimento súbito de
um membro quente e edemaciado, particularmente quando as radiografias são
inocentes.