Formação Cirúrgica e Investigação
INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA
Formação Cirúrgica e Investigação
J. C. Mendes de Almeida
Director de Cirurgia Geral do IPO de Lisboa
Correspondência
"An education in Medicine involves both learning and learning
how; the student cannot effectively know unless he knows how"
Abraham Flexner, 1910
A cirurgia moderna tornou-se uma disciplina científica. No presente, o
diagnóstico, a tomada de decisões e a execução técnica, se não desprovidos de
variabilidade individual, assentam, no essencial, num conjunto de conhecimentos
e métodos que resultam da aplicação da metodologia científica à patologia
humana. Esta característica é diferenciadora da Medicina Moderna, de matriz
ocidental, das ditas "Medicinas Alternativas" que, pela ausência do
escrutínio do método científico, não podem reivindicar para si a pertença a
esta escola de pensamento. Se a prática médica moderna assenta nos pilares da
ciência, torna-se claro que, para dominar os conhecimentos que a ciência gera,
é necessário compreender a forma e o método que os criou. A percepção desta
realidade, que Flexner entendeu no início do século XX, foi um dos passos
fundamentais para o posterior desenvolvimento da Medicina.
A necessidade do domínio da forma e do método científico aplica-se ao treino
dos cirurgiões? Esta questão tem uma resposta tão evidente que se pode
considerar axiomática. Se muita da informação em que se baseia a prática
cirúrgica tem um suporte científico não muito sólido, existem no entanto formas
científicas de lidar com esta imperfeição que permitem resultados clínicos de
excelente nível e impensáveis há algumas décadas. Para aquelas áreas em que
dispomos de provas de elevado rigor científico, aplica-se, de igual forma,
metodologia que permite estabelecer formas de actuação altamente seguras e
eficazes. Os procedimentos em causa são os da "Medicina Baseada na
Evidência" que, quando aplicados criteriosamente, permitem valorizar a
informação, estabelecer redes de conhecimento e definir actuações recomendadas.
A qualificação da informação, que estes métodos possibilitam, gera a
possibilidade de estabelecer linhas de orientação para o diagnóstico e
terapêutica que são um dos actuais instrumentos para a generalização de uma boa
prática clínica. No entanto, avulta a questão de ser possível compreender, com
razoável profundidade, normas, recomendações e artigos científicos sem conhecer
os passos percorridos para originar aquelas peças de informação. Colocando o
problema de outra forma, como compreender a ciência sem lhe conhecer o método?
Como estabelecer uma prática clínica de natureza científica sem poder
compreender a forma como a informação em causa foi estabelecida e qual a sua
robustez. Sem esta capacidade de entendimento não é possível discutir a
validade de um artigo científico ou de qualquer outro conjunto de dados. Em
suma, sem o entendimento do método científico não é possível estabelecer uma
cirurgia científica e, assim, a formação em ciência torna-se fundamental ao
treino dos cirurgiões.
Uma das caraterísticas fundamentais da personalidade, e prática, do cirurgião é
a sua capacidade de tomar decisões. A actividade cirúrgica no século XXI exige
que todas as decisões sejam fundamentadas e que a sua legitimação assente no
melhor conhecimento disponível. Não é já aceitável, para a grande maioria das
situações, a argumentação baseada em "eu acho que" ou "na minha
experiência". Só em situações de total ausência de melhor prova se pode
recorrer a esta linha de argumentação. Este é o mais fraco grau de prova de uma
cirurgia baseada na evidência.
Assim, a discussão clínica deve basear-se em resultados de estudos. Estes podem
ser de diversos tipos mas, consideram-se como de maior validade, os estudos de
fase III ou randomizados. Este tipo de estudos têm um conjunto de
características que lhes conferem a posição de serem o melhor instrumento de
que dispomos para estudar a realidade clínica. No entanto, estas
particularidades, quando não cumpridas, podem inviabilizar totalmente a
interpretação dos resultados, tornando o estudo inconclusivo e com
recomendações inválidas do ponto de vista científico. Outro dos problemas
destes estudos prende-se com a sua interpretação. Geralmente são realizados em
populações muito bem definidas e não é de todo claro que, os resultados neles
obtidos, sejam generalizáveis para o conjunto de todos os doentes com a
patologia em estudo. Esta generalização não é mais do que um raciocínio por
inferência e, como tal, de validade muito questionável. Estas são algumas das
questões que um cirurgião deve, no momento actual, saber discutir sob pena de
estar a interpretar os resultados de forma incorrecta.
Contrariamente a visões correntes de que o cirurgião deve ser enciclopédico,
chamo a atenção para o facto de a informação estar actualmente disponível como
nunca antes, à distância de um "click", e que é absolutamente
fundamental saber interpretar e valorizar a informação que nos chega. O
cirurgião tem que saber mas tem que, de igual forma, saber qualificar aquilo
que aprendeu. Fica a dúvida sobre a actual capacidade da comunidade cirúrgica
em abordar estes problemas. A necessária revisão da formação dos internos
nestas matérias melhorará de forma indiscutível a prática clínica quotidiana.
A questão seguinte coloca-se na forma de como fornecer formação científica aos
cirurgiões em treino. Para abordar esta questão torna-se fundamental definir ab
initioa extensão da formação em ciência. Deve o cirurgião adquirir competências
de investigador ou, ao invés, limitar-se aprender a metodologia e a conhecer os
meandros da interpretação de dados? Não é fácil a resposta. Penso que o
objectivo de um programa de formação em cirurgia é de formar cirurgiões e não
de criar investigadores. No presente existe uma profunda distorção do que deve
ser a formação em ciência durante o internato. Não é através da exigência
curricular, de apresentação de umas quantas comunicações ou posters em
congressos, que se faz a formação em ciência dos internos. É uma visão
particularmente negativa pois a verificação da qualidade é sempre omitida,
resulta num deplorável espetáculo presente em muitos congressos e contribui
para uma ideia completamente errada do que é fazer ciência.
Esta prática não é formação, é deformação.
A situação actual não faz mais do que contribuir para a curriculite do
internato, antecâmara da distorção em que vivem as carreiras médicas. Assim,
sendo a actividade assistencial o principal objectivo da formação do cirurgião
esta deve ser enfatizada, mas, como ficou exposto, o seu treino em ciência é
fundamental para lhe permitir desenvolver uma boa prática clínica. A ciência
como suporte da clínica.
Assim, entendo que há lugar à criação de dois programas distintos de formação
em ciência para os cirurgiões. O primeiro, mais básico e obrigatório, deve
consistir num período temporal limitado, por exemplo de seis meses, integrado
no internato de cirurgia e que coloque o interno num centro, hospitalar ou
outro, onde se faz investigação. Considerando que é inevitável, a prazo, a
criação no nosso país de centros de referência, o estágio num destes centros
poderia acumular a função de formação clínica avançada numa determinada área
com o treino em investigação. Este estágio de ciência deve ter como objectivos
o domínio da metodologia científica aplicada aos estudos clínicos, uma
exposição opcional à investigação experimental e a realização de um ou mais
trabalhos correctos de investigação clínica. O segundo programa, mais ambicioso
e muito selectivo, deve ser orientado para os internos de cirurgia que têm
interesse, capacidade e vontade de associar, à sua formação cirúrgica, uma
prática de investigação continuada. Muito dirigido a uma orientação académica,
este tipo de programa exigente deve ter uma duração de dois ou três anos,
incluir paragens da formação clínica para permitir a actividade científica e
conduzir à obtenção de títulos, nomeadamente o doutoramento. Já existe em
Portugal uma iniciativa neste sentido, promovido pela Fundação Gulbenkian, e
que tem um sucesso evidente. Este tipo de programas de formação avançada em
ciência não deveria ser esporádico, mas ficar institucionalizado junto da
estrutura do internato clínico. Uma abordagem dual permitiria uma franca
melhoria da formação científica de todos os internos e, em simultâneo, criaria
a possibilidade de recrutar candidatos a cirurgiões académicos. A consequente
melhoria do panorama científico global da Cirurgia limitaria os estragos que a
pseudo-ciência, tão comum nas reuniões profissionais, faz no conjunto dos
clínicos. É pior a investigação de faz de conta do que ausência de ciência.
A questão da formação do espírito não é um assunto encerrado na formação
médica. Um conjunto de razões convergentes tem posto em causa aquela que parece
ser uma necessidade evidente. A capacidade de formação nesta área não abunda.
As instituições, os escassos recursos humanos e a disponibilidade temporal dos
potenciais formadores são factores limitativos da oferta. Não é qualquer
instituição ou profissional que pode oferecer aprendizagem nesta matéria e,
assim, a formação prestada é muito reduzida. Por outro lado é muito mais fácil
fornecer formação na acção, entenda-se nos gestos e práticas clínicas. Esta é
absolutamente essencial e deve ser tão eficaz quanto possível, no entanto, a
formação de cirurgiões não se esgota neste aspecto. É claro que as pressões
para sobrevalorizar a formação na acção são múltiplas. É mais fácil de
fornecer, coincide com as necessidades hospitalares de utilizar internos em
formação como força de trabalho, contribui também para a
"curriculite" e para a deformação de objectivos em que vegetam as
actuais carreiras médicas. Mas, a subvalorização da formação intelectual conduz
inevitavelmente a uma prática clínica acéfala com os seus consequentes maus
resultados clínicos.
É necessário relembrar o Prof. José Pinto Correia que, num artigo póstumo,
publicado na Acta Médica Portuguesa, referia que o âmago da formação
universitária está muito para além da formação na acção, reside essencialmente
na formação do espírito. Esta posição, dirigida à formação pré-graduada,
aplica-se na íntegra ao treino cirúrgico. Sem prejuízo da formação técnica, há
que aprofundar a formação científica dos cirurgiões. Desta forma há que propor,
às entidades competentes, uma nova formulação do internato cirúrgico que, entre
outras reformas, inclua aspectos específicos, de natureza obrigatória, para a
formação em ciência.
Antecipam-se grandes mudanças na área da Saúde. Os constrangimentos financeiros
a isso vão conduzir. A todos serão exigidos níveis acrescidos de competência.
Vive-se o momento certo para mudar a qualidade do treino cirúrgico para que,
tal como até agora, o futuro continue a exceder o presente.
Correspondência
J. C. MENDES DE ALMEIDA
e-mail: jcalmeida@ipolisboa.min-saude.pt