Investigação clínica em dispositivos médicos
INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA
Investigação clínica em dispositivos médicos
Eurico Castro Alves
Presidente do Conselho Directivo do INFARMED
Correspondência
DISPOSITIVOS MÉDICOS E TECNOLOGIAS EMERGENTES
Cobrindo uma vasta gama de produtos, os dispositivos médicos têm um papel
essencial em saúde. Desde um simples penso rápido aos mais sofisticados
produtos de apoio à vida, o setor dos dispositivos médicos desempenha um papel
crucial no diagnóstico, prevenção, controlo e tratamento de doenças e na
melhoria da qualidade de vida das pessoas.
A diversidade e a capacidade de inovação do setor têm contribuído também, e de
forma significativa, para melhorar a qualidade e a eficácia no âmbito da
cirurgia.
Combinado com o desenvolvimento e aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas
minimamente invasivas1, as novas gerações de dispositivos médicos veem oferecer
aos pacientes tratamentos melhorados, melhores prognósticos e tempos de
recuperação reduzidos.
A revolução laparoscópica em cirurgia minimamente invasiva abriu um novo
capítulo na história da cirurgia, caracterizada por mudanças rápidas à medida
que a tecnologia subjacente evolui. Novas técnicas estão em desenvolvimento,
todas com o potencial para gradualmente substituir ou melhorar os procedimentos
tradicionais por via aberta.
Neste âmbito, o recurso à robótica2 tem um especial impacto, sobretudo em áreas
que requerem precisão e reprodutibilidade, como por exemplo a neurocirurgia, a
cirurgia cardíaca e a artroplastia do joelho e anca.
Um exemplo bem conhecido é o sistema da Vinci3, que vem permitir ao cirurgião o
controlo de todos os aspetos da cirurgia com o apoio da sua plataforma
robótica, conferindo a precisão e reprodutibilidade necessárias, resultando
numa melhoria considerável nos resultados obtidos e na recuperação do doente.
Também o contributo da nanotecnologia4,5 para uma melhoria das características
físicas e biológicas dos instrumentos cirúrgicos convencionais tem conduzido a
um desempenho (cirúrgico) aumentado. Refira-se como exemplo, os instrumentos
com nanocamadas de diamante, tais como lâminas e agulhas, que permitem melhorar
tanto a redução na adesão física dos tecidos como a inércia química.
Este contexto de tecnologias emergentes tem vindo a constituir um desafio à
regulação dos produtos inovadores daí resultantes, em particular pela procura
da evidência clínica necessária enquanto suporte à sua segurança e desempenho.
CONTEXTO REGULAMENTAR
Os dispositivos médicos são alvo de regulação na Europa desde o início da
década de 19906,7 a qual, Portugal tem acompanhado com a transposição das
respetivas diretivas para a legislação nacional (atualmente o Decreto-Lei 145/
2009 de 17 de junho).
Tal legislação veio impor regras a que devem obedecer, o fabrico, a
comercialização, a entrada em serviço e a vigilância de dispositivos médicos.
Assim, ao colocar um dispositivo médico no mercado, o fabricante deve
demonstrar, através da utilização de procedimentos de avaliação adequados, que
o dispositivo está em conformidade com os requisitos essenciais relevantes em
matéria de segurança e desempenho.
Em geral, de um ponto de vista clínico, o fabricante tem de demonstrar que o
dispositivo alcança o desempenho pretendido em condições normais de utilização,
e que os riscos conhecidos e previstos, e quaisquer eventos adversos, são
minimizados e aceitáveis quando comparados com o benefício do desempenho
pretendido, e que todas as indicações associadas ao dispositivo relativas ao
seu desempenho e segurança (por exemplo, na rotulagem e instruções de uso) são
suportados pela evidência adequada8.
EVIDÊNCIA CLÍNICA NO PRÉ-MERCADO
A avaliação clínica de dispositivos médicos é assim um requisito obrigatório
previsto na legislação, de forma a verificar a sua segurança e desempenho,
constituindo um processo de atualização contínuo ao longo do ciclo de vida
destes produtos.
A realização de investigação clínica9, enquanto processo científico que
representa um método para gerar dados clínicos é obrigatório para os
dispositivos implantáveis e de alto risco (classe III), salvo se justificar
adequadamente a confiança em outros dados existentes.
No entanto, dependendo das indicações para a utilização do dispositivo médico,
dos resultados da gestão de risco e dos resultados da avaliação, estas
investigações clínicas também podem ser realizadas para dispositivos não
implantáveis de baixo e médico risco (classes I, IIa e IIb)10.
De forma a cumprir ainda a legislação nacional e comunitária, as investigações
clínicas de dispositivos médicos pressupõe também que o promotor (fabricante)
cumpra com os princípios éticos estabelecidos pela Declaração de Helsínquia e
seguir as boas práticas clínicas.
Estas boas práticas são um conjunto de requisitos normativos, reconhecidos a
nível internacional, que tem de ser respeitados na conceção e na realização das
investigações clínicas, nomeadamente através da norma EN ISO 14155:201111.
EVIDÊNCIA CLÍNICA NO PÓS-MERCADO
Quando os resultados obtidos através de investigação clínica são limitados, a
evidência deverá ser compensada por estudos de acompanhamento clínico pós-
comercialização (post-market clinical follow up studies - PMCF).
Estes estudos12 vêm permitir a revisão de questões tais como o desempenho e/ou
de segurança a longo prazo, a ocorrência de eventos clínicos (ex: reações de
hipersensibilidade tardias, tromboses), eventos particulares para populações
específicas de pacientes, ou o desempenho e/ou segurança do dispositivo num
grupo mais representativo de utilizadores e pacientes.
As circunstâncias que podem justificar a realização dos estudos PMCF incluem,
entre outras: produtos inovadores, de risco elevado associado, por exemplo à
conceção do dispositivo, aos materiais, aos componentes, à invasibilidade e a
procedimento clínico e resultados de qualquer investigação clínica prévia,
incluindo acontecimentos adversos ou de atividades de monitorização de mercado.
INVESTIGAÇÃO CLÍNICA EM PORTUGAL
Em Portugal, a realização de investigações clínicas, que visam a colocação de
dispositivos médicos no mercado, são de notificação obrigatória à autoridade
competente13, o INFARMED, I.P..
Esta notificação deve incluir, entre outros: o plano de investigação clínica, a
brochura do investigador, documento para obtenção do consentimento livre e
esclarecido, os seguros estabelecidos, opinião do comité de ética para a saúde
competente, a autorização da instituição onde decorre o estudo e a declaração
de conformidade com os requisitos essenciais.
A avaliação e investigação clínica de dispositivos médicos têm merecido de uma
especial atenção nos últimos anos, por parte das autoridades competentes e
Comissão Europeia, sendo uma das áreas que sofrerá um maior impacto no âmbito
da revisão da legislação de acordo com a nova proposta de regulamento europeu
14,15.
Neste contexto, enquanto autoridade nacional do medicamento e produtos de
saúde, o Infarmed tem acompanhado e participado ativamente no debate europeu,
através dos grupos de trabalho - contribuindo para o desenvolvimento da base de
dados europeia de investigação clínica de dispositivos médicos, na elaboração
de guidelinese na apresentação de propostas de alteração da legislação
comunitária.
Ainda recentemente, o Infarmed organizou, em Lisboa, um workshopentre dois
grupos europeus, um responsável pela investigação clínica de dispositivos
médicos e outro pelos ensaios clínicos de medicamentos de uso humano. Este
encontro constituiu uma oportunidade de estimular a cooperação mútua entre as
duas áreas, uma vez que a sua fronteira tem vindo a estreitar-se e dado estarem
atualmente em revisão os dois quadros regulamentares que as envolve.
O evento, contou com a presença de representantes das autoridades competentes
de 14 países, da Comissão Europeia e da Agência Europeia do Medicamento (EMA na
sigla inglesa).
CONCLUSÃO
O desenvolvimento da investigação clínica é assim um importante contributo para
o acesso do cidadão e profissionais de saúde a dispositivos médicos mais
seguros, eficazes e inovadores.
Este facto torna-se evidente face aos desafios que têm vindo a transformar, de
forma significativa nas últimas décadas, os modelos de prestação de cuidados de
saúde e os processos de inovação, por via das mudanças demográficas e sociais
aliadas ao progresso científico.
No atual contexto socioeconómico europeu, a área dos dispositivos médicos pode
também constituir um fator de desenvolvimento económico.
De acordo com uma comunicação recente da Comissão Europeia16, os dispositivos
médicos, que permitem, entre outras vantagens, um diagnóstico precoce, um uso
doméstico, cirurgias minimamente invasivas e podem constituir uma alternativa a
uma hospitalização sistemática ou de longo termo, representavam em 2011 cerca
5% das despesas em saúde dos Estados Membro.
Tais vantagens conferem aos dispositivos médicos um enorme potencial para
contribuir, de forma significativa, para a sustentabilidade e eficiência dos
sistemas de saúde a longo prazo e, terem um impacto positivo na produtividade e
competitividade da economia da União Europeia.