Ensaios Clínicos: Contextualização abreviada e alguns desafios
INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA
Ensaios Clínicos - Contextualização abreviada e alguns desafios
Alexandre Quintanilha
Universidade do Porto
Correspondência
Stephen Toulmin publicou, em 1982, um artigo ambicioso com o título
provocatório How Medicine Saved the Life of Ethics. Um dos objetivos principais
deste artigo era o de ilustrar de que forma a ética biomédica tinha conseguido
voltar a dar relevância às discussões frequentemente abstratas da ética
analítica e aos debates, por vezes demasiado teóricos, entre as várias escolas
do pensamento ético.
Se recuarmos umas décadas, torna-se claro que foram acontecimentos que tiveram
lugar durante as décadas de 30 e 40 do século passado, que sensibilizaram os
governos e as sociedades para a necessidade de protocolos muito mais rigorosos
sobre diversos domínios da investigação, e das suas aplicações, que tivessem
impacto direto e crescente sobre os seres vivos e sobre o planeta. Não só em
relação ao enorme sucesso do Projeto Manhattan nos EUA e as preocupantes
previsões do perigo nuclear que daí resultaram, como também em relação à
informação emergente sobre o tipo de experiências "biomédicas" que
tinham sido feitas na Alemanha durante a segunda guerra mundial. Em certos
casos essas experiências tinham sido iniciadas no princípio dos anos 30 e
continuaram muito para além de 1945.
Foi sobretudo através do "Julgamento dos Médicos" em Nuremberga1, na
Alemanha, que se tornou público o que tinha sido feito nos campos de
concentração. Experiências feitas em "indesejáveis" envolvendo, por
exemplo, hipotermia para descobrir mecanismos de proteção dos soldados alemães
na frente russa durante o inverno. Ou em câmaras de descompressão para medir os
efeitos sobre pilotos de voos em elevadas altitudes, ou ainda a utilização de
níveis de radiação elevados ou injecção vaginal de substâncias tóxicas como
métodos rápidos e eficientes de esterilização ou da interrupção da gravidez em
mulheres consideradas "inferiores". E ainda as infeções forçadas e as
disseções cirúrgicas em gémeos para analisar as diferenças e as semelhanças daí
resultantes. Estes relatos e a informação que se vinha a acumular sobre o que
se passava em outros locais no Japão e na União Soviética, chocaram de tal
maneira o mundo civilizado que levaram à publicação, em 1947, de um memorando
sobre o que se considerava serem experiências médicas permissíveis, e que veio
a ser conhecido como o "Código de Nuremberga". Questões cruciais como
o consentimento voluntário dos pacientes, o evitar o seu sofrimento
desnecessário e a convicção razoável de que a experimentação não resultasse na
sua morte ou invalidez, constituíam parte integrante desse documento. Apesar de
nunca ter sido integrado nem na legislação europeia nem na americana, esse
documento teve um impacto importante. A "Declaração Universal dos Direitos
Humanos" adotada um ano mais tarde, em 4948, faz referência explícita a
muitos dos pontos já incluídos no Código de Nuremberga.
No mesmo ano de 1948 surge a "Declaração de Genebra" aprovada pela
Associação Médica Mundial que, um ano mais tarde, em 1949, aprova o
"Código Internacional de Ética Médica". Foram, no entanto,
necessários mais quinze anos para que, em 1964, surgissem as primeiras
recomendações claras sobre investigação biomédica envolvendo seres humanos, na
primeira formulação da "Declaração de Helsínquia". Várias revisões
significativas deste documento surgiram em 1975 em 2000 e a última em 2008. A
de 1975 reforça a noção de consentimento livre e informado do paciente,
introduz preocupações ambientais, assim como a do bem-estar animal (em estudos
pré-clínicos) e da importância da existência de um comité independente de
monitorização.
A revisão de 2000 foi muito mais controversa, particularmente no que diz
respeito a ensaios clínicos nos países em vias de desenvolvimento, insistindo
de forma inequívoca sobre a necessidade dos benefícios, riscos e eficácia dos
novos métodos serem sempre testados em comparação com os melhores métodos
profiláticos, de diagnóstico ou de tratamento existentes na altura. E da
necessidade de assegurar que todos os pacientes que tenham participado em
ensaios clínicos possam vir a ter a garantia de acesso aos melhores métodos
identificados no estudo. O resultado destas revisões foi o de a U.S. Food and
Drug Administrationretirar das suas orientações qualquer referência à
Declaração de Helsínquia enquanto que a Diretiva Europeia sobre Ensaios
Clínicos passar a fazer referência na sua revisão de 2008.
Em grande parte porque se assumia que, no mundo ocidental, e em particular nos
EUA, era impossível imaginar situações semelhantes às da Alemanha, do Japão e
da União Soviética dos anos 30 e 40. Só no início dos anos 70 é que o governo
americano resolveu estabelecer um painel para analisar o escandaloso estudo
sobre a sífilis iniciada em 1932 em Tuskegge, no Alabama. Este estudo foi
denunciado em 1972 (tendo já sido denunciado no seio dos serviços de saúde seis
anos antes) por Peter Buxtun, um jovem assistente social contratado pelo US
Public Health Service. Espantosamente, as revelações, em publicações com grande
visibilidade no mundo médico, de Henry Beecher (1966) e de D. Pappworth (1968)
sobre a situação nos EUA e no Reino Unido no que se refere a ensaios biomédicos
altamente questionáveis, tanto do ponto de vista ético como científico, tiveram
um impacto relativamente reduzido. O "Final Report of the Tuskegee
Syphilis Study" foi publicado em Abril de 1973; as suas conclusões eram
devastadoras não só para a classe médica em geral mas também para a visão da
sociedade americana sobre si própria. Recorde-se que este mal-afamado estudo
tinha como objetivo observar a progressão natural da sífilis não-tratada em 399
afro-americanos, e que foi só em 1974, quarenta e dois anos depois do seu
início, que o estudo foi terminado. Não só os participantes não tinham sido
informados da sua inclusão no estudo, como mesmo depois da descoberta, nos anos
40, de que a penicilina poderia curar a doença, nenhum deles foi tratado. Em
numerosos casos, antes de morrerem, infetaram as suas mulheres e os filhos que
entretanto nasceram. E foram necessários mais vinte e tal anos para que o
presidente Bill Clinton emitisse, em 1997, um pedido formal de desculpa, em
nome do governo, às vítimas.
Uma das consequências diretas da publicação desse relatório foi a criação da
National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and
Behavioural Research, comissão essa que nos quatro anos da sua existência
publicou perto de uma dúzia de relatórios, o mais significativo dos quais (o
último), publicado em Abril de 1979, ficou conhecido como o "Relatório
Belmont". Reconhecendo explicitamente a imoralidade do estudo sobre a
sífilis de Tuskegge e fazendo múltiplas referências ao Código de Nuremberga e à
Declaração de Helsínquia, este Relatório identifica os princípios éticos
básicos de respeito pelas pessoas, da beneficência e da justiça que devem
basear todas as deliberações éticas futuras sobre investigação que envolva
pessoas. Sem fazer recomendações específicas, limita-se a salientar que o
respeito pelas pessoas significa consentimento livre e informado, beneficência
implica análise de benefício/risco e justiça requer equidade e imparcialidade
na seleção dos participantes.
Antes do advento da internet e do mundo digital em toda a sua multiplicidade,
não nos deve surpreender, que no fim dos anos 70, as questões de privacidade e
de confidencialidade não tenham sido preocupações do Relatório Belmont.
Atualmente a investigação em humanos cobre uma vasta área de domínios que vão
desde estudos biológicos (incluindo genéticos), psicológicos, pedagógicos e
sociais1. Mas são os ensaios no domínio da bio-medicina que, pela sua
diversidade e complexidade crescentes, levantam a maioria das questões éticas.
A experimentação clínica, por seu lado, inclui ensaios relacionados com o
tratamento, com a prevenção, com o diagnóstico e rastreio e com a qualidade e
"suporte/apoio" de vida. Os ensaios para o tratamento são, no
entanto, os mais frequentes.
A descoberta e subsequente pedido de concessão de patente de qualquer novo
fármaco envolve estudos pré-clínicos feitos in vitro,ou em culturas celulares e
in vivo,feitos em animais. O detentor da patente terá de desenvolver e
comercializar o novo fármaco rapidamente de modo a poder tirar o maior proveito
económico possível do seu investimento, geralmente avultado, nessa descoberta.
Esse desenvolvimento envolve a resolução de várias questões. Entre elas podemos
considerar as seguintes: i) formulação do veículo (que normalmente envolve a
sua combinação com outros compostos, supostamente não-ativos); ii) dosagem
(quantificação das doses e da duração do tratamento); iii) método de aplicação
(injeção, pílula, inalaçãoâ¦); e segurança (identificação de efeitos
secundários, riscos, contra-indicaçõesâ¦).
Ensaios clínicos em humanos, que demonstrem inequivocamente a sua segurança e
eficácia, são exigidos pelos governos antes do fármaco ser aprovado para
comercialização. Estes ensaios envolvem normalmente cinco fases distintas1.
Uma Fase 0 (zero), questionada por alguns, e que consiste em testar o novo
fármaco pela-primeira-vez-em-humanos (fazendo um by-passaos estudos em animais)
usando doses sub-terapeuticas com o objetivo de verificar e confirmar os
efeitos sobre o alvo principal, mas tentando garantir riscos mínimos para os
participantes no estudo. O número de participantes nesta fase é bastante
reduzido. Apesar de haver ainda pouca experiência os participantes só raramente
são negativamente afetados nesta fase dos estudos.
A Fase I, normalmente envolve um grupo pequeno (várias dezenas) de voluntários
saudáveis sendo que o estudo deverá ser realizado num local onde os
participantes possam ser acompanhados e observados em regime de full-time. O
objetivo é testar não só a segurança e a tolerabilidade, mas também a
farmacodinâmica (nomeadamente quais as múltiplas formas do corpo reagir ao
fármaco) e a farmacocinética (a forma como o corpo metaboliza o fármaco) do
novo composto. O principal obstáculo, nesta fase do estudo, é conseguir
recrutar um número suficiente de voluntários saudáveis (particularmente nos
paízes "desenvolvidos").
A Fase II envolve um número maior de participantes (algumas centenas) e
prolonga a análise da segurança iniciada na Fase I ao mesmo tempo que analisa
de forma mais robusta a eficácia do novo fármaco. É durante esta fase que
frequentemente o desenvolvimento de novos compostos falha, por variadíssimas
razões: ou porque não atua da forma prevista, ou por demonstrar simultaneamente
efeitos secundários graves.
A Fase III consiste no estudo randomizado e controlado em grupos bastante
maiores (normalmente na ordem dos milhares e em vários países) de pacientes
para determinar de forma estatisticamente robusta a segurança e a eficácia do
composto. Nesta fase, de entre os vários grupos de participantes, a um deles é
administrado um placebo (ou o tratamento correntemente aprovado, se existir).
Dado o grande número de participantes envolvidos, a complexidade da análise e,
em geral, a sua longa duração, esta fase envolve investimentos significativos.
A utilização de placebo é também um assunto que continua a levantar grandes
discussões precisamente na interface entre a ciencia e a ética.
A Fase IV é normalmente a de acompanhamento e vigilância pós-comercialização do
composto. Sofre muitas vezes de falta de transparência e de alguma dificuldade
na interpretação dos resultados.
Como não nos deve surpreender, é longa a lista de preocupações que, na
interdependência entre a ciência e a ética, determinam a autorização de ensaios
clínicos na Europa. Desde questões relacionadas com a competência técnica e
ética dos investigadores médicos envolvidos, a confidencialidade dos dados
pessoais dos participantes e dos resultados obtidos, até à certificação dos
centros onde os estudos são conduzidos, a Comissão de Ética para Ensaios
Clínicos (CEIC) é o órgão que, em Portugal, analisa em pormenor os pedidos que
são apresentados pelos vários promotores. A Europa tem também vindo a atualizar
regularmente as suas diretivas sobre ensaios clínicos (estando em curso uma
dessas atualizações) que subsequentemente são transcritas para as legislações
nacionais.
Os temas das "Boas Práticas Clínicas e/ou Científicas" ou da
"Investigação Responsável", assim como o da "Fraude,
Falsificação e Plágio" poderiam certamente ser alvo de uma longa análise,
e por isso não me irei alongar sobre esse aspeto importantíssimo dos ensaios.
Duas questões preocupam-me particularmente.
Uma delas tem a ver com o documento denotado como "consentimento livre e
informado" que os participantes devem subscrever antes da sua inclusão em
qualquer ensaio. É minha convicção, cada vez mais forte, de que, no seu formato
atual, e dada a extensão e complexidade do texto, a assinatura deste documento
não garante, num numero muito significativo de casos, nem uma decisão
"livre" nem particularmente "informada". Apesar dos enormes
avanços no acesso a informação médica (detalhada e complexa) na Internet e no
Ciber-espaço, e da mais que evidente busca dessa informação pelo público em
geral, muitos são certamente aqueles que preferem confiar na explicação e
opinião do seu médico para decidirem se participam ou não num ensaio clínico.
Esta confiança é essencial e pode ser extremamente válida, mas não ultrapassa
completamente a suspeita da possibilidade da existência de interesses, mais ou
menos claros, vindos dos mais variados sectores. No caso de participantes
crianças ou incapazes, estas questões tornam-se ainda mais complexas. Seria
extremamente bem-vindo um modelo simples, curto e conciso desse
"consentimento".
Outra questão preocupante e que também não é nova, surge na sequência de
afirmações muito recentes2 de Janine Clayton, diretora do Office of Research on
Women's Health at the National Institute of Healthnos EUA. Ela confirma o
acumular de evidência relativamente a diferenças significativas de género no
que diz respeito aos efeitos e à duração dos mesmos em relação a um número
crescente de fármacos. As diferenças de género não são consistentes, e podem ir
em direções opostas; o efeito de algumas, como o Verapamil (contra a pressão
arterial alta) e o antibiótico eritromicina, pode ser maior nas mulheres,
enquanto que elas saem de anestesias mais rapidamente (e com efeitos
secundários mais frequentes) do que os homens. Outras investigadoras (Wesley
Lindsay) sugerem2 que estas diferenças possam estar associadas às flutuações
hormonais mensais, a diferenças entre mecanismos metabólicos no fígado, no
funcionamento renal ou até na concentração de enzimas gástricas. Certos
compostos, por serem mais lipofílicos, permanecem no corpo das mulheres (onde
os níveis de tecido gordo em geral são mais altos) durante mais tempo.
Preocupante é também o facto de que a maioria dos investigadores (perto de 90%,
na opinião de Kathleen Sandberg2, diretora do Centre for the Study of Sex
Differences in Health, Aging and Disease at Georgetown Universityem Washington
DC) continuam a estudar modelos animais masculinos de doença nos estudos pré-
clínicos.
Uma parte significativa do material incluído neste artigo foi condensada do
excelente texto de Briggle e Mitcham1, que recomendo pela clareza e pela forma
isenta e concisa como trata do tema.