Tumor Pseudopapilar do Pâncreas: relato de um caso
INTRODUÇÃO
Os tumores sólidos pseudopapilares do pâncreas (SPT) são uma entidade
internacionalmente aceite desde a revisão da classificação da OMS em 1996. São
tumores raros, representando cerca 1-2% de todos os tumores primários de
pâncreas. Podem igualmente ser classificados como neoplasia papilar cística,
tumor sólido-cístico ou tumor de Gruber-Frantz.
A maioria destes tumores afecta mulheres jovens, na segunda ou terceira década,
sendo raramente observados em crianças.
O quadro clínico mais comum é caracterizado por massa/tumefação abdominal
palpável e dor abdominal inespecífica.
O diagnóstico do SPT assenta em elementos de ordem clínica e nos exames de
imagem, tais como ecografia, TC, RMN, colangiopancreatografia retrógrada
endoscópica (CPRE), ecoendoscopia (EUS) e, em alguns casos, a biópsia guiada
por ecoendoscopia (EUS-FNA). [1,3,5] O tratamento de eleição, na maioria dos
casos, consiste na abordagem cirúrgica: pancreatectomia distal ou
duodenopancreatectomia, para lesões proximais, por via laparoscópica ou
laparotómica. Esses tumores têm um baixo potencial maligno e seu prognóstico é
muito bom ao contrário de outros tumores do pâncreas.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 47 anos, referenciada ao serviço de urgência em Maio
de 2010 por apresentar dor abdominal epigástrica constante, com 15 dias de
evolução, associada a anorexia e naúseas. A palpação abdominal não revelava
massas palpáveis. Tinha recorrido ao seu médico assistente que solicitou
ecografia abdominal onde foi documentada: "...Na região ventral do corpo
do pâncreas, denota-se formação cística com cerca de 3 cm". Antecedentes
pessoais de obesidade, histerectomia há 4 meses (leiomiomas) e cesariana.
Na admissão de urgência efectuou estudo analitíco que não revelou quaisquer
alterações. A TC abdominal revelou: "no corpo do pâncreas uma volumosa
formação de aspecto cístico, com 9,5 X 4 X 5 cm. Apresenta-se como uma formação
ligeiramente lobulada, heterogénea, com áreas fluídas de baixa densidade e
outras mais densas; sem calcificações - massa cística de aspecto
complexo".
Orientada para consulta de Cirurgia com persistência da sintomatologia tendo
complementado o estudo diagnóstico com RMN abdominal onde se constatou:
"volumosa formação nodular no parênquima pancreático, com 94 mm de maior
diâmetro, localizada entre a cauda e o corpo, com áreas sólidas e líquidas no
seu interior, a ponderar-se o estudo cito-histológico." (Figura_1).
Perante os aspectos imagiológicos acima mencionados, a doente foi proposta para
tratamento cirúrgico. Submetida a pancreactectomia corpo-caudal com
esplenectomia total em bloco por via laparotómica. Admitida na Unidade de
Cuidados Intensivos no pós-operatório imediato (em virtude da agressividade
cirúrgica) com alta desta unidade no 1º dia. Evolução favorável durante o
internamento com alta hospitalar ao 5º dia pós-operatório sem registo de
intercorrências. O exame histopatológico revelou "segmento pancreático
corpo-caudal com 12cm, identificando-se na região mais proximal neoformação com
10cm de diâmetro, centralmente cavitada, com áreas sólidas na periferia e
hemorrágicas, correspondendo a tumor sólido pseudopapilar do pâncreas,
microscopicamente e limitadamente infiltrativo, sem outros critérios de
malignidade. Exérese cirúrgica completa com positividade na imunohistoquímica
para citoqueratinas AE1/AE3 e 8/18, vimentina, NSE e receptores de
progesterona. (Figura_2).
DISCUSSÃO
Em virtude do aumento da utilização dos meios auxiliares de imagem, a maioria
das lesões císticas pancreáticas constituem achados incidentais
(incidentalomas). [3]
As lesões císticas do pâncreas podem ser congénitas, inflamatórias ou
neoplásicas. Cerca de 90% das lesões neoplásicas englobam as neoplasias
císticas serosas ou mucinosas. Os restantes 10% correspondem a outras lesões
como SPT, tumor neuroendócrino, cistadenocarcinoma seroso e linfangioma. [1,3]
O SPT é um tumor raro que afecta principalmente mulheres jovens. São tumores de
crescimento lento, com comportamento indolente como se retratou no nosso caso.
Estes tumores estão normalmente localizados no corpo e cauda do pâncreas. A
maioria atinge dimensões consideráveis, em média 6-7cm, altura em que
manifestam sintomatologia, tal como dor abdominal (47%) e massa palpável (35%).
Inicialmente surgem como massas sólidas nas quais existem diminutos vasos que
vão sofrendo alterações degenerativas na região mais distal, permanecendo
proximalmente intactos, daí advindo o padrão pseudopapilar e espaços quísticos,
tal como no caso.
O diagnóstico assenta nas manifestações clínicas e nos meios auxiliares de
diagnóstico, como ecografia, TC, RMN, CPRE, EUS e, em alguns casos, a biópsia
guiada por ecoendoscopia (EUS-FNA). [1,3,5] Na TC, os SPT surgem como lesões
hipodensas, cuja parede fibrosa que se demarca do pâncreas normal circundante.
Estas lesões têm baixo potencial maligno. Muito embora os achados imagiológicos
sejam suficientes para prosseguir para a abordagem cirúrgica, opta-se por
realizar, em alguns casos, a EUS-FNA. Esta pode possibilitar o diagnóstico pré-
operatório e auxiliar na via de abordagem cirúrgica a utilizar. Não obstante a
essas vantagens, a taxa de falsos negativos na EUS-FNA é elevada devido à
escassez da amostra celular, na maioria dos cistos, ou da sua diluição, como
resultado da comunicação com os ductos pancreáticos. [1] Quando existe suspeita
de malignidade localizada no corpo do pâncreas ou cauda, passível de cirurgia,
a EUS-FNA não está recomendada. No caso clínico apresentado, optou-se por não
efectuar EUS-FNA previamente à cirurgia. A análise bioquímica do líquido
cístico muitas vezes é mais útil do que a análise citológica: doseamento de
mucina, amilase e antigénio carcinoembrionário (CEA: o melhor teste para
diferenciação de neoplasias serosas e mucinosas, elevado nas últimas).
Os "guidelines" vigentes preconizam o follow-up clínico e
imagiológico (semestral ou anual) para os incidentalomas assintomáticos
inferiores a 3 cm em virtude do baixo risco de malignidade oculta (3,3%). No
entanto, a cirurgia é recomendada para uma lesão cística > 3cm, associada a um
componente sólido num doente sintomático, ou se esta apresenta natureza
mucinosa (consideradas pré-malignas). A abordagem cirúrgica também é
preconizada se surgem sintomas ou se o cisto mostra um aumento progressivo no
tamanho. [1,2,3]
No caso apresentado optou-se pela pancreatectomia corpo-caudal com
esplenectomia total em bloco dado o tamanho da lesão e sua localização.
Frequentemente nos tumores de maiores dimensões podem visualizar-se extensas
áreas de necrose sendo que o tecido pancreático preservado pode ser encontrado
na periferia do tumor, abaixo da cápsula fibrosa. Apresenta um padrão sólido
monomórfico com esclerose sendo que centralmente se denota um padrão
pseudopapilar.
A invasão vascular e perineural, o padrão de crescimento difuso, a necrose
tumoral extensa, a atipia nuclear significativa e a alta taxa mitótica da peça
cirúrgica são critérios de malignidade, salientando-se nesses casos a vantagem
da abordagem multidisciplinar e o papel do tratamento adjuvante ou paliativo
(doentes R1).
Os marcadores imunohistoquímicos preconizados como consistentemente positivos
para o SPT são a a1-antitripsina, a1-antiquimotripsina, enolase específica dos
neurónios (NSE), vimentina e receptores de progesterona. As citoqueratinas são
detectadas em 30-70% dos casos. Tais achados poderiam inferir que o SPT tem
origem nas células epiteliais primitivas do pâncreas, com predomínio de
características exócrinas, mas com persistência da capacidade de dualidade de
diferenciação (endócrina e exócrina). A presença de receptores de progesterona
e predomínio no sexo feminino prende-se com o facto de ser um tumor hormono-
dependente. A lesão descrita no nosso caso revelou microscopia e
imunohistoquímica compatíveis com SPT sem cumprir critérios de maligni-dade.
Muito embora a morbi-mortalidade possa ser baixa em alguns centros,
frequentemente as ressecções pancreáticas estão associadas a várias
complicações. A taxa de complicação varia de 30% a 40% na maioria dos estudos.
Dentre as mais frequentes desta-cam-se a fístula pancreática, infecção da
ferida e hérnia incisional. A taxa de mortalidade é de 2% a 5%. [1,2,4]
Apesar do SPT ser localmente invasivo, raramente é metastático. O prognóstico é
excelente, com uma taxa de cura de quase 100% os casos não metastizados. A
sobrevida é longa, mesmo nos casos de doença avançada, em virtude do tratamento
oncológico adjuvante e da abordagem multidisciplinar. [5]
Conclui-se portanto que o SPT do pâncreas é um tumor raro, com predomínio em
mulheres jovens sendo de crucial importância o seu diagnóstico. Muito embora a
ressecção cirúrgica possa ser curativa, a incapacidade de diagnosticar
atempadamente estes tumores pode atrasar o tratamento adequado, aumentando
assim a morbimortalidade.