Técnicas de cimentação femoral
INTRODUÇÃO
A artroplastia total da anca é uma das intervenções cirúrgicas com maior êxito
em Ortopedia. A eleição do melhor método de fixação dos componentes (implantes
cimentados ou não cimentados) é uma das principais controvérsias. Com a
introdução do conceito de prótese de baixa fricção por Charnley nos anos 60, a
fixação com cimento passou a ser o padrão de ouro. Tem hoje uma história de
aplicação clínica contínua com cerca de 50 anos. Ao longo do tempo as questões
levantadas relativamente às vantagens da cimentação centram-se fundamentalmente
no componente acetabular, uma vez que as taxas de sucesso do componente femoral
são altíssimas[1]. O registo sueco de artroplastias mostrou uma taxa de
sobrevivência ao descolamento asséptico de 96% aos 9 anos, para 3380 próteses
implantadas desde 1987 com técnicas de cimentação modernas[2]. O registo
escandinavo de artroplastias demonstrou a eficácia da cimentação em diferentes
tipos de próteses[3].
O cimento
O cimento funciona como um preenchimento entre o implante e o osso trabecular
de modo a que a carga se transmita uniformemente sobre toda a interface
cimento-osso, não tendo propriedades adesivas[4]. Atualmente o cimento mais
usado é o polimetilmetaclilato (PMMA), um polímero acrílico, que polimeriza
numa reação exotérmica. É composto por copolímeros de PMMA em forma de pó e um
monómero líquido, o metilmetacrilato (MMA), na proporção de 2:1; nas soluções
comerciais é acrescentado um contraste de sulfato de bário (BaSO4) para tornar
o cimento radiopaco.
O processo de elaboração do cimento - polimerização- pode ser dividido em
quatro fases diferentes[5] (fase de mistura, fase de espera, fase de aplicação,
fase de estabilização), demora cerca de 7 a 15 minutos, dependendo da
temperatura inicial do cimento e da temperatura ambiente da sala de bloco
operatório. Na fase de mistura os componentes devem ser misturados
homogeneamente evitando a criação de poros. A mistura sob vácuo diminui a
porosidade do cimento tornando-o mais resistente à falência; existe também, uma
diminuição da evaporação do monómero líquido contribuindo para um melhor
ambiente na sala de bloco operatório e prevenindo alergias nos profissionais de
saúde. Na fase de espera aguarda-se que o cimento adquira uma viscosidade ótima
para a aplicação, esta deve ser resistente o suficiente para impedir a
penetração de sangue na massa homogénea de cimento mas ao mesmo tempo permitir
a colocação suave do componente protésico. Segue-se a fase de aplicação, em que
o cimento e os componentes são aplicados no doente e, por fim, a fase de
estabilização, na qual o cimento se torna compacto e estabiliza totalmente.
A viscosidade do cimento é uma característica que influencia o tempo das
diferentes fases da polimerização. Cimentos de baixa viscosidade (p.ex: CMW3)
permanecem com baixa viscosidade durante um período de tempo considerável e têm
um curto período de aplicação. Os cimentos de alta viscosidade (p.ex: Polacos)
podem ser usados rapidamente, no entanto, devem ser refrigerados para manter
uma baixa viscosiade quando a cimentação é feita com uso de pistola de
aplicação e instrumentos de pressurização. Cimentos de viscosidade média (p.ex:
Simpex P) aumentam o tempo da fase de aplicação, facilitando a pressurização da
interface cimento-osso e a aplicação dos componentes de uma forma controlada
[6].
Quanto à eficácia na aplicação, os cimentos de baixa densidade têm menor
penetração no osso trabecular, por sua vez, os cimentos de alta viscosidade têm
melhores taxas de interdigitação no osso trabecular mas aumentam o risco de
embolia gorda[7]. A corroborar esta característica estão os dados do registo
norueguês de artroplastias que concluí que os cimentos de alta viscosidade têm
menores taxas de revisão por descolamento asséptico em comparação com cimentos
de baixa viscosidade, não sendo estes últimos já usados em artroplastias[8].
A combinação de cimento com antibiótico, permite a libertação de altas
concentrações deste último nos tecidos periprotésicos prevenindo a colonização
dos implantes pelas bactérias. A infeção é uma das complicações mais temidas
nas artroplastias e que leva quase sempre ao insucesso das mesmas. O
antibiótico deve ser misturado sob a forma de pó com o pó de
polimetilmetacrilato, deve ser estável a altas temperaturas (uma vez que a
polimerização do cimento é uma reação exotérmica) e, deve ser hidrossolúvel
para ter uma boa penetração nos tecidos envolventes. O uso da combinação entre
gentamicina e clindamicina apresenta um espectro de cobertura bacteriana de
cerca de 90% dos agentes implicados nas infeções periprotésicas[5].
Nos registos sueco e norueguês de artroplastias verificou-se que a
administração sistémica de antibiótico na altura da cirurgia juntamente com a
aplicação de cimento com antibiótico, diminuiu a taxa de revisão por causas
sépticas[2, 8].
Técnicas de cimentação
As técnicas de aplicação do cimento (Técnicas de Cimentação) têm sido alvo de
discussão e evolução desde a descrição inicial do procedimento por John
Charnley. Esta técnica original denominada de 1ª geração, tinha como atos
principais a extração do osso trabecular solto, a criação de um leito ósseo
seco e a inserção digital do cimento sob visualização direta evitando a sua
mistura com o sangue.
Com as técnicas de cimentação de 1ª geração havia altas taxas de descolamento
asséptico das próteses, sendo esta a complicação mais frequente a longo prazo.
Assim na década de 80 houve uma preocupação dos cirurgiões em conseguir uma
melhor fixação primária, pondo-se ênfase numa melhor penetração do cimento no
osso trabecular, melhorando o comportamento mecânico do cimento aplicado.
Evoluiu-se para as chamadas técnicas de 2ª geração que se podem resumir em
cinco atos principais: mistura lenta do cimento para evitar a sua porosidade,
limpeza exaustiva da cavidade óssea libertando o osso trabecular da gordura,
introdução de um restrictor na cavidade medular, aplicação do cimento com
pistola de uma forma retrógrada, pressurização do cimento antes da aplicação da
prótese permitindo uma melhor interdigitação do cimento no osso e introdução do
implante sob baixa viscosidade do cimento para evitar espaços vazios[1].
Na década de 90 surgiram as técnicas chamadas de 3ª geração, que incluem a
lavagem pulsátil do canal femoral, o uso de centralizador da haste femoral e a
pressurização do cimento com dispositivos próprios. A preparação do cimento
pode ser realizada em sistema de vácuo com o fim de diminuir a porosidade do
cimento, traduzindo-se numa maior resistência mecânica do preparado final. As
técnicas de cimentação atuais melhoram a interface entre o cimento e o osso,
promovendo uma maior longevidade da artroplastia[9].
As principais diferenças entre as técnicas de cimentação estão resumidas na
Quadro_I.
A técnica de cimentação de 3ª geração compreende seis etapas principais que
passaremos a descrever:
1) Preparação do leito ósseo (Figura_1) com a rimagem do osso trabecular do
canal femoral de forma a este ser moldado para receber uma camada uniforme de
cimento entre o implante e o osso. A "teoria clássica" advoga o uso
de um implante com tamanho inferior à cavidade medular de forma a manter uma
interface cimento-osso de cerca de 2mm, por sua vez, a "teoria do
paradoxo francês" defende o uso de implantes que preencham o canal
femoral com um manto de cimento mínimo. Atualmente as orientações europeias
reconhecem que não existe um consenso quanto à espessura ótima de cimento a ser
utilizado, dependendo esta da tipologia da haste a ser utilizada[10].
2) Introdução de restrictor de cimento (Figura_2) abaixo da extremidade distal
do implante com vista ao tamponamento do canal medular, permitindo um melhor
preenchimento de cimento e acima de tudo a pressurização de uma cavidade
fechada. A pressurização adequada só é conseguida após a aplicação do
restrictor, este deve resistir a pressões na ordem dos 1000 Kpa quando é
inserida a haste femoral. O uso de restrictor diminui também a taxa de embolia
pulmonar e eventos cardiovasculares durante a artroplastia[11].
3) Lavagem do canal femoral (Figura_3) antes da introdução do cimento, com
cerca de 3L de solução salina, com sistema pulsátil para eliminar os resíduos
do conteúdo medular (gordura e elementos da medula óssea) e pode ser necessária
uma escovagem para melhor remoção dos detritos[10]. Complementa-se a lavagem
com aplicação de compressas embebidas num agente hemostático (H2O2 ou
adrenalina). O valor da lavagem na qualidade da interface osso-cimento e na
diminuição de eventos embólicos foi bem estabelecida experimentalmente[12].
4) Mistura do cimento é realizada na própria seringa de aplicação, sob vácuo
num sistema fechado. O cimento sem poros apresenta uma maior resistência ao
stress, com menores taxas de falência/fratura[10]. Sob vácuo existe uma menor
evaporação do monómero líquido (MMA), contribuindo para um melhor ambiente da
sala operatória e menor taxa de alergias nos profissionais de saúde[5].
5) Aplicação do cimento (Figuras_4 e 5) deve ser feita de uma forma retrógrada
desde a zona do restrictor até preenchimento total da cavidade fechada, aplica-
se um selante proximal e pressurizase o cimento. Um sinal positivo de
pressurização é a extrusão de medula óssea no grande trocanter (sinal de
transpiração do trocanter)[10]. São recomendadas técnicas que usam pressões de
cimento mais altas de modo a haver uma melhor interdigitação entre o cimento e
as trabéculas ósseas [13], no entanto, o fémur deve ser limpo da gordura
intramedular para evitar a embolia gorda.
6) Introdução da haste femoral (Figura_6) com o centralizador para evitar o mau
posicionamento da prótese em todos os planos. Deve-se aguardar até o cimento
ter uma viscosidade suficientemente alta para resistir à penetração sanguínea e
suficientemente baixa para que a prótese entre sem esforço e não se criem
sulcos provocados pelo orientador que podem promover a disrupção do cimento
[10].
Em conclusão, as técnicas de cimentação de 2ª e 3ª geração mostram excelentes
resultados na fixação dos componentes femorais.