Remoção de corpo estranho intra-ósseo do ombro após facada
INTRODUÇÃO
As feridas perfurantes por facada são frequentes, estando descrita uma taxa de
incidência de 0,77% dos episódios de urgência, embora esta seja variável
consoante a densidade populacional e tipo de área metropolitana da região
hospitalar. Globalmente, 44% destas lesões correspondem a assaltos, 49% a
acidentes e 8% a lesões autoinfligidas, sendo que a faixa etária entre os 16 e
24 anos, é habitualmente mais afectada.1 As situações com lesão óssea são
raras, existindo escassos relatos de retenção de fragmento intra-ósseo da
lâmina. 2,3
Apresentamos um caso de uma ferida por facada do ombro com fragmento da lâmina
intra-óssea e extensão intra-articular.
CASO CLÍNICO
Um adulto de 35 anos, sexo masculino, de nacionalidade Moldava, referiu
agressão com arma branca, com ponto de entrada na região posterior do ombro
esquerdo. Apresentava-se com dor intensa e limitação completa da mobilidade
activa e passiva, sem apresentar lesões neurovasculares. Ferida incisa com
cerca de 2 cm na região postero-inferior justa-axilar do ombro esquerdo.
Apresentava ainda múltiplas cicatrizes no tórax, região dorsal e membros
superiores, compatíveis com o mesmo tipo de agressão.
Ao exame radiográfico foi possível observar um objecto de densidade metálica,
incluso na região cefálica, com eventual extensão intra-articular (Figura_1).
Foi administrada antibioterapia empírica com cefazolina e gentamicina e reforço
antitetânico. Realizamos estudo com tomografia computorizada (TC) para
determinar a posição exacta do corpo estranho e avaliar o grau de extensão
articular: a lâmina penetrou a região mais posterior da cartilagem articular
cefálica do úmero, atravessando em direcção anterior. Por quebra da lâmina,
permaneceu um corpo estranho intra-ósseo, com uma pequena extensão intra-
articular (Figura_2).
Figura_1
Figura_2
Procedemos à intervenção cirúrgica de urgência para retirar o corpo estranho,
com o objectivo de impedir a sua migração e prevenir a infecção bem como o
agravamento de lesões articulares, através de uma abordagem posterior do ombro:
posicionamos o doente em semi-pronação e realizamos a incisão 2 cm medial ao
ângulo acromial, com 8 cm de extensão longitudinal, em direcção à região
axilar. Dissecamos o plano subcutâneo e retraímos o bordo caudal do deltoide em
direcção cranial. Após identificação do tendão infraespinhoso e redondo menor,
procedemos à desinserção do primeiro, para permitir acesso livre ao espaço
articular. Realizamos artrotomia longitudinal da cápsula posterior e removemos
o corpo estranho com fórceps (Figura_3). Posteriormente realizamos o
desbridamento e lavagem, com reinserção do tendão infra-espinhoso com 2 âncoras
metálicas (Figura_4).
O doente não apresentou nenhuma intercorrência peri-operatória, tendo
abandonado o seguimento em ambulatório e permanecendo incontactável.
DISCUSSÃO
Estudos desenhados para conceber material de protecção corporal estimaram que a
energia máxima ao apunhalar é de aproximadamente 115 J, e a carga produzida
pela lâmina no ponto de contacto é de cerca de 1000 N.4 Por este motivo a lesão
óssea com este mecanismo de agressão é uma entidade rara. Acreditamos que o
ponto de entrada a nível da cartilagem articular facilitou a penetração da
lâmina através do osso esponjoso.
Abboud et al3 descreveram o único relato de lesão penetrante com lâmina intra-
óssea extra-articular do ombro, numa doente do sexo feminino de 53 anos.
Realizaram a remoção do corpo estranho sem necessidade de exploração profunda
do trajecto da lâmina. Como factores que facilitaram a penetração intra-óssea
referem o status pós-menopausa e o ponto de entrada na zona metafisária.
O nosso caso difere pela dificuldade de acesso à lâmina. Foi necessário criar
uma abordagem que criasse acesso amplo à região articular posterior, para
retirar o corpo estranho com o mínimo de dano na cartilagem articular. A via de
abordagem utilizada permitiu uma exposição articular óptima, sem
intercorrências peri-operatórias. Difere daquela descrita por Rockwood e
Matsen5, pela abordagem subdeltódeia, poupando a desinserção do deltoide
posterior e complicações associadas. No entanto, é necessário uma retracção
atenta do músculo redondo menor por possibilidade de lesão no nervo axilar ao
sair no espaço quadrangular e, após desinserção do músculo infraespinhoso,
cuidado na retracção por possibilidade de lesão no nervo supraescapular. Um
encerramento óptimo dos elementos posteriores, com o membro em rotação neutra,
é importante para prevenir instabilidade posterior do ombro, overtightening
posterior e/ou défices de rotação externa/interna.
Outras abordagens posteriores foram descritas: Jerosch et al6 descreveu uma via
posterior subdeltoideia, através da exploração do intervalo entre o
infraespinhoso e redondo menor, com a vantagem de diminuir a possibilidade de
lesão do nervo supraescapular e de diminuição da força da rotação externa;
Wirth et al7 apresentou uma abordagem transdeltóideia posterior, com divisão do
infraespinhoso pelas duas cabeças.
O caso apresentado, pela raridade, pretende ser uma opção para a orientação do
planeamento e execução do tratamento destas lesões. O estudo pré-operatório
para a localização do corpo estranho é fundamental, devendo a abordagem ser
planeada em consonância, para o tratamento com sucesso e mínima morbilidade.