Ensaios clínicos académicos
INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA
Ensaios clínicos académicos
Maria Emília Monteiro
Médica. Professora Catedrática de Farmacologia da Universidade Nova de Lisboa.
Membro da CEIC. Coordenador da PtCRIN
Correspondência
A inclusão deste tema na revista Portuguesa de cirurgia é uma manifestação de
que os cirurgiões portugueses, ou pelo menos os editores da revista, estão
alinhados com as tendências mais atuais da investigação clínica mundial. De
fato, o tema dos ensaios clínicos académicos têm suscitado iniciativas
internacionais recentes1,2 que configuram uma evolução no paradigma na
investigação.
O objetivo deste texto é incentivar os cirurgiões a identificarem questões
pertinentes da sua prática clínica, e a formulá-las como hipóteses a testar em
estudos clínicos da sua iniciativa. Tem ainda como objetivo a identificação de
alguns iniciativas disponíveis em Portugal para o apoio aos ensaios clínicos de
iniciativa do investigador como por exemplo a PNEC1 e a PtCRIN - Portuguese
Clinical Research Infrastructure Network2. No contexto do presente número da
revista, o leitor poderá considerar este capítulo redundante com os conteúdos
de outros. É inevitável porque os ensaios clínicos académicos são um dos
últimos passos do processo de translação da investigação clínica à pratica
assistencial e na área da cirurgia, indissociáveis dos dispositivos médicos,
dos ensaios clínicos e obviamente dos doutoramentos.
Entende-se por ensaio clínico académico ou ensaio de iniciativa do investigador
(IDCT, investigator driven clinical trial), o ensaio (estudo clínico com
intervenção por oposição aos estudos observacionais) desenhado por
investigadores e promotores sem interesses comerciais. Referimo-nos, por
exemplo, a universidades, associações de doentes, grupos temáticos de
investigação e unidades de saúde. Estes ensaios destinam-se a adquirir
conhecimento e produzir evidência científica que melhore a prestação de
cuidados de saúde. Normalmente não são atrativos sob o ponto de vista da
indústria e podem inclusivamente ser contrários a interesses comerciais
instalados . Os exemplos mais típicos de ensaios académicos são: estudos em
doenças raras, estudos de "proof-of-concept", comparações entre
intervenções terapêuticas ou diagnósticas, novas indicações para fármacos e
intervenções cirúrgicas. As intervenções cirúrgicas em sentido estrito
(independentes da utilização de dispositivos médicos) como não são objeto do
interesse das companhias farmacêuticas e do enquadramento legal do
"medicamento experimental" típico dos ensaios clínicos, são um
domínio, por excelência, dos IDCT. Os IDCT têm por isso um âmbito mais alargado
que os promovidos pela indústria e em conjunto com os estudos observacionais,
respondem a problemas dos prestadores de cuidados de saúde para os quais não há
instrumentos alternativos.
A expressão quantitativa dos ensaios académicos em Portugal , comparativamente
com os promovidos pela indústria farmacêutica, é insignificante (Figuras 1 e
2).
Em dezembro de 2012 , 20% dos ensaios clínicos registados na Europa (EudraCT)
figuravam como "non-commercial"3. Os países nórdicos já em 2006
apresentavam uma % superior a 30% que tem vindo a aumentar4. A Irlanda tem
cerca de 10% de IDCT num universo de mais de 100 ensaios clínicos novos
anuais5. Nos últimos 4 anos, a Comissão de Ética para a Investigação Clínica
(CEIC) que emite, juntamente com o INFARMED, as autorizações para a realização
de ensaios clínicos, recebeu apenas um pedido de avaliação de um ensaio clínico
académico numa área próxima à cirurgia.
CONSTRANGIMENTOS E OPORTUNIDADES
Muitos poderão ser os fatores que contribuíram para o distanciamento de
Portugal relativamente aos países ocidentais europeus sob o ponto de vista dos
indicadores de ensaios clínicos académicos. Não conheço nenhum estudo que se
tenha debruçado sobre o assunto, especificamente, mas os IDCT acumulam todos os
constrangimentos dos ensaios clínicos comerciais (eg, falta de infraestruturas
e capacitação das unidades de saúde, etc.) com o fato da legislação que regula
os ensaios clínico estar completamente orientada para os comerciais e ainda com
constrangimentos clássicos da investigação clínica académica.
Contudo, o contexto atual português, com maior sensibilização dos diferentes
intervenientes para a importância dos ensaios clínicos e para a
sustentabilidade do sistema nacional de saúde e da investigação, com
iniciativas nacionais de apoio às infraestruturas e recomendações
internacionais a nível legislativo, constitui uma oportunidade única de
ultrapassar ativamente os constrangimentos.
É frequente atribuir a falta de competitividade nacional na realização de IDCT
aos aspetos regulamentares (o argumento da dificuldade de efetuar seguros para
os doentes é um exemplo clássico) e às infraestruturas. Contudo, no meu
entender, as limitações mais importantes à criação de IDCT e particularmente na
área da cirurgia, são mais profundas e incluem: a formação, a motivação e o
enquadramento da atividade clínica. Nos parágrafos seguintes tentarei
justificar a minha opção e abordarei ainda os constrangimentos regulamentares
específicos dos ensaios clínicos. Mencionarei também soluções e iniciativas já
em curso que são motivos de otimismo no panorama nacional.
Formação
A investigação é uma atividade muito competitiva que tal como a prestação de
cuidados cirúrgicos requer formação própria e treino permanente. Tem início com
o doutoramento e não se avalia pelos cursos, publicações nacionais (ainda que
indexadas no pubmed! ) ou abstractssem avaliadores exigentes. A investigação
quantifica-se pelo seu impacto e "vive-se" ao lado de mentores
disponíveis que desenham projetos, os implementam com financiamento competitivo
e que discutem os seus resultados com os pares na comunidade internacional. O
número de doutorados nas especialidades cirúrgicas em Portugal tem aumentado,
mas a continuidade da atividade científica pós-doutoramento é muito escassa. A
ausência de verdadeiros mentores científicos que são cirurgiões e estão
disponíveis para a formação de novas gerações é impercetível. Os programas de
doutoramento estruturados, os mestrados internacionais na área da investigação
clínica, as atividades de programas como o Harvard Medical School Portugal
(Clinical Scholars Research Training Program; Junior and Senior Clinical
Research / Career Development programa), o syllabuspara a formação em ensaios
clínicos da PharmaTRAIN/ECRIN (Clic position paper6) são atividades recentes,
que decorrem em Portugal e que de algum modo tentam colmatar a falta de
mentores.
Motivação
Os ensaios clínicos comerciais são talvez as únicas atividades de investigação
que incluem incentivos económicos para os investigadores. Os IDCT não só não os
têm como, à semelhança do que acontece com a generalidade da investigação
científica, requerem uma enorme pró-atividade dos investigadores responsáveis
para angariarem financiamento. A satisfação intelectual que a criação
científica possa eventualmente despertar individualmente, em oposição à rotina
na prestação de cuidados de saúde, não constitui obviamente a motivação
necessária para desenvolver IDCT. O reconhecimento pelos pares, a progressão na
carreira, o financiamento para a investigação e a discriminação positiva
(alocação de tempo e de recursos, etc.) da investigação científica de
excelência nas unidades de saúde são incentivos fundamentais para o seu
desenvolvimento. A insignificante ponderação da investigação científica nos
concursos é um problema clássico que embora consensual se tem perpetuado,
talvez por interesses corporativos de quem não possui atividade científica mas,
principalmente, por um desconhecimento profundo do que é a investigação e
admite que prejudica a atividade assistencial. O número cada vez maior de
médicos com atividade científica em posições que poderão influenciar a
legislação e a autonomia que as unidades de saúde têm vindo a ganhar no
recrutamento dos recursos humanos são fatores de bom prognóstico para a
valorização da investigação nas unidades de saúde. Não há motivação para a
investigação que resista à ausência de financiamento que a viabilize. O
financiamento da investigação clínica é talvez o aspeto mais difícil de
ultrapassar nas circunstâncias atuais de Portugal. Os investigadores clínicos
portugueses terão de alargar os horizontes às oportunidades de financiamento
europeu para os IDCT. Por exemplo, em dezembro de 2012 teve lugar a 1ª fase da
apresentação de candidaturas de IDCT a financiamento europeu no âmbito da
ECRIN. Houve candidaturas portuguesas e a PtCRIN que foi a plataforma para
estas candidaturas, continuará a identificar novas oportunidades e a colaborar
na preparação das candidaturas. A articulação do Ministério da Saúde com o
Ministério da Educação e Ciência é também crucial para colocar a experiência e
competência reconhecida à Fundação para a Ciência e Tecnologia, na avaliação e
gestão da investigação, ao serviço dos projetos estratégicos de investigação
clínica, como por exemplo os IDCT. A investigação de translação tem sido um dos
estandartes das políticas de investigação. Sendo os IDCT um dos últimos passos
do processo de translação da investigação clínica à pratica assistencial,
poderá admitir-se que serão alvo de financiamento estratégico.
Enquadramento, imersão na cultura científica.
O ambiente onde se insere a prática clínica de um cirurgião é determinante para
o estímulo à investigação.
A atividade clínica inserida num ambiente universitário, com exigências de
produção científica e profundamente conectado com grupos internacionais com
interesses na mesma área de investigação é fundamental para fomentar a inovação
e a aprendizagem e criar um reconhecimento do mérito científico.
É consensual que o número de IDCT e a qualidade da produção científica é
indiscutivelmente superior nas unidades de saúde que estão integradas em
Centros Médicos Académicos, ou seja, em centros em que a gestão é comum à
Faculdade de Medicina, às Unidades de Saúde e a outras instituições relevantes
para a prática da investigação. Por exemplo, a Holanda que é o país da Europa
com maior tradição na implementação de centros médicos académicos, possui
atualmente 8 e lidera os rankings da produção científica Europeia na área da
saúde (1,5 pontos a cima da média europeia). Os centros académicos integram
também, de uma forma estratégica, a formação de outros profissionais
indispensáveis à natureza multidisciplinar das equipes de investigação.
Pelas caraterísticas das hipóteses em estudo e dos protocolos, os IDCT são
maioritariamente multicêntricos e muitas vezes internacionais o que requer a
participação ativa em redes de investigação bem como infraestruturas complexas
de harmonização de procedimentos. A European Clinical Research Infrastructure
Network (ECRIN) é um consórcio de redes nacionais, de iniciativa da UE que tem
como objetivo a promoção de IDCT multicêntricos, disponibilizando vários
serviços relativos à preparação, financiamento, implementação e avaliação dos
ensaios de iniciativa académica. Portugal é membro fundador da ECRIN/ERIC
através da rede portuguesa de infraestruturas para investigação clínica
(PtCRIN).
Aspetos regulamentares
Para além dos constrangimentos comuns a toda a investigação clínica, os IDCT
têm ainda dificuldades acrescidas na sua implementação devido aos aspetos
regulamentares. A investigação é por natureza uma atividade criativa muito
avessa, quase incompatível, com os espartilhos da regulamentação e da
burocracia. Em contraste, os ensaios clínicos são atividades exaustivamente
regulamentadas a nível europeu. A regulamentação atual que abrange os IDCT,
mesmo os da área da cirurgia foi criada a pensar exclusivamente nos
medicamentos. Tem como objetivo salvaguardar os princípios éticos da
investigação no homem mas, maioritariamente, controlar os aspetos comerciais
associados à introdução no sistema nacional de saúde de novas tecnologias de
saúde. Como consequência, a legislação que regula os IDCT na área da cirurgia
está totalmente desadequada: estes não têm interesses comerciais diretos e
normalmente não estão dirigidos a avaliação de medicamentos . Esta
desadequação, contudo, não pode constituir uma desculpa para não se
desenvolverem IDCT. As autoridades, INFARMED e CEIC, estão atentas a esta
desadequação e seguramente autorizarão os IDCT desde que salvaguardados os
princípios comuns à investigação em humanos e previstos nas boas práticas de
investigação internacionais (GCP - Good Clinical Practice) . Além disso, há
propostas de alteração à normativa europeia e à legislação nacional que rege os
ensaios clínicos, já em fase de discussão pública e que seguramente estarão já
mais adaptadas aos IDCT nomeadamente na área da cirurgia. Não se trata reduzir
o grau de exigência na segurança e qualidade metodológica dos IDCT,
comparativamente com os comerciais, mas apenas de adequar as exigências
processuais à natureza destes. A criação de classes de IDCT por estratificação
de risco, é uma das recomendações internacionais que poderá agilizar a sua
implementação sem prejuízo da segurança dos sujeitos do estudo. A adequação das
exigências processuais para submissão de IDCT ao INFARMED e à CEIC está, desde
março de 21012 muito facilitada através da PNEC (Plataforma Nacional de Ensaios
Clínicos).3
RECOMENDAÇÕES
No presente trabalho não pretendo ser exaustiva porque existem fóruns
internacionais que se têm dedicado à reflexão sobre os IDCT. Portugal tem
estado representado nestes fóruns que produziram documentos contendo
recomendações para incentivar os IDCT a nível mundial e que estão acessíveis à
comunidade. Nas Figuras 3 e 4 transcrevem-se as principais recomendações,
respetivamente da European Science Foundation (2009)1 e do Global Science fórum
da OCDE através do Working Group to Facilitate International Co-operation in
Non-Commercial Clinical Trials(2011)2 .
CONCLUSÃO
Os ensaios clínicos académicos em cirurgia são um contributo importante, não só
para o avanço do conhecimento mas também para a sustentabilidade do sistema
nacional de saúde, porque podem responder a perguntas relacionadas com o custo-
efetividade de tecnologias de saúde. Em Portugal praticamente não existem. O
contexto atual, com maior sensibilização dos diferentes intervenientes no
processo, com iniciativas nacionais de apoio às infraestruturas, eg. PtCRIN, e
recomendações internacionais a nível legislativo, constitui uma oportunidade
para despertar na nova geração de cirurgiões um maior interesse pelo
desenvolvimento de ensaios clínicos da sua iniciativa.