Ligamentoplastia do ligamento cruzado anterior Do osso-tendão-osso para os
isquiotibiais: melhorámos?
INTRODUÇÃO
A reconstrução do ligamento cruzado anterior (LCA) tem como objectivo restituir
a estabilidade anterior e rotacional do joelho, devolver a funcionalidade e
evitar a degeneração precoce desta articulação de carga.
A rotura completa do LCA é caracteristicamente uma lesão do jovem com hábitos
desportivos e nesse contexto o resultado pretendido não se limita à recuperação
de uma marcha assintomática mas prevê igualmente o regresso à actividade
desportiva, muitas vezes de alto rendimento.
A escolha do enxerto e da técnica cirúrgica para a reconstrução ligamentar
continuam a ser alvo de discussão. A técnica de ligamentoplastia com enxerto
rotuliano tem resultados comprovadamente bons[2,5]e foi, até recentemente, a
técnica de eleição.
Nos últimos anos verificou-se uma mudança de atitude com a publicação de
múltiplos artigos que parecem favorecer a ligamentoplastia LCA com enxerto de
tendões isquiotibiais pela sua menor morbilidade local[18].
O objectivo do presente estudo foi comparar os dois métodos de tratamento em
termos clínicos, funcionais e radiológicos, de forma a compreender se a mudança
de atitude terapêutica trouxe real benefício aos doentes tratados na nossa
instituição.
Pretendemos compreender também as características do doente, da lesão, do
timing de intervenção e da técnica de fixação utilizada que pudessem ter sido
determinantes para o sucesso terapêutico na amostra estudada.
MATERIAL E MÉTODOS
Procedeu-se a um estudo observacional retrospectivo.
Foram seleccionados todos os doentes submetidos a ligamentoplastia LCA com
enxerto autólogo de tendão rotuliano ou tendões isquiotibiais (recto interno e
semi-tendinoso) entre 2007 e 2010, período que se refere à introdução da
segunda técnica nesta instituição.
Foram critérios de exclusão a presença de rotura parcial, presença de rotura do
ligamento cruzado posterior, cirurgia de revisão e a técnica de
ligamentoplastia LCA com duplo túnel femoral.
Foram observados 48 doentes de um universo de 104 doentes submetidos a
ligamentoplastia LCA que cumpriram os critérios de inclusão.
Destes 48 doentes, 17 foram tratados pela técnica de ligamentoplastia LCA osso-
tendão-osso com enxerto de tendão rotuliano (grupo 1- OTO) e 31 pela técnica de
ligamentoplastia LCA com enxerto de dois tendões isquiotibiais e túnel único
femoral transtibial (grupo 2-IT).
Avaliaram-se parâmetros biográficos, temporais, lesionais, cirúrgicos, clínicos
e radiológicos, bem como a satisfação global do doente.
Os dados relativos à lesão inicial e técnica cirúrgica foram obtidos a partir
da consulta dos processos clínicos em arquivo.
Os doentes foram convocados nominalmente para avaliação em consulta onde foram
observados os parâmetros clínicos e aplicados os scores funcionais IKDC e
Tegner-Lysholm.
Foi realizada avaliação radiológica através de radiografia AP em carga e em
perfil de ambos os joelhos e aplicada a escala de artrose de Kellgren-Lawrence.
Os resultados foram analisados estatisticamente com recurso ao programa JMP
8.0.2 tatistical Discovery Software, foram aplicados os testes T de Student,
Chi-quadrado e teste exacto de Fisher.
RESULTADOS
Dados demográficos, tempo de seguimento e lesões associadas
Na amostra existe uma predominância do sexo masculino, 85%, e a idade média no
momento de cirurgia é de 27,9 anos.
O tempo decorrido entre a lesão e a cirurgia é, em média, 24,7 meses.
O tempo médio de follow-up é de 2,18 anos e é 1,9 vezes superior para o grupo
1-OTO, com significado estatístico (Quadro_I).
No grupo 1-OTO, 6 doentes, 35%, apresentavam lesão meniscal e 2 doentes, 12%,
lesão condral no momento da cirurgia.
No grupo 2-IT, 12 doentes, 39%, apresentavam lesão meniscal e 2 doentes, 6,5%,
lesão condral no momento da cirurgia.
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois
grupos para p<0,05 em relação à idade, género, tempo entre lesão e cirurgia e
lesões associadas (Quadro_I).
Técnica cirúrgica e reabilitação
Do ponto de vista de técnica cirúrgica, todos os doentes incluídos neste estudo
foram operados por especialistas de igual nível de diferenciação, dedicados à
subespecialidade de joelho. Foi utilizada a técnica de túnel único femoral
realizado por via transtibial. Foi variável o material escolhido para a fixação
do enxerto (Quadro_II)
A reabilitação foi realizada segundo protocolo hospitalar em 56% dos casos,
sendo os restantes submetidos a protocolos individuais das clinicas de
fisioterapia onde receberam cuidados.
Foram registadas duas complicações pós-operatórias imediatas, um caso de
deiscência de ferida operatória do local de colheita de enxerto no grupo 1-OTO
e um caso de tromboflebite da perna no grupo 2-IT.
Salientamos que 5 doentes (29%) no Grupo 1 - OTO e 8 doentes (26%) no
Grupo 2 - IT tiveram pelo menos um episódio de entorse do joelho com
derrame documentado após a cirurgia. Estes doentes tiveram piores resultados
clínicos, como se descreverá adiante.
Score funcionais (IKDC e Tegner-Lysholm) e Satisfação global
Do ponto de vista funcional o grupo 1-OTO apresenta um score IKDC médio de
79,33 e um score Tegner-Lysholm médio de 84,47. O grupo 2-IT, apresenta um
score IKDC médio de 83,23 e um score Tegner-Lysholm médio de 91,80 (Quadro
III).
Comparando os dois tipos de ligamentoplastia nos scores aplicados, não há
diferença significativa para p<0.05.
Analisando a amostra global, os doentes do sexo masculino apresentam valores
mais elevados no score IKDC (p < 0.01) e no score Tegner-Lysholm (p<0.01). Os
indivíduos do sexo masculino têm também uma maior probabilidade de ter um nível
de satisfação superior (p<0,01).
Verificou-se na análise desta amostra que os doentes de estatura mais elevada
apresentam melhores scores funcionais, independentemente de qualquer outra
variável demográfica ou cirúrgica (IKDC p<0,02, TL p<0,01) (Figura_1).
Figura_1
Na análise de subgrupos não se encontra relação significativa entre os scores
funcionais IKDC e Tegner-Lysholm e a idade, o IMC, os diferentes cirurgiões, o
tipo de fixação utilizada, a presença de lesões associadas, o programa de
reabilitação ou o tempo decorrido desde a cirurgia.
Existe uma tendência estatística que parece indicar a presença de scores
funcionais mais elevados para um intervalo de tempo lesão-cirurgia menor, mas
sem real associação estatística (IKDC p =0.14; TL p=0.17)
A presença de evento traumático após a cirurgia - entorse com derrame
documentado- está associada a piores resultados funcionais no score Tegner-
Lysholm (p<0,03) mas sem significado no score IKDC.
Em relação à Satisfação global subjectiva, avaliada numa escala de 0 a 10, o
nível de satisfação global médio do grupo 1-OTO situa-se em 8,0. Para o grupo
2- IT, o nível de satisfação global médio é de 8,55. A diferença de satisfação
não tem significado estatístico.
Existe uma forte associação positiva entre elevados scores funcionais e a
satisfação global. (p<0.0001).
Avaliação clinica objectiva
Em relação à mobilidade articular, objectivou-se um arco de movimento passivo
completo e simétrico em 76,5% dos doentes do grupo 1- OTO e em 77,4% dos
doentes do grupo 2-IT, sem diferença estatisticamente significativa entre os
dois tipos de enxerto.
Na amostra global, 20 dos 48 doentes estudados têm um ou mais sinais clínicos
de instabilidade ligamentar (Quadro_IV).
No grupo 1-OTO, o sinal de gaveta anterior está presente em 52,9%, o sinal de
Lachman em 47% e o sinal de pivot shift em 17,6% dos doentes.
No grupo 2- IT, o sinal de gaveta anterior foi objectivado em 38,7% dos casos e
os sinais de Lachman e pivot shift em 39,3% e 9,7%, respectivamente.
Apesar de se verificarem valores percentuais mais altos para o grupo 1-OTO, não
existe diferença estatística significativa entre os dois grupos para a presença
de sinais de instabilidade clínica (p=0,42). O tipo de fixação do enxerto
também não influencia os resultados. De igual forma, a presença de
instabilidade não se relaciona com o arco de movimento obtido nem com o tempo
decorrido desde a cirurgia para nenhum dos grupos.
Existe a realçar uma diferença significativa em relação ao sexo, as mulheres
têm maior probabilidade de apresentar sinais objectivos de instabilidade
(p=0.01). (Figura_2)
Figura_2
A instabilidade ligamentar objectivada está igualmente relacionada com a
satisfação global do doente, sendo o teste com maior associação estatística o
teste de gaveta anterior (p< 0,0001) (Lachman e pivot-shift p< 0,001).
Foi verificada associação estatística entre a presença de sinais de
instabilidade e o scores Tegner-Lysholm e IKDC, o que valida a observação
clínica (TL p<0,0001 IKDC p< 0,0003)
Os doentes em que ocorreu entorse após a cirurgia têm uma maior incidência de
sinais actuais de instabilidade (p= 0.02).
Sintomas patelofemorais
No grupo 1-OTO não se registou nenhum caso de dor patelofemoral. No grupo 2-IT
houve descrição de dor patelofemoral num doente com lesão do menisco interno
associada e IMC actual de 34.
Actividade física
A maioria dos doentes operados pratica actualmente actividade desportiva
compensatória. No grupo 2-IT existe maior percentagem de doentes a praticar
actividade desportiva regular. Contudo, não existe diferença estatisticamente
significativa entre o tipo de enxerto para a ocorrência de prática desportiva
recreativa ou de competição (Quadro_V).
Na amostra global, os doentes sedentários apresentam ambos os scores funcionais
inferiores aos dos doentes que praticam actividade desportiva 3 vezes ou mais
por semana (p=0.01) e igualmente um nível de satisfação global inferior
(p<0.04)
Os doentes que praticam actualmente desporto de competição, embora com scores
médios semelhantes à média, mostram níveis de satisfação inferiores aos dos
doentes que praticam desporto mais do que 3 vezes por semana (p<0.02),
reflectindo provavelmente o seu elevado grau de exigência.
Avaliação radiológica
Do ponto de vista radiológico, 56,3% dos doentes estudados apresentaram
alterações classificáveis como grau 1 ou 2 na escala de Kellgren-Lawrence.
Nenhum doente apresentou sinais radiológicos de grau 3 ou 4.
No gupo 1-OTO, 17,6% evidenciavam alterações radiológicas de grau 2 enquanto
que apenas 9,7% dos doentes do grupo 2-IT tinham alterações articulares
semelhantes (Quadro_VI)
As diferenças não são estatisticamente significativas para a amostra
considerada.
Não existe correlação entre o tempo decorrido após a cirurgia e a presença de
sinais de artrose para nenhum dos grupos.
Analisando a amostra global, verificou-se contudo que a presença de sinais de
artrose está associada ao tempo decorrido entre lesão e cirurgia (p=0.014),
tempo esse que é semelhante em média para os dois grupos (Figura_3).
Não se verificou associação estatística entre a presença de sinais de artrose e
a técnica de fixação ou a presença de sinais clínicos de instabilidade para
este tempo de follow-up.
De igual forma, não foi encontrada associação estatística entre a presença de
lesão condral ou meniscal no momento da cirurgia e a ocorrência de sinais
radiológicos actuais de artrose para nenhum dos grupos.
DISCUSSÃO
Este estudo suporta a hipótese de que não existe diferença funcional entre os
doentes submetidos a ligamentoplastia LCA com tendão rotuliano e os doentes em
que a plastia foi realizada com 2 tendões isquiotibiais.
Existem algumas limitações a considerar. O estudo é retrospectivo e
compareceram apenas 46% dos doentes elegíveis, embora tal facto não seja
incomum nos estudos que se centram em populações jovens[1].
A amostra é constituída por doentes que foram operados por três cirurgiões
distintos e este estudo não isola variáveis de técnica cirúrgica como
preparação do enxerto ou posicionamento dos túneis ósseos que poderiam
influenciar os resultados funcionais. Contudo, os cirurgiões em causa têm graus
de diferenciação semelhante e existe homogeneidade na prática cirúrgica dentro
do grupo de subespecialidade a que todos pertencem. Estatisticamente não houve
diferença entre os scores funcionais obtidos pelos vários cirurgiões.
Realçamos que todos os doentes foram clínica e radiologicamente avaliados pelo
mesmo médico, não envolvido no acto cirúrgico. O tempo de seguimento médio foi
superior a 2 anos e meio e foram aplicados scores funcionais validados. A
instabilidade ligamentar foi avaliada apenas clinicamente, sem recurso a KT-
1000, mas a forte correlação obtida entre a observação clínica e o score
Tegner-Lysholm, legitima a avaliação.
Os resultados funcionais obtidos são comparáveis aos publicados na literatura
internacional. Magnunsssen et al[2] na sua revisão sistemática de estudos
prospectivos de avaliação dos resultados de ligamentoplastia LCA publicada em
2011 apresenta scores de Lysholm médios que variam entre 82 e 96 e scores IKDC
médios que variam entre 70.3 e 80.
Nas séries mais extensas[3,4,5] publicadas nos últimos cinco anos a presença de
sinal de Lachman é verificada em 9 a 21% dos doentes e o sinal de pivot-shift
ocorre em 17 a 32% dos casos. Na presente amostra a prevalência de sinal de
Lachman é superior e a ocorrência de sinal de gaveta anterior é
consideravelmente elevada. Existem vários factores que podem explicar este
resultado. Na verdade, o elevado intervalo de tempo entre a lesão e cirurgia
favorece a progressiva falência dos estabilizadores secundários do joelho que
não é restituída pelo tratamento cirúrgico. Por outro lado, o elevado número de
eventos traumáticos com entorse do joelho após a cirurgia pode ser uma causa
importante de instabilidade actual. Da mesma forma sugere uma insuficiência da
técnica na restituição da estabilidade rotatória do joelho.
Dado que não se verificou diferença estatística entre os dois grupos para a
presença de sinais de instabilidade ou para a frequência de entorse após a
cirurgia, os resultados sugerem que o tipo de enxerto não será o factor mais
importante para alcançar os objectivos terapêuticos da reconstrução do LCA. É
importante considerar que neste estudo, em todos os doentes o túnel ósseo
femoral foi realizado por via transtibial. Provavelmente o local de inserção do
enxerto e a consequente orientação das sua fibras serão os factores que
justificam a elevada prevalência de sinais de instabilidade, bem como a
obtenção de resultados semelhantes nos dois braços da nossa amostra.
O que verificámos está de acordo com o postulado por vários autores[6, 7, 8] e
tem motivado a introdução de modificações técnicas que permitem a fixação do
enxerto em posição anatómica. Futuramente, prevemos encontrar melhores
resultados nos doentes em que o túnel femoral é realizado através do portal
antero-medial, respeitando a orientação e inserção do ligamento nativo, e que
pensamos que não serão influenciados pela escolha do tipo de enxerto.
É interessante constatar que nesta amostra existe uma associação fortemente
positiva entre estatura elevada e resultados funcionais excelentes,
independentemente de outros factores. É conhecida a relação entre a estatura e
as dimensões do enxerto colhido,[9 ] bem como a associação entre os maiores
diâmetros e os melhores resultados[10]. Está ainda por esclarecer a importância
das características antropométricas na recuperação funcional e desempenho dos
doentes após reconstrução do LCA. São necessários estudos biomecânicos futuros
que esclareçam esta associação.
A variável sexo masculino mostrou-se determinante na obtenção de melhores
resultados. Neste estudo as mulheres apresentaram piores scores funcionais,
maior frequência de instabilidade e satisfação inferior, com significado
estatístico. A diferença entre os géneros tem sido progressivamente valorizada
[11]. Coloca-se a hipótese de capital ósseo inferior que prejudique a fixação
do implante e integração do enxerto, e a hipótese de diferenças no recrutamento
muscular e na resposta à reabilitação[12, 13]. Wahl et al publicou recentemente
uma análise de 173 atletas em que identificou um padrão geométrico articular
comum aos atletas de ambos os sexos que sofreram rotura do LCA e que é mais
frequente no sexo feminino[14].
Em relação à actividade desportiva após ligamentoplastia é encorajador
verificar que os doentes em que foi utilizado enxerto de 2 tendões
isquiotibiais não têm índices de prática desportiva inferiores aos dos doentes
em que se utilizou enxerto de tendão rotuliano. Este dado já foi observado em
estudos anteriores[15]. Existe contudo a percepção de que uma parte importante
dos doentes não retorna ao seu nível de actividade desportiva prévio, apesar da
obtenção de elevados scores funcionais. Este estudo não testou este parâmetro
directamente mas obteve indicadores indirectos desta situação como a satisfação
inferior dos doentes que são actualmente sedentários e a satisfação inferior
dos atletas de alta competição que têm scores funcionais de 100.
Por último, é notável que mais de metade da amostra estudada apresente sinais
radiológicos de alterações degenerativas do joelho. Este dado está de acordo
com o descrito nos estudos que incluem doentes com patologia meniscal e condral
associada em proporções semelhantes às da nossa amostra[1, 5, 16, 17]. Neste
estudo identificámos como factor independente para a presença de sinais
degenerativos articulares, o tempo decorrido entre a lesão e a cirurgia. O
tempo decorrido após a cirurgia ou o tipo de enxerto utilizado não determinaram
a presença de artrose para o intervalo de seguimento considerado. As séries que
apresentam menores índices de artrose após ligamentoplastia têm
consistentemente tempos de cronicidade reduzidos[1] o que nos faz reflectir
sobre a necessidade de optimização da acessibilidade ao tratamento para os
doentes que sofrem rotura do ligamento cruzado anterior.
CONCLUSÃO
A escolha do enxerto utilizado na ligamentoplastia do ligamento cruzado
anterior não influenciou os resultados funcionais, clínicos ou radiológicos.
Identificámos uma relação directa entre os bons a excelentes resultados obtidos
nesta amostra e os factores sexo masculino, estatura elevada e tempo reduzido
entre lesão e cirurgia.
Futuramente são necessários estudos comparativos entre os dois tipos de enxerto
em doentes submetidos a ligamentoplastia por técnica que utilize portal
anteromedial e permita a localização anatómica do túnel femoral.