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EuPTCVHe1646-69182012000300009

EuPTCVHe1646-69182012000300009

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN1646-6918
Year2012
Issue0003
Article number00009

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Trombose Venosa Mesentérica: uma causa rara de oclusão intestinal

INTRODUÇÃO A trombose venosa mesentérica (TVM) é uma entidade rara, que representa cerca de 10 a 15% das isquémias mesentéricas. [1] Em 95% dos casos afecta a veia mesentérica superior. [2] Em cerca de três quartos dos casos identifica-se um ou mais factor(es) etiológico(s) subjacente(s). [1] Nestes incluem-se os estados de hipercoagulabilidade hereditários (défice de inibidores da coagulação ou aumento do nível ou função de factores de coagulação) ou adquiridos (neoplasias, uso de contraceptivos orais, síndrome antifosfolipídico, síndrome nefrótico), processos inflamatórios adjacentes (como por exemplo pancreatite ou doença inflamatória intestinal), hipertensão portal ou, ainda, após traumatismo ou cirurgia abdominal. [1] Por vezes existe uma associação de factores, como por exemplo os pacientes com hipercoagulabilidade subjacente que desencadeiam TVM como complicação de um processo inflamatório ou traumatismo abdominal. [3] Nos estados de hipercoagulabilidade, contrariamente ao que ocorre nos casos de TVM precipitada por causa intra-abdominal, a oclusão venosa inicia-se nos ramos mais periféricos, estendendo-se posteriormente e de forma gradual aos ramos principais. [1] A trombose venosa provoca retorno sanguíneo à parede e lúmen intestinais, levando a edema e comprometimento progressivo da circulação arterial, resultando em isquémia.

A apresentação clínica de TVM geralmente é subtil e insidiosa, de difícil reconhecimento pela inespecificidade dos sintomas e sinais. O atraso diagnóstico leva a morbilidade e mortalidade não desprezíveis.

CASO CLÍNICO Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino com 46 anos de idade, sem antecedentes patológicos dignos de registo, que apresenta episódio inaugural de sub-oclusão intestinal, consistindo em vómitos de estase, distensão abdominal e aumento de peristaltismo, que se resolveu com tratamento médico. Três meses depois manifesta dor epigástrica intensa e vómitos de estase. Recorreu ao serviço de urgência, onde foi colocada a hipótese de se tratar de pancreatite, contudo os exames laboratoriais e a ecografia abdominal não apontaram para este diagnóstico e teve alta melhorado, embora sem diagnóstico etiológico. Nos dois meses que se seguiram houve perda ponderal significativa num total de 17 Kg, associado a náuseas e vómitos pós-prandiais e dor abdominal tipo cólica intermitentes. Os vómitos pós-prandiais e a dor abdominal tornaram-se constantes, tendo recorrido ao nosso centro. Ao exame objectivo não foram detectadas alterações para além de sinais de desnutrição e de desidratação ligeira.

Analiticamente destacava-se hemograma e coagulação normais, bioquímica sumária normal, ferritina aumentada, marcadores tumorais normais, hormonas tiroideias normais, serologias para VHB, VHC e HIV normais. A endoscopia digestiva alta revelou estase na segunda porção do duodeno. A ecografia abdominal evidenciou conglomerado de ansas com discreto espessamento parietal ao nível do flanco esquerdo. A colonoscopia não encontrou qualquer lesão. Foi solicitado trânsito esofagogastroduodenal que revelou uma zona de estenose, condicionando obstrução parcial, a cerca de 25 cm a jusante do ângulo de Treitz, sugestiva de estenose tumoral. (Fig._1) O estudo prosseguiu com realização de Tomografia Computorizada (TC) abdominal, que confirmou estenose jejunal, associado a espessamento de ansas de jejuno, não se observando nenhuma tumoração. Foi colocada a hipótese de se tratar de uma estenose secundária a uma trombose venosa mesentérica. A existência de antecedente familiar da mesma patologia (irmão) e a ocorrência de tromboflebites de repetição na mãe, fez suspeitar de trombofilia subjacente. No estudo da coagulação encontrou-se diminuição dos níveis de Proteína C (43.6%) e de Proteína S livres (42.9%). O mesmo estudo excluiu défice de antitrombina III e síndrome antifosfolipídico.

O doente foi proposto para cirurgia, cerca de cinco meses após início dos sintomas, tendo-lhe sido administrada heparina de baixo peso molecular nos seis dias prévios (Enoxaparina 40mg). Intraoperatoriamente verificou-se a existência de um conglomerado de ansas jejunais aderentes entre si, condicionando estenose jejunal e dilatação a montante. (Fig._2a_e_2b) Para além disso, era aparente um espessamento do mesentério e ingurgitamento das veias do mesentério a este nível. (Fig._2c) Foi feita uma enterectomia de cerca de 40 cm de jejuno, seguido de anastomose termino-terminal manual. (Fig_2d) No pós-operatório manteve Enoxaparina 40mg até ao 15º dia, associando Varfarina 5mg a partir do sexto dia. Iniciou alimentação ao terceiro dia, com boa tolerância. No oitavo dia iniciou febre associado a citólise hepática (TGP 362; TGO 346; LDH 835), com resolução nos dias seguintes. No 60º dia houve aparecimento de equimoses cutâneas pré-tibiais, que coincidiram com um valor de INR (International Normalized Ratio) de 3,77. Foi reduzida a dose de varfarina para metade, tendo tido alta ao 15º dia assintomático e com valor de INR de 1,91.

O estudo histológico da peça operatória evidenciou a nível da zona de aderência das ansas intestinais um trajecto fistuloso atingindo toda a espessura da parede de uma das ansas intestinais e estendendo-se à subserosa da outra.

Apresentava extensa ulceração da mucosa na zona de estenose macroscópica. Em toda a espessura da parede intestinal identificavam-se vasos sanguíneos muito ectasiados e congestivos, bem como ligeiro infiltrado inflamatório polimorfonuclear, havendo focalmente presença de células histiocitárias com pigmento de hemossiderina. (Fig._3)

Electivamente, o doente repetiu estudo da coagulação que confirmou défice de proteina C. O estudo foi alargado aos restantes elementos da família, tendo sido detectados outros casos da mesma deficiência. (Fig._4) O doente mantém-se assintomático, medicado com anticoagulante oral e com controlo regular do INR.

DISCUSSÂO Em termos gerais a TVM apresenta-se clinicamente sob uma de três formas distintas: aguda, subaguda ou crónica. Na forma aguda a sintomatologia inicial é exuberante e desproporcional aos achados físicos mas com rápida evolução para enfarte intestinal e perfuração com peritonite. Na TVM subaguda a dor abdominal persiste ao longo de dias ou semanas, mas sem enfarte intestinal pelo desenvolvimento de colaterais. Na forma crónica não ocorrem sintomas durante a instalação de trombose, manifestando-se posteriormente por sinais de hipertensão portal. [1] O caso índice ilustra um caso de TVM subaguda, manifestada por dor abdominal e quadro de suboclusão intestinal.

A oclusão intestinal é uma forma rara de manifestação de TVM que resulta do aparecimento de uma estenose isquémica. Ocorre geralmente a nível do intestino delgado, sendo mais frequente no jejuno. [4] O diagnóstico de TVM subaguda é difícil numa fase inicial, pela inespecificidade das manifestações, requerendo um elevado índice de suspeição.

Os achados laboratoriais são inespecíficos, sendo que a leucocitose e a acidose aparecem geralmente numa fase tardia, com isquémia instituída.

Dentro dos exames radiológicos salienta-se a importância da ecografia abdominal com Doppler e TC abdominal com contraste. O ecodoppler dos vasos mesentéricos permite observar o trombo ou anomalia no fluxo visceral, embora seja uma técnica operador-dependente e, nos casos em que a distensão intestinal é importante, a visualização dos vasos mesentéricos torna-se difícil. [5] A TC do abdómen permite segundo alguns autores estabelecer o diagnóstico em 90% dos casos. [6] Os achados típicos consistem em dilatação da veia mesentérica, com defeito de preenchimento que representa o trombo, e parede venosa bem delineada. [5,6] Em alguns casos é ainda evidente a existência de colaterais, ingurgitamento dos vasos mesentéricos e edema do mesentério. [5] Contudo, quando a trombose se restringe aos ramos mais periféricos esse diagnóstico pode ser mais dificultado, muitas vezes sendo visível dilatação e edema das ansas, como neste caso. A existência de ansas com parede espessada ou com captação de contraste e de derrame peritoneal sugerem isquémia intestinal e eventual necessidade de laparotomia. [5] Outros sinais mais raros, mas com prognóstico ominoso são a existência de pneumatose intestinal, ar na veia porta ou pneumoperitoneu. [5] A TC abdominal, para além de permitir avaliar os vasos mesentéricos e o intestino afectado, permite excluir outras patologias abdominais.

A angiografia é um método invasivo que pode ter um papel nos casos equívocos, permitindo, em casos seleccionados, instituir medidas terapêuticas, tais como a instilação de vasodilatadores ou de trombolíticos. [5] Alguns autores consideram a angiografia por TC helicoidal e a angio-ressonância com gadolíneo os primeiros exames a realizar em pacientes com suspeita de TVM.

[5] Ambas as técnicas permitem uma avaliação pormenorizada da circulação mesenteroportal, embora com a desvantagem de não permitirem a avaliação da anatomia extra-vascular.

Apesar dos vários exames complementares, em alguns casos o diagnóstico de TVM, especialmente nos casos de TVM aguda, realiza-se apenas durante a laparotomia ou autópsia.

Na literatura existem relatos de vários outros casos de TVM em que se diagnosticou trombofilia subjacente: défice de proteína C, défice de antitrombina III e síndrome anti-fosfolipídico. [4] O défice de proteína C é uma anomalia genética rara de transmissão autossómica dominante com penetrância incompleta, que pode ser identificada em 0,2-0,4% de indivíduos saudáveis e em 3-4% dos pacientes com trombose venosa. [4] A maioria dos pacientes com deficiência de proteína C são heterozigotos e manifestam o primeiro episódio de trombose venosa antes dos 45 anos de idade, mais frequentemente sob a forma de trombose venosa profunda nos membros inferiores ou tromboembolia pulmonar, ou ambos. [7] A trombose venosa visceral é uma manifestação menos comum. [7] A base do tratamento de TVM sem evidência de necrose intestinal é a anticoagulação que, nos casos em que existe trombofilia subjacente, deverá manter-se a longo prazo. A Varfarinaé um anticoagulante oral que inibe a síntese dos factores de coagulação dependentes da vitamina K (factores II, VII, IX e X e proteínas C e S). As proteínas C e S têm uma semi-vida muito curta e são as primeiras a ser afectadas pela varfarina. Desta forma verifica-se paradoxalmente uma tendência pró-trombótica no início do tratamento com varfarina e que persiste nos primeiros quatro dias.

A varfarina deve ser sobreposta com a heparina nos primeiros dias até obter um INR entre 2 a 3 em dois dias consecutivos. Este regime visa contrariar a tendência pró-trombótica inicial da varfarina e a prevenção da necrose cutânea, que é uma complicação possível durante o início do tratamento com varfarina em pacientes com défice de proteína C. [7] Este caso enfatiza a importância do reconhecimento precoce dos estados de hipercoagulabilidade em pacientes com TVM inexplicada, de forma a intervir atempadamente e de forma conservadora. A terapia anticoagulante, quando instituída precocemente, permite resolver a trombose, preservando a viabilidade intestinal e evitando a necessidade de enterectomia e, ao evitar a recorrência destes eventos, influencia favoravelmente o prognóstico a longo prazo.

A cirurgia está indicada para os casos em que existe evidência clínica ou imagiológica de perfuração ou isquémia intestinal. Esta complicação ocorre geralmente na TVM aguda e o prognóstico correlaciona-se com o comprimento de intestino remanescente após ressecção. Neste caso clínico, foi necessário proceder à enterectomia, à semelhança dos poucos casos publicados que manifestaram estenose intestinal. [4]


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