Lesões do ligamento cruzado posterior: Há lugar para o tratamento conservador?
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende avaliar a capacidade de cicatrização espontânea do
ligamento cruzado posterior. Admitia-se que o sistema central, formado pelos
ligamentos cruzados, tinha um poder nulo de cicatrização. A sua rotura levava
obrigatoriamente à substituição ou reconstrução dos mesmos para obter uma boa
função articular. Se isto se aplica ao ligamento cruzado anterior (LCA), o
mesmo não se poderá dizer do ligamento cruzado posterior (LCP), que tanto em
lesões de baixa energia, lesões isoladas, como em lesões secundárias a
traumatismos de alta energia, que se acompanham em muitos casos de luxação do
joelho, é capaz de cicatrizar espontaneamente.
Este poder de cicatrização é um passo importante para o conhecimento deste
ligamento[1-2].
MATERIAL E MÉTODOS
Procedemos à avaliação de um total de 14 doentes numa amostragem consecutiva
entre 2000 e 2010, sendo dez do sexo masculino e quatro do sexo feminino, com
idades compreendidas entre 14 e 42 anos, sem predomínio de lateralidade. O
seguimento foi em todos os casos superior a dois anos, com uma média de 26,3
meses e o tratamento foi sempre conservador.
Fez-se o seguimento de todos os doentes, mediante os critérios do IKDC e
avaliação sequencial com RMN.
As lesões classificaram-se do ponto de vista imagiológico (RMN) seguindo os
critérios de -Shelbourne em 4 graus:
1) Baixo. Edema em T2. Sem disrupção das fibras nem alteração na forma do
ligamento.
2) Médio. Disrupção parcial. Persistem algumas fibras "em ponte"
3) Alto. Disrupção total sem fibras "em ponte"
4) Severo. Separação total, com líquido ou gordura nos extremos ligamentares.
As lesões 1 e 2 são consideradas parciais e as 3 e 4 totais (Figura_1)
Figura_1
Nos casos de lesão isolada colocou-se um gesso fechado cruropodálico ou uma
ortótese com o joelho em extensão completa, permitindo-se deambulação com carga
parcial progressiva segundo tolerância com apoio de auxiliares de marcha. Esta
imobilização durou um mês após o qual iniciaram tratamento reabilitador com
ganho progressivo de mobilidade e posterior potenciação e reentrada na sua
atividade laboral ou desportiva.
Na lesão combinada do pivot central e ângulo póstero externo, reparou-se
cirurgicamente o ângulo de forma precoce entre o 7º e 10º dia.
Quando ao pivot central se associava a lesão do compartimento interno, o
tratamento conservador consistiu na imobilização com ortótese com controlo de
mobilidade bloqueada em extensão e deixando livre a flexão inicialmente até aos
30º e depois aumentando progressivamente segundo a tolerância do doente.
RESULTADOS
Os doentes eram provenientes do mundo laboral[5] e desportivo[8], quer
profissional quer recreativo e um foi secundário a acidente de viação.
Em 9 casos tratava-se de lesão isolada do LCP e em 5 as lesões ligamentares
eram múltiplas. Destes cinco casos, três apresentavam lesões de ambos os
cruzados e do compartimento interno e dois, lesões de ambos os cruzados e
ângulo postero- externo.
Em todos os doentes obteve-se a cura clínica e comprovação radiológica, em
média aos 7 meses (desvio standard).
A valorização clínica da gaveta posterior revelou uma gaveta residual que nunca
superou 1+, nos cinco casos em que as lesões ligamentares eram múltiplas e no
resto uma resolução completa do mesmo.
Na lesão combinada do pivot central e ângulo póstero externo, reparou-se
cirurgicamente o ângulo de forma precoce entre o 7º e 10º dia e só em dois
casos, com o LCP cicatrizado, foi necessária a reconstrução diferida do LCA.
Quando ao pivot central se associava a lesão do compartimento interno obteve-se
a cicatrização do LCP e do sistema interno sem necessidade de reconstrução
posterior do LCA (Quadro_I).
Quadro_I
Fez-se a avaliação funcional, no final do tratamento, por meio da IKDC (Quadro
II).
Quadro_II
DISCUSSÃO
Era comummente aceite que do ponto de vista funcional a diferença entre entorse
leve e grave do joelho seria dada pela lesão dos ligamentos cruzados, logo só
poderíamos conseguir um joelho normal após reconstrução ou substituição dos
mesmos[2-6]
Nas duas últimas décadas tem existido um grande incremento pelo interesse no
estudo do LCP, sendo que com Hughston[7,8] chegou-se a considerar o elemento
mais importante do joelho do ponto de vista ligamentar. Para este autor o dado
mais fiável para o seu diagnóstico é a laxidão em extensão. Chega a considerá-
lo o eixo autêntico do joelho ao redor do qual se move tanto em flexão como em
extensão e efetua a classificação das laxidões em diretas e rotatórias
atendendo ou não à sua integridade.
No entanto ainda existem várias dúvidas em relação ao tratamento definitivo,
tanto da lesão isolada como combinada, com claros elementos de controvérsia que
vão desde a história natural, ao momento da cirurgia, tipo e fixação de
enxerto, ligamentos a reparar, etc[3,9-15]. Se teoricamente é o ligamento mais
importante do joelho, uma articulação normal, leva obrigatoriamente à reparação
de todos e cada um dos ligamentos lesionados e "sempre e em primeiro o
posterior" como se repete e ensina constantemente e se considera padrão
de ouro neste tipo de lesões. Esta forma de atuar começa a não ser unânime[16-
23]
Shelbourne estudou a cura deste ligamento em 40 joelhos. Ocorreu cicatrização
em todos os casos secundários a lesões de baixa energia (baixo grau e
intermédio) e em 19 dos 22 casos de alto grau. Por isso propõem que estas
lesões se tratem sem nenhuma cirurgia ou com reconstrução diferida. Recomenda
um período inicial de imobilização. Várias semanas depois toma-se uma decisão
baseada no grau de laxidão posterior. Reconstrói-se o LCP nos joelhos que
apresentam uma laxidão residual de 2+. Quando a laxidão é menor opta-se por um
tratamento não cirúrgico e o LCA reconstrói-se somente em casos selecionados
que mostram uma clara instabilidade anterior[1, 13, 14, 24].
A RMN é uma grande ajuda para confirmar a cicatrização do LCP. Um só corte é
capaz de mostrar todo o ligamento desde a sua origem femoral até á inserção
tibial. A sua fiabilidade para detetar lesões do LCP cifra-se nos 95- 99%
(Figura_2).
Figura_2
Atualmente sabe-se que os autoenxertos, uni ou bifasciculares, corretamente
colocados, conduzem a resultados finais tão bons como os de cirurgia de
reconstrução do LCA[25, 28]. Mas se o LCP é capaz de "autocurar-se"
com um tratamento conservador adequado, este pode ser idóneo, não só nas lesões
isoladas como também na maior parte das lesões ligamentares múltiplas.
A nossa série apresenta cinco casos de lesão ligamentar múltipla, três
associadas a lesão do compartimento interno e dois a rotura completa do ângulo
póstero externo. Somente em dois destes casos e já com o LCP cicatrizado foi
necessária a reconstrução do LCA (Figura_3). Em todos eles, o último controlo
de RMN mostrou uma imagem perfeita do sistema central (Figura_4). Deste modo,
não é de todo exato o aforismo de " sempre e primeiro operar o
posterior" dado que estamos como é evidente perante um ligamento com
grande potencial de cicatrização com tratamento conservador adequado.
Figura_3
No entanto não temos uma explicação convincente para uma evolução tão distinta
dos ligamentos cruzados após a sua rotura. Tratam- se de ligamentos cordonais,
caracterizados pela retração que sofrem os seus extremos quando se rompem. Dado
que nenhuma imobilização consegue afrontar as duas extremidades, sempre se
pensou que o único tratamento capaz de restaurar a anatomia ligamentosa era o
cirúrgico.
Alem disso, sendo ambos ligamentos curtos, com pouca reserva de elasticidade,
ao menor estiramento rompem se, não existindo portanto a "entorse dos
cruzados". A rotura será parcial ou total, mas estará sempre presente,
além disso tendo em conta o conceito de globalidade articular, é difícil
aceitar um ligamento com uma parte rota e outra completamente ilesa[29].
Por último, o líquido sinovial impede que se forme o hematoma e o coágulo de
fibrina retardando os mecanismos de cicatrização. Esta situação somada à
estrutura bifascicular do LCA tem sido apontada como causa do seu poder de
cicatrização nulo. Então somos obrigados a perguntar: Porque não ocorre com o
LCP? Ou as roturas do LCP produzem menos hemartrose quando sempre se pensou que
estavam mais vascularizados?[30]
CONCLUSÃO
Por tudo isto, acreditamos que apesar de desconhecido, existe um mecanismo que
leva à cicatrização completa do ligamento cruzado posterior. O que é evidente é
que a sua cicatrização leva a evitarmos os inconvenientes do ato cirúrgico e a
possível rigidez articular sempre possível em qualquer cirurgia múltipla dos
ligamentos do joelho. O neoligamento adota a disposição anatómica primitiva,
recupera a sua fixação original e mesmo que às vezes possa existir alguma
laxidão posterior residual de 1+, sabe-se que nenhuma técnica cirúrgica no
momento atual produz uma negatividade completa da gaveta posterior.