Fratura do snowboarder
INTRODUÇÃO
O processo lateral do talus (PLT) é uma proeminência triangular com base medial
que articula a nível dorsolateral com a fíbula e inferomedial com o calcâneo,
formando a região lateral da articulação subtalar [1, 2]. As fraturas do PLT
são raras. Até final da década de 80 as referências na literatura eram
dispersas e com séries de casos curtas. O mecanismo usual de lesão era um
traumatismo de alta energia [3]. Estima-se que na população global a incidência
desta fratura seja <1% de todos os traumatismos do tornozelo. Com a prática
crescente do snowboard e alguns estudos epidemiológicos [4] observou-se uma
incidência aumentada desta fratura ocupando 15% de todos os traumatismos do
tornozelo e 32% das fraturas do tornozelo nesta modalidade [4], sendo 15 vezes
mais frequente que na população geral [3]. Por estes motivos denominou-se esta
fratura rara como a "fratura do snowboarder". Clinicamente
confunde-se com um entorse do tornozelo [5, 6]. É necessário nível alto de
suspeição que se eleva quando a dor é referida 1 cm ântero-inferior da
extremidade do maléolo lateral ou com a presença de equimose posterior à
articulação subtalar [6]. O diagnóstico imagiológico é realizado através de
telerradiografia do tornozelo com incidência para a mortalha e perfil do
tornozelo. Nesta última incidência Knoch et al descreveram o "sinal
"V" positivo quando há uma interrupção da simetria do formato em
"V" do talus (Figura_1) [1]. Apesar de este exame poder ser
suficiente para o diagnóstico, a Tomografia Computorizada (TC) é importante
para uma melhor caracterização do tipo de fratura, fraturas associadas [5],
decisão terapêutica e é o gold standard na avaliação de queixas arrastadas após
traumatismo do tornozelo [6]. Os autores consideram que o mecanismo de lesão,
apesar de ainda não ser consensual na comunidade científica, será a eversão e
rotação externa do pé em carga e dorsiflexão. O aspeto mais controverso tem
sido a importância da eversão vs inversão na lesão. Os trabalhos recentes de
Funk et al [3] e Valderrabano et al [5]demostraram como o mecanismo acima
citado é o mais provável. A lesão entre os praticantes de snowboard acontecerá
quando ocorre uma queda para a frente paralela à prancha. As botas estão fixas
à prancha que está perpendicular aos pés. Durante a queda a prancha funcionará
como alavanca provocando uma eversão extrema do pé da frente que se encontra em
carga e dorsiflexão (Figura_2). A lesão no pé dianteiro é superior a 2:1 em
relação ao pé da retaguarda [3] não havendo relação da fratura com o tipo de
bota usado [1]. As fraturas do PLT foram classificadas por Hawkins [7] em 3
padrões (Figura_3): Tipo I - Simples, Tipo IICominutiva e Tipo III
- "Lasca" (chip). Perera et al [6] realizaram um estudo
retrospetivo sobre o tratamento e resultados deste tipo de fratura e baseado na
classificação proposta por Hawkins, considerando o desvio do fragmento no
padrão tipo I e propuseram uma conduta terapêutica. (Quadro_I). O tipo I será
tratado melhor com redução aberta e fixação interna (RAFI) o tipo II com
excisão do fragmento e o tipo III com tratamento conservador. Na avaliação pós
operatória ou em casos de suspeita de fratura não diagnosticada o teste de
"stress para o PLT" [5] causa dor em casos de sequelas (Figura_4).
Nos casos de atraso de consolidação, se o fragmento for grande deve ser fixado
e excisado se for pequeno [6]. Nos vários estudos foi evidente que o atraso de
diagnóstico e as lesões não diagnosticadas conduziram a piores resultados [6] e
morbilidade prolongada devido a atraso de consolidação, pseudartrose e lesões
degenerativas da subtalar [3].
Figura_3
Quadro_I
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 36 anos de idade, vítima de atropelamento (a baixa
velocidade) com projeção aproximadamente de 3 metros. Foi transportado para o
Serviço de Urgência após estabilização. À entrada encontrava-se consciente
queixando-se de dor no tornozelo direito, não sabendo especificar o movimento
de lesão, sem outras queixas. Sem traumatismo crâneo-encefálico ou toraco
abdominal. Foi encaminhado para Ortopedia para avaliação do traumatismo do
membro. Apresentava dor e edema do tornozelo direito, palpação dolorosa do
maléolo lateral e região infra-maleolar. Sem instabilidade da tibiotársica ou
alterações do antepé. Realizadas radiografias do tornozelo de face e perfil
(Figura_5) que revelaram imagem sugestiva de provável fratura do processo
lateral do talus. Para melhor caracterização foi realizada TC articular com
reconstrução tridimensional (3D) (Figura_6) que confirmou a fratura do processo
lateral do talo com desvio - Hawkins tipo I. O doente foi imobilizado com
tala gessada e após melhoria do edema local ao fim de 10 dias, foi submetido a
cirurgia. Através de uma abordagem lateral direta da articulação subtalar, foi
realizado desbridamento e limpeza do hematoma. Constatou-se fragmento ósseo
volumoso e lesão correspondente a nível da cartilagem do calcâneo tipo
"kissing lesion". Foi realizada osteossíntese com fixação in situ
do fragmento ósseo com parafuso autocompressivo (EOS® 20mm). Encerramento sem
drenagem, com sutura descontínua. Imobilização com tala posterior genupodálica.
Na radiografia de controlo pós-operatório (PO) imediato confirmou-se uma
redução do fragmento (Figura_7). Alta ao 2º dia mantendo a tala e descarga
total do membro. Ao 20º dia mantinha edema do pé com boa evolução cicatricial e
atrofia significativa dos gastrocnémios. Foi retirada a tala com indicação para
manter descarga e realizar contenção elástica. Às 6 semanas apresentava edema
residual, melhoria da atrofia muscular e limitação na inversão/eversão do pé.
Na radiografia a fratura apresentava-se consolidada iniciando neste momento
carga progressiva no membro. Na consulta aos 6 meses caminhava sem limitações,
satisfeito com a cirurgia. Referindo ligeiro desconforto após cargas mais
elevadas. Sem edema local, mobilidades simétricas, sem dor. Controlo
radiológico com consolidação da fractura sem alterações degenerativas na
subtalar. Na consulta aos 18 meses negava queixas álgicas. Sem alterações na
marcha ou calçado. Retomou prática desportiva ligeira (caminhada e corrida) sem
limitações. Clinicamente com mobilidades normais e indolores do tornozelo e pé
(Figura_8), recuperação da atrofia muscular da perna. "Stress
teste" negativo. Palpação indolor. Obteve 100 pontos na escala AOFAS. Na
radiografia de controlo (Figura_9) apresentava consolidação da fratura sem
alterações degenerativas das articulações adjacentes.
Figura_6
DISCUSSÃO
Os autores consideram que foi importante para o bom resultado funcional o
diagnóstico imediato. A fratura ocorreu na sequência de um acidente de viação o
que suporta a evidência que o mecanismo de lesão sobre o tornozelo será o mais
importante para esta fratura. Apesar de um seguimento pós-operatório curto a
condutaterapêutica revela-se adequada com um resultado funcional ótimo.
CONCLUSÃO
A fratura do PLT é uma fratura rara cujo diagnóstico é possível com um índice
de suspeição elevado, baseado na história e exame clínico. A crescente prática
do snowboard aumentará a frequência desta fratura não sendo esta modalidade
exclusiva do mecanismo de lesão. O tratamento precoce é fundamental para evitar
a morbilidade e sequelas a longo prazo.