Alongamento simultâneo da tíbia e do fémur num doente com hemimelia
INTRODUÇÃO
A hemimelia corresponde a um desenvolvimento anormal do esqueleto ósseo
caracterizado pela ausência ou encurtamento marcado da uma porção de um ou
vários ossos dos membros. Esta anomalia pode afectar a extremidade distal do
membro superior ou inferior. A hemimelia peroneal é a ausência de parte ou de
todo perónio. É uma deficiência rara no entanto é a mais comum nos ossos
longos. Inclui um largo espectro de anormalidades congénitas associadas tal
como defeitos no fémur, tíbia, tornozelo e pé[1, 2]. Na maioria dos casos
verifica-se um encurtamento concomitante do fémur que condiciona alterações
severas no cumprimento do membro inferior atingido. Foi descrita pela 1ª vez
por Goller em 1896[3], a forma completa é mais frequente bem como o atingimento
unilateral e predominando no membro inferior direito[4-6]. À ausência do
perónio associa-se habitualmente o encurtamento tibial[6] Existem várias
classificações sendo de destacar a de Coventry e Johnson[7], Acketerman e
Kalamashi (e) e de Paley[8] esta última para os casos com alteração do pé e
padronizando a sua correcção. O tratamento tem por objectivo principal
restaurar um normal alinhamento e cumprimento do membro atingido em especial os
casos que tem pé normal. Uma das opções terapêuticas preconizadas é o
tratamento cirúrgico reconstructivo recorrendo ao uso de fixadores externos no
âmbito de promover um alongamento progressivo e gradual do membro inferior. A
amputação de membro reserva-se actualmente para os casos de dismetria marcada
associada a deformidade complexa do pé. Apresentamos o resultado de um caso
clínico de um doente com hemimelia peroneal e encurtamento femoral submetido a
tratamento cirúrgico reconstructivo tendo sido efectuado um alongamento do
fémur e da tíbia no mesmo tempo cirúrgico.
MATERIAL E MÉTODOS
O caso clínico relatado é de uma criança de 6 anos, de sexo masculino, com
antecedentes de hemimelia paraxial completa intercalar a direita. O doente foi
submetido a uma completa avaliação pré-operatoria com realização de exames
radiológicos extra-longos dos membros inferiores e coluna vertebral.
Apresentava uma dismetria do membro inferior direito de 6.8cm, 3 cm a custa da
tíbia e 3.8cm a custa do fémur (Figura_1). Pelo facto de se tratar de uma
discrepância muito marcada em relação ao membro contra-lateral os autores
optaram para realizar num único tempo cirúrgico um alongamento simultâneo do
fémur e da tíbia do membro inferior direito. O doente foi proposto para
cirurgia em Julho de 2008. Realizou antibioterapia endovenosa profilática no
momento da indução pré-operatória. A osteotomia tibial e femoral foi efectuada
com o recurso a um osteótomo e uma serra de Gigly através de pequenas incisões
percutâneas. A colocação dos fixadores externos assentou num sistema de três
pins proximais e distais a osteotomia realizada, tanto na tíbia como no fémur
(Figura_2). Oprocesso de distração iniciou-se ao sétimo dia pós cirurgia. Foi
preconizado um aumento de 0,5mm duas vezes por dia tanto ao nível do fémur
como da tíbia. O doente foi seguido semanalmente em consulta tendo sido
permitido a introdução de carga progressiva no membro inferior direito as três
semanas (Figura_3).
RESULTADOS
O doente operado apresentava uma hemimelia paraxial completa intercalar da
perna direita associada a um encurtamento severo do fémur homolateral. A
criança tinha todos os raios do pé presente assim como uma articulação
funcional do tornozelo. Realizou radiografias seriadas em todas as consultas de
seguimento. Realizou cuidados de fisioterapia passiva e activa, imediatamente
após a intervenção cirúrgica, durante um período de 6 meses. Os fixadores
externos foram retirados passados 7 meses de cirurgia. (Figuras_4 e 5) Obtevese
um crescimento do membro inferior de 7.8cm (4cm no fémur e 3.8cm na tíbia).
Verificou-se uma dismetria de +1cm do membro inferior operado, propositado
atendendo a idade do doente. O doente desenvolveu complicações minores como
infeções superficiais dos locais de implantação dos pins dos fixadores
externos, que foram tratadas com antibioterapia oral. O doente apresenta uma
mobilidade completa da anca, joelho, tornozelo e pé do membro inferior direito.
A criança realiza todas as actividades da sua vida diária, incluindo a prática
desportiva, apenas com ligeiras limitações. Radiologicamente observou-se a
presença de uma ponte óssea com boa viabilidade, tanto a nível do fémur como da
tíbia (Figura_6). Verificou-se um agravamento ligeiro do valgismo do joelho
direito já presente previamente a intervenção cirúrgica.
Figura_6
DISCUSSÃO
A hemimelia peroneal tem um largo espectro de apresentações clínicas que pode
variar desde de um ligeiro encurtamento do membro inferior até dismetrias
severas atingido os 17 cm, associado a deformidades dos outros segmentos ósseos
adjacentes, como deformidades em valgo da tíbia ou do tornozelo, alterações
congénitas do pé e ainda hipoplasias femorais. Encontram-se descritas na
literatura numerosas opções de tratamento. No passado, as amputações,
preconizadas por Syme e Both[9, 10], representavam o tratamento mais comum. Os
resultados eram aceitáveis nas formas de hemimelia peroneal mais severas. Os
procedimentos de alongamento dos membros tiveram o aumento de popularidade nos
últimos tempos devido ao avanço significativo das técnicas cirúrgicas assim
como do melhor entendimento dos padrões biomecânicos e biológicos da entidade
clínica apresentada. É possível actualmente obter um alongamento de 7 a 10 cm
na tíbia e até 17 cm no fémur. O alongamento do membro inferior atingido num
contexto de hemimelia paraxial completa intercalar encontrase associado a um
número elevado de complicações, tais como infeções superficiais dos pinos do
fixador externo, casos de osteomielite, fracturas da área de crescimento ósseo
ou ainda deformidades angulares dos segmentos adjacentes que podem condicionar
novas intervenções cirúrgicas. No âmbito de evitar mais um procedimento
cirúrgico e perante um quadro de dismetria marcada de todo o membro inferior,
tanto a custo do fémur como da tíbia, os autores optaram pelo recurso a dois
fixadores externos para o alongamento simultâneo dos dois ossos atingidos.
Radiologicamente verificou-se a formação de regenerado ósseo de boa qualidade e
um ligeiro agravamento do valgismo inicial do joelho direito[11]. Os cuidados
contínuos de fisioterapia foram importantes para a preservação da mobilidade e
função das articulações adjacentes assim como a força muscular do membro
inferior.
CONCLUSÃO
As crianças portadoras de hemimelia peroneal necessitam geralmente de numerosas
intervenções cirúrgicas para correção da própria doença e das suas sequelas. Os
autores apresentaram um caso clínico de sucesso, no qual realizaram um
alongamento simultâneo da tíbia e do fémur, no âmbito de tentar reduzir o
número de intervenções cirúrgicas a que esta criança poderá ser submetida,
assim como de optimizar o crescimento do membro inferior a custa dos dois
principais ossos longos que o compõem. No entanto, mesmo com o avanço das
técnicas cirúrgicas e com um melhor conhecimento das características desta
deformidade congénita, um número considerável de malformações persistentes
tendem em manter-se após o tratamento. Os pais da criança devem de ser
instruídos previamente das expectativas colocadas, de forma a poder entender a
necessidade de novas intervenções cirúrgicas. Os autores concluem que o
alongamento simultâneo da tíbia e do fémur num doente com hemimelia paraxial
completa intercalar pode ser uma boa solução cirúrgica para resolução de uma
dismetria marcada do membro atingido.