Risco e Profilaxia do Tromboembolismo Venoso em Doentes Cirúrgicos
INTRODUÇÃO
O tromboembolismo venoso (TEV) é uma doença frequente [1,2] e complexa, de
etiologia multifatorial, representado clinicamente pela trombose venosa
profunda (TVP) e pelo tromboembolismo pulmonar (TEP) [1,3-5]. As bases
fisiopatológicas do TEV têm sido estudadas progressivamente desde 1856, com a
tríade etiológica de Virchow (estase venosa, lesão endotelial e
hipercoagulabilidade) [1,3,5-7]. As principais complicações do TEV são o
síndrome pós-trombótico a longo prazo e a hipertensão pulmonar crónica [8],
para além da mortalidade causada pelo TEP [3-5,7-13].
Na Europa, o TEV é considerado um problema de saúde pública, ocorrendo cerca de
370.000 óbitos anuais por TEP [14]. Nos EUA, o panorama é semelhante,
estimando-se 2 milhões de casos de TVP e 600.000 casos de TEP por ano [15],
enquanto 300.000 morrem por causas relacionadas [14].
De acordo com o Estudo ENDORSE [8], o embolismo pulmonar é causa de 5-10% das
mortes em doentes hospitalizados. O TEV torna-se, assim, uma das maiores causas
de morbimortalidade prevenível em doentes internados, nomeadamente por TEP
[4,5,8,15]. No entanto, a verdadeira incidência de TEV permanece
subestimada5,16.
Os procedimentos cirúrgicos, por si só, acarretam um estado pró-trombótico que
ainda pode ser agravado por outros fatores de risco associados ao doente
[4,6,8,9,12,13,16-18]. Segundo o American College of Chest Physicians (ACCP)
[17], o risco aproximado de TVP em doentes hospitalizados na Cirurgia Geral
varia entre 15 e 40%. Caprini e Arcelus apresentam que 14-16% dos TEV
sintomáticos diagnosticados, no mundo ocidental, ocorrem no pós-operatório,
sendo mais de metade da Cirurgia Geral [12].
Emerge, assim, a necessidade e a indicação da profilaxia do TEV em doentes
cirúrgicos mediante a estratificação do risco [1,5,7,10-12,15,20]. Nas últimas
2 décadas, a sua prevenção tem sido aceite como estratégia efetiva e com boa
relação custo-benefício, sendo recomendada tanto por guidelinesamericanas como
europeias [3,5,7,12,12,15,20]. No entanto, apesar das evidências o
demonstrarem, alguns estudos feitos nesta área têm revelado que a profilaxia do
TEV/TVP tem sido subutilizada [2,3,8,11,15,21]. Segundo o Estudo ENDORSE, no
total dos 32 países avaliados, envolvendo mais de 30.000 doentes cirúrgicos,
64% dos doentes com risco tromboembólico recebiam profilaxia, encontrando-se
Portugal abaixo dessa média com 61% [8].
Perante a importância desta problemática, pelo facto de ser uma causa de
morbimortalidade passível de ser prevenida, é importante a sensibilização da
população médica. Numa realidade local, propõe-se, em doentes cirúrgicos, a
estratificação do risco de TEV, a avaliação da profilaxia e a ocorrência de
eventos trombolembólicos aos 6 meses de follow-up.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram avaliados e acompanhados, de modo prospetivo, 86 doentes, que reuniram os
critérios de inclusão (Quadro_1), admitidos no Serviço de Cirurgia Geral do
Hospital Amato Lusitano da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco (ULSCB),
durante o período de 8 de novembro a 9 de dezembro de 2009. O acompanhamento
foi apenas observacional, sem qualquer intervenção, tendo-se recolhido dados
através de entrevista clínica e consulta de processos clínicos.
O protocolo de investigação foi submetido e aprovado pela comissão de ética da
ULSCB, no qual foi assegurada a confidencialidade e o cumprimento das normas
vigentes no âmbito dos trabalhos de investigação. Os doentes que participaram
no estudo assinaram o consentimento informado. A folha de colheita de dados foi
desenhada de forma a obter os dados que permitiram a estratificação dos doentes
relativamente ao risco de TEV e apurar as medidas de profilaxia.
A estratificação do risco de TEV nos doentes foi obtida de acordo com 2
scoresdos Modelos de Avaliação de Risco (RAM): o elaborado pelo CCVSPC (Tabela
1)[22], e o scoreelaborado por Caprini (RAMCA), atualizado em 2005 [18,20]
(Tabela_2), bem como os regimes profiláticos: scoredo CCVSPC (Tabela_1) e os
critérios do RAMCA (Tabela_3).
O follow-uppor via telefónica decorreu aos 6 meses após internamento, com o
intuito de averiguar se algum evento do espectro do TEV ocorreu. Os doentes
foram abordados de forma similar, acessível e pelo mesmo interlocutor, de forma
a maximizar a imparcialidade e objetividade das respostas.
Para realizar a análise estatística descritiva e correlacional utilizou-se o
Software Estatístico SPSS® versão 17.0 para Microsoft Windows®.
RESULTADOS
Dos 86 doentes analisados no âmbito deste estudo, 52.3% (n=45) correspondem ao
sexo feminino. Os doentes participantes têm em média 62.90 anos de idade, tendo
no mínimo 18 e no máximo 93 anos de idade (Tabela_4). O tempo médio de
internamento foi de 9,24 dias, observando-se no mínimo internamento de 3 dias e
no máximo de 28 dias.
Na Tabela_5, encontram-se os antecedentes pessoais médico-cirúrgicos utilizados
na estimação do risco de TEV para cada doente. Na totalidade dos doentes com
história de neoplasia pregressa ou ativa, 14 tinham neoplasia ativa. Vinte e
oito (32.6%) dos doentes analisados referiam história familiar positiva para
tromboembolismo/trombose venoso, mas nenhum tinha conhecimento acerca da
existência de trombofilias.
Sessenta e oito doentes foram submetidos a procedimentos cirúrgicos (79%), dos
quais 50 foram programados. Pelo Serviço de Urgência, foram internados 36
doentes no serviço, sendo 50% destes submetidos a intervenção cirúrgica
urgente. No cálculo dos graus de risco de TEV, as cirurgias laparoscópicas
foram contabilizadas como cirurgias minorpelo facto de terem duração inferior a
45 minutos. Do total de cirurgias major, 12 correspondiam a cirurgias
oncológicas. Na amostra estudada, 27 doentes (39.7% dos doentes
intervencionados) foram submetidos a modalidades cirúrgicas consideradas de
menor risco (apendicectomias, reparação cirúrgica de hérnias inguinais,
colecistectomias laparoscópicas e tiroidectomias) [12].
Os doentes do sexo feminino ainda foram caracterizados em relação a dados
relevantes relacionados com o sexo: uma das doentes estava grávida, seis
tomavam contracetivos orais (CO) ou terapia hormonal de substituição (THS),
enquanto cinco tinham história de nado-morto, aborto espontâneo recorrente,
parto prematuro com toxémia ou insuficiência placentária.
As tabelas_6 e 7 contêm a classificação dos doentes em graus de risco de acordo
com os scoresapresentados previamente.
A profilaxia farmacológica do TEV foi realizada apenas com uma heparina de
baixo peso molecular (HBPM) - a enoxaparina - em 59 doentes,
correspondendo a 68.6% dos doentes. Segundo o CCVSPC, 70 doentes precisavam de
profilaxia, já que se encontravam nos graus moderado e alto de risco, e 77.1%
deles receberam-na. Mediante o RAMCA, 82 doentes tinham indicação para
profilaxia, tendo sido administrada a 72.0%.
Para se verificar se as classificações de risco são mais elevadas no grupo de
doentes que recebeu profilaxia (independentemente da dose administrada),
aplicou-se o teste de Mann-Whitney, no qual se verificou esse pressuposto com
significância estatística. Os valores de p são, respetivamente, 0.0002 e 0.01,
tendo em conta o RAM do CVSPCG e o RAMCA. A estes dados, acrescenta-se que a
aplicação dos scoresnos doentes estudados apresenta uma correlação positiva
média no coeficiente de Kendall's Tau-B (0.440), estatisticamente
significativa no teste exato de Fisher (p=0.000).
A profilaxia através de meios mecânicos foi aplicada concomitantemente com a
profilaxia farmacológica, nos doentes submetidos a procedimentos laparoscópicos
e aos sujeitos a cirurgia oncológica com necessidade de posição de litotomia.
Relativamente à profilaxia farmacológica, usaram-se doses profiláticas de
enoxaparina de 20mg em 33 (38.4%) e 40mg em 26 (30.3%) doentes.
Na globalidade dos doentes estudados, apenas um apresentou uma contra-indicação
absoluta - hemorragia intracraniana - não recebendo profilaxia
farmacológica do TEV. As contra-indicações relativas, como o uso de aspirina e
o uso de AINE's, por dificuldades na precisão da sua toma na maioria dos
doentes, não foram contabilizadas.
No follow-up, aos 6 meses, 80 (93.0%) doentes referiram não ter tido nenhum
sinal ou sintoma de tromboembolismo nem recorreram ao médico assistente por
esses mesmos motivos. Quatro (4.7%) não atenderam o telefone ou tinham
disponibilizado um contacto telefónico errado. Dois doentes (2.3%) faleceram
por causas não relacionadas com o espectro clínico do TEV.
DISCUSSÃO
O TEV é um problema de saúde pública pertinente por se assumir como uma das
maiores causas de morbimortalidade em doentes hospitalizados e também com um
importante impacto económico pelos custos e gasto de recursos que causa
[5,7,11,13-15,24]. Há mais de vinte anos que se considera que a profilaxia do
TEV reduz o risco relativo pós-operatório de TVP para 75% e reduz o de
Embolismo Pulmonar não-fatal e fatal para 40% e 64%, respetivamente [25].
Apesar da profilaxia adequada ser aceite como efetiva e segura na prevenção do
TEV, os médicos parecem continuar reticentes, havendo comprovada subutilização
[2,3,8,11,21,23-26].
Várias entidades nacionais e internacionais têm-se preocupado com a elaboração
de guidelinese scores- RAM's - para facilitar a
estratificação dos doentes nas respetivas classes de risco
[1,5,7,12,15,17,18,20,21,23,25,28,29]. No entanto, estas guidelinesapresentam
várias desvantagens associadas, que não podem ser ignoradas (tabela_8)
[5,17,29]. Deste modo, a prescrição da profilaxia do TEV continua a ser pouco
baseada nos RAM, devido, por um lado, à inadequada validação e à pouca
adaptação à prática clínica, e por outro, ao fraco conhecimento acerca da
interação dos vários fatores de uma forma quantitativa para se conseguir
determinar a posição de cada doente numa escala objetiva de risco
tromboembólico [17,29]. Vários fatores de risco devem ser contabilizados na
estratificação de risco de TEV, não só no que concerne ao internamento
cirúrgico atual, mas também às comorbilidades e características do doente
[6,12,14,17,18].
A idade é um dos fatores de risco a considerar. Vários estudos apontam para um
aumento da incidência de TEV com o aumento da idade [5,12]. No presente
trabalho, verifica-se que 88.4% dos doentes tem idade superior a 40 anos e
25.6% apresentavam idade superior a 75 anos. No entanto, a idade é um dos
fatores considerados minor(odds ratio<2) [14,31].
Relativamente aos antecedentes médico-cirúrgicos as veias varicosas
apresentavam maior frequência, com 38.4%, seguidas da história pregressa ou
atual de neoplasia (20.9%), da obesidade (18.6%) e história de TEV (15.1%).
Há consenso quanto ao papel das veias varicosas enquanto fator de risco para
TEV [5,7,12,14,18,20,31,32]. Um dos problemas é a subjetividade da avaliação da
gravidade da doença varicosa, fazendo deste um fator de risco minor[31].
As neoplasias acarretam um risco aumentado de TEV [5,7,12,14,18,20,31,32] de
modo que um doente oncológico sujeito a procedimentos cirúrgicos tem 2 a 5
vezes mais risco de TEV pós-operatório [1,2]. O risco difere conforme o tipo de
cancro (gástrico, pancreático, ginecológico, renal e colorectal, apresentam
maior risco), e a sua classificação [12]. Na amostra estudada todos os doentes
oncológicos (excluindo aqueles somente com história anterior de cancro) tinham
um dos tipos oncológicos de maior risco.
A obesidade é um fator de risco menos consensual, mas parece que o risco de TEV
aumenta quando o IMC>29kg/m2 e perímetro abdominal >100cm5. Na amostra, a
maioria dos doentes apresenta um IMC>25Kg/m2 (62.6%), passando a ser o
principal fator de risco presentes nos doentes estudados, considerando IMC
>25Kg/m2 (segundo o RAMCA).
Doentes com um evento prévio de TEV têm grande risco de recorrência,
particularmente quando expostos a outros fatores de risco [5,31]. Na amostra
estudada, 15.1% tinham esse risco.
A história familiar de trombose/tromboembolismo é das informações mais
complicadas de obter, pela sua subjetividade, e ainda que relevante é
frequentemente esquecida na estratificação do risco [12,13,18].
O tipo de cirurgia a que os doentes são sujeitos constitui um fator preditivo
de TEV, sendo de maior risco as ortopédicas e as neurocirúrgicas [12]. No
entanto, a Cirurgia Geral comporta várias modalidades de grande risco, como a
cirurgia majorabdominal e a oncológica [12]. Segundo as definições associadas
aos scoresutilizados, 44.2% dos doentes foram submetidos a cirurgias major.
A profilaxia do TEV na cirurgia laparoscópica continua controversa [33]. O
pneumoperitoneu e a posição de Trendelenburg condicionam a coexistência de
todos os elementos da tríade de Virchow, sugerindo-se que a tromboprofilaxia
farmacológica e a mecânica sejam semelhantes às usadas na cirurgia aberta [34].
No presente estudo, foram submetidos 11.6% dos doentes a cirurgia
laparoscópica, mas todas num tempo inferior a 45 minutos, daí serem
contabilizadas como minorno cálculo do risco de TEV. Nestes doentes aplicou-se
a profilaxia mecânica através de meios de contenção elástica.
Neste estudo, utilizaram-se dois RAM's: o elaborado por Caprini et
al.para doentes cirúrgicos e médicos [18,20], e o elaborado pelo CCVSPC em 2009
[22]. Existem algumas diferenças entre os dois sistemas, nomeadamente, o
scoredo CCVSPC apresenta 3 graus de risco, enquanto Caprini apresenta 4, ao
acrescentar "muito elevado" risco. Salienta-se que nenhum dos
RAM's contempla como fator de risco o tipo de anestesia, quando segundo o
ACCP, na ausência de tromboprofilaxia o risco de TVP é superior nos doentes
submetidos a anestesia geral [17]. A inclusão do scoredo CCVSPC neste estudo
prendeu-se, primeiro, pela necessidade de avaliar a sua aplicabilidade numa
população de doentes, uma vez que não se encontrou, na literatura pesquisada,
um estudo que incidisse nesse score. Sendo um scoreproposto por um grupo de
trabalho português apresenta toda a vantagem de ser aplicado numa população
portuguesa. A sua comparação com o scorede Caprini permitiu uma avaliação,
ainda que subjetiva, da estratificação do risco para tromboembolismo venoso.
A administração da profilaxia aparenta estar mais concordante com a
estratificação de risco do CVSPCG, sendo administrada numa percentagem
considerável em doentes em risco (77.1%).
Aos 6 meses de follow-up, nenhum evento tromboembólico foi referido pelos
doentes aquando da entrevista telefónica, de modo que nenhuma correlação
estatisticamente significativa foi possível. Vários fatores condicionam este
resultado, nomeadamente a manifestação subclínica do TEV, e quando acompanhado
de sintomas, estes serem inespecíficos e desvalorizados pelos doentes e
clínicos [5,7,12,13,16,28]. Este estudo apresenta algumas limitações,
nomeadamente o tamanho da amostra e o tempo de follow-upde 6 meses.
Apesar destes aspetos, verificou-se uma aparente melhoria do uso da profilaxia
do TEV face a estudos anteriores. Torna-se pertinente desmistificar o risco
hemorrágico associado à tromboprofilaxia e enfatizar os dados epidemiológicos
que demonstram que o TEV se assume como uma das primeiras causas de morte
intra-hospitalar prevenível [15].
CONCLUSÕES
A profilaxia farmacológica para o tromboembolismo venoso é ainda subutilizada.
Parece haver uma melhoria de utilização de profilaxia em doentes cirúrgicos,
comparada com a descrita no Estudo ENDORSE, no entanto, mantém-se inferior à
observada noutros países europeus. Do total, entre os 75.6% dos doentes com
risco tromboembólico elevado, a profilaxia foi administrada e 77.1%. O scoredo
CCVSPC é facilmente aplicado, podendo ser uma ferramenta de primeira escolha
para estratificação do risco de tromboembolismo venoso nos serviços de
Cirurgia. Não foram verificados eventos tromboembólicos no período em estudo.