Transposição cervical de tubo gástrico na reconstrução digestiva após
esofagectomia por cancro do esófago - detalhes técnicos
INTRODUÇÃO
A continuidade digestiva após esofagectomia subtotal por carcinoma do esófago,
pode ser restabelecida por interposição de cólon ou de estômago. Nas situações
em que ambas as alternativas são viáveis, a experiência de cada grupo cirúrgico
deve orientar a escolha pela técnica considerada mais simples e adaptável ao
caso concreto. Os prós e contras de cada alternativa encontram-se difusamente
explicitados nas experiências individuais e revisões sistemáticas publicadas
1,2,3,4,5,6,7,8.
A localização da anastomose, cervical ou torácica, é também decorrente da
decisão que deve ser individualizada, pois não se comprovou evidente
superioridade para qualquer uma das alternativas 1,2,3,4,8. Esta questão
embrinca noutra, relacionada com a estratégia de abordagem da esofagectomia
(transhital vs transtorácica, por duas ou três vias), ainda sem demonstração de
evidência de resultados que suporte uma alternativa preferencial.
A primazia actual pelas terapias oncológicas complementares serem administradas
segundo um conceito neo-adjuvante, reduziu substancialmente a necessidade de
radioterapia adjuvante do leito esofágico e tornou o mediastino posterior uma
das localizações por nós mais utilizadas para fazer "subir" a
plastia e proceder ao restabelecimento da continuidade digestiva. A esta
alternativa estão associados dois problemas que têm que ser bem resolvidos
tecnicamente, como referiremos a seguir com mais detalhe: a putativa
dificuldade de fazer ascender o conduto escolhido, na sua passagem pela porção
supra-carinal do mediastino e a dimensão do opérculo torácico que, à semelhança
do que é necessário quando se utiliza a via retro-esternal, pode implicar
ressecção parcial das estruturas rígidas, para acomodar convenientemente a
plastia, isto é, sem compressão vascular e sem produzir dificuldade de passagem
alimentar.
Na nossa experiência, demos geralmente preferência à ressecção transhiatal nos
tumores cervicais e nos infra-carinais, e fizemos abordagem transtorácica nos
tumores localizados no mediastino superior. Em ambos privilegiámos a anastomose
cervical.
A anastomose esofagogástrica cervical, no entanto, está associada a taxa
elevada de deiscências (0-18%) e estenoses (até 43%) 1,2,3,4,8. Para minimizar
este graves problemas, que estão associados a morbi-mortalidade significativas,
têm vindo a ser descritos detalhes técnicos que incorporámos ou adaptámos na
nossa prática de construção e transposição cervical da plastia com estômago,
que preferimos sob a forma de tubo gástrico.
O objectivo deste trabalho é analisar, com base numa série consecutiva de
doentes submetidos a esofagectomia, a relevância da construção sistemática do
tubo gástrico, no minimizar destas complicações, seguindo um procedimento
padronizado, mas naturalmente adaptável a cada caso operado.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo retrospectivo, incluindo os últimos 50 doentes consecutivos, com
carcinoma do esófago, 7 F e 43 M, idade média 63 [46-85] anos. Na construção do
tubo gástrico (n=50) e na sua mobilização para o tórax (n=3) ou o pescoço
(n=47). O primeiro autor participou como um dos cirurgiões sénior em todas as
cirurgias. Dois doentes foram operados no Hospital CUF Infante Santo (Lisboa) e
outros dois foram operados com Prof. Doutor Rui Maio, no Hospital Beatriz
Ângelo (Loures). Foram excluídos deste estudo os doentes sem cancro esofágico e
as esofagocoloplastias.
Quando a opção estratégica incluiu abordagem por três vias, o doente foi
posicionado em decúbito lateral esquerdo, foi assegurada a exclusão pulmonar
direita e a esofagectomia foi realizada por toracotomia direita. Depois da
mobilização do esófago e da dissecção ganglionar adequada, foi colocado um tubo
de drenagem torácica siliconado, o tórax foi encerrado e o doente reposicionado
como para a via transhiatal. Nestes casos, o tempo abdominal e o tempo cervical
foram realizados em todos os doentes na posição de decúbito dorsal.
Quando a operação foi realizada apenas por duas vias, a torácica e a abdominal,
iniciou-se por laparotomia, que foi encerrada após terminar o tempo abdominal e
os doentes foram seguidamente reposicionados para toracotomia.
1. Da técnica de preparação do tubo gástrico: Após laparotomia mediana,
procedeu-se ao afastamento/ suspensão das grelhas costais com afastadores
fixados lateralmente, sendo seccionado o ligamento coronário esquerdo para
mobilizar o lobo esquerdo do fígado, que foi afastado estaticamente para
permitir bom acesso ao hiato esofágico, que foi aberto por extensa frenotomia
(manobra de Pinotti)9. A ressecção do esófago distal e esvaziamento ganglionar
desta região, mesmo nos casos em que se procedeu a toracotomia, foi
preferencialmente feita pelo abdómen por esta exposição permitir melhor acesso
e controlo da dissecção (Fig._1).
A cervicotomia esquerda foi efectuada com a face voltada para a direita, com o
pescoço em ligeira hiperextensão. A abordagem foi por via para-
esternocleidomastoideo esquerdo, com dimensão ajustada ao morfótipo do doente,
para permitir o isolamento seguro do esófago, sem lesão dos eixos vasculares,
dos nervos recorrentes ou da traqueia e para assegurar espaço adequado para a
anastomose. Se não existia contra-indicação por razões oncológicas, o esófago
foi mobilizado ligeiramente do tórax para o pescoço e seccionado com
redundância, assegurando uma boa dimensão para garantir ausência de tensão na
anastomose e implantação em continuidade linear com a plastia.
Durante todo o tempo abdominal, a manipulação do estômago deve ser mínima e
muito delicada, evitando estiramentos e torções durante toda a cirurgia, que
começa pelo isolamento esofágico e dissecção ganglionar adequada (Fig._2).
A conservação da vascularização pelos vasos gastro-epiplóicos direitos e
pilóricos, que asseguram a irrigação da plastia, são tempos cruciais e
determinantes da viabilidade do tubo gástrico. Tendo a artéria coronária sido
laqueada na origem, por exigência da dissecção ganglionar, a arcada vascular da
pequena curvatura foi seccionada ao nível mais proximal possível, mas
suficiente para permitir a remoção dos gânglios das estações 1, 2, 3a
juntamente com as 7, 8, 9 e 11 e também para permitir o início da secção do
estômago (geralmente a jusante da 3ª arcada da gástrica esquerda). O grande
epiplon foi seccionado a 2-3cm da arcada da grande curvatura, desde a origem
dos vasos gastro-epiplóicos direitos até á origem da artéria gastro-epiplóica
esquerda, junto à artéria esplénica. Para tal, os vasos curtos foram
seccionados junto ao hilo do baço e procurou-se não interromper o indelével
plexo venoso que se encontra no epiplon entre a porção esquerda da arcada
gastro-epiplóca e os primeiros vasos curtos (Fig._3).
Um aparelho de selagem de vasos foi utilizado em toda a preparação vascular da
plastia. A libertação do estômago incluiu também uma extensa manobra de Kocher,
suficiente para permitir que o piloro fosse mobilizável até ao hiato (Fig._3).
Foi feita piloromiotomia, ou plastia simples do piloro, com aproximação
transversal das estruturas, num plano. A secção do estômago para construção do
"tubo gástrico", que ficou com 3-4 cm de largura, começou na
pequena curvatura (Fig._4) no ponto já referido e foi levada até à região do
fundo em que o estômago, quando esticado, aparenta maior dimensão mobilizável.
Sucessivas cargas de sutura mecânica, para tecido espesso, foram disparadas com
imbricamento e reforço com pontos simples de cobertura sero-serosa, nestes
pontos.
A transposição cervical do tubo gástrico, com o tórax fechado, pelo mediastino
posterior, aonde ficou sistematicamente posicionado, exige grande delicadeza
para não comprometer a vascularização e não torcer a plastia. Quando o
mediastino foi francamente e facilmente franqueável pela mão do cirurgião
abdominal, a proteger a plastia, o tubo gástrico foi levado para o pescoço
sendo "apanhado" pelo cirurgião cervical. Na maioria dos casos esta
manobra não foi tolerada pelo doente, por induzir baixa tensional ou arritmia e
nestes casos procedeu-se da seguinte forma adaptada de DeMeester10 e Goh11: o
fio de seda 2/0 que se utiliza para encerrar o topo distal da secção cervical
do esófago, não é cortado e é arrastado para o abdómen quando se mobiliza o
esófago. Esta seda é fixada a uma algália 24, após insuflação do balão com 30-
50ml de soro, tendo a ponta da algália sido previamente introduzida no orifício
destinado à passagem da óptica num saco tubular de endoscopia. Pelo olheiro da
algália passa-se uma agulha de seda 3/0 que vai fixar a algália à zona do tubo
gástrico aonde se prevê fazer a anastomose. O saco é profusamente humidificado
com soro, no interior e no exterior, sendo posteriormente puxado para o
pescoço, sendo o atrito minimizado pelo balão que precede a plastia. Uma vez
"apanhado" o estômago na região cervical, o plástico é retirado
suavemente e nesse movimento ainda pode ocasionar um pouco mais de subida da
plastia.
Após mobilização da plastia, observou-se, por vezes estase venosa com
congestão. Para minimizar esta estase removemos a laqueação da veia curta mais
proximal (Fig._5), deixando fluir sangue durante 5-10 min, até esse efeito de
retenção sanguínea ter desaparecido.
A secção do estômago, com dimensão adaptável ao calibre do esófago, foi
realizada o mais afastada possível da linha de agrafos, lateralizada para a
grande curvatura, a 2-3cm do polo do tubo gástrico (Fig._5). A anastomose
esófagogástrica foi realizada como término-lateral manual, num plano de pontos
separados, sutura reabsorvível. A sonda naso-gástrica foi passada para dentro
do tubo antes de terminar a anastomose, para facilitar a manobra e garantir que
não foram provocadas lesões. O esófago, a anastomose e o tubo gástrico foram
recolocados junto à coluna, geralmente ao nível do opérculo.
Foi sempre deixada uma drenagem aspirativa cervical, sem ficar em contacto
íntimo com a anastomose.
O encerramento da laparotomia foi realizado por uma equipa, enquanto outra
procedeu à anastomose. O diafragma foi parcialmente encerrado, sem provocar
estrangulamento do antro. Foi deixada uma drenagem aspirativa posterior à
plastia, posicionada entre o mediastino posterior e o espaço sub-frénico
esquerdo. A ressecção ou abertura da pleura raramente condicionou uma drenagem
específica intra-operatória. A aspiração for via abdominal associada a algumas
ventilações forçadas foi geralmente suficiente.
2. A estabilidade homeostática intra-operatória foi procurada activamente pela
equipa de anestesia, os cirurgiões e as enfermeiras de sala (instrumentistas e
circulantes). São aspectos críticos para a estabilidade homeostática os
seguintes: ventilação adequada, exclusão pulmonar aquando da toracotomia;
monitorização das perdas de volume e sua reposição correcta, atempada e não
exagerada para evitar o "pulmão húmido"; cirurgia com perdas
mínimas de sangue; minimização da lactacidose e sua correcção; monitorização da
tensão arterial e das arritmias, principalmente nos tempos críticos da
dissecção transmediastínica e da transposição cervical, em que as equipas de
anestesia e cirurgia têm uma interacção constante, por ser necessário, por
vezes, interromper momentaneamente o gesto para permitir a recuperação
hemodinâmica.
3. O pós-operatório imediato, ou sempre que se justificou, foi realizado
preferencialmente no Serviço de Medicina Intensiva (Director: Prof. Dr. Carlos
França) ou no SO do nosso Serviço. A monitorização e o controlo homeostático
24/24 horas por Médicos Intensivistas residentes deve procurar a rápida
extubação orotraqueal e, nas situações de necessidade de suporte ventilatório
mais prolongado, assegurar o "desmame" precoce da ventilação
assistida. A atempada acção diagnóstica e terapêutica das alterações
hemodinâmicas e metabólicas foi essencial para a vitalidade das plastias. As
aminas vasopressoras foram utilizadas judiciosamente, com titulação da
posologia a intervalos curtos, para permitir a sua suspensão. A monitorização
sistemática dos parâmetros inflamatórios foi assegurada.
Na presença de derrame pleural pós-operatório equacionou-se a sua drenagem. A
broncoscopia com intenção diagnóstica e terapêutica foi realizada muito
liberalmente.
A hemofiltração e a hemodiálise foram providenciadas sempre que tidas como
necessárias.
Foi feita profilaxia anti-trombótica com heparina de baixo peso molecular em
todos os doentes, desde o dia 1 de pós-operatório.
Foi feita terapêutica antibiótica profilática em todos os doentes. Se ocorreu
alguma suspeita substantiva de evento infeccioso, foram feitas colheitas de
produtos biológicos para isolar o(s) agente(s) infecciosos, iniciou-se
terapêutica empírica a que foram feitas as correções tidas por adequadas.
Foram utilizados procinéticos quando ocorreu estase gástrica.
4. O controlo clínico da viabilidade da plastia foi feito pelo aspecto do
aspirado gástrico, pela observação cuidada da região cervical, para despiste
precoce de sinais inflamatórios cutâneos, pela detecção precoce de arritmias ou
febre. Foi feita monitorização dos parâmetros sanguíneos de inflamação
(leucócitos, PCR) e baixa da perfusão tecidular (lactatos, pO2, CO2, pH).
Na definição de fuga da anastomose, seguimos a tipologia de Lerut et al12: Grau
I - Radiológica: sem sinais clínicos; Grau II - Clínica minor:
inflamação local (cervical), fuga radiológica (se torácica, contida), febre e
leucocitose, Grau III - clínica major: disrupção franca e grave, sepsis;
Grau IV - Necrose do conduto: confirmação endoscópica.
Quando a evolução clínica foi favorável, o início da ingestão de líquidos foi
geralmente entre os dias 9 e 12 do pós-operatório. Para antecipar este evento
passámos a realizar sistematicamente, cerca do dia 7 de pós-operatório,
controlo com gastrografina oral. Se não foi detectada fístula nem estase do
tubo os doentes iniciaram dieta líquida regrada.
Nas situações em que os doentes estavam em suporte ventilatório mais prolongado
introduziu-se alimentação pela sonda nasogástrica após controlo por TAC
cervical e/ou torácica.
Na presença de extravasamento mínimo e sem sinais clínicos (Grau I), os doentes
foram mantidos em dieta zero e iniciaram alimentação parentérica total, até
novo controlo passados 8 dias e foram prescritos procinéticos ev.
Nas situações de fístula radiológica (Fig._6) com clínica inflamatória cervical
(Grau II), a incisão foi parcialmente aberta para deixar sair a saliva e outros
líquidos, a ferida foi cuidada o número de vezes/dia necessário para manter a
pele sem destruição e evitar a infecção. A ferida foi deixada cicatrizar por
segunda intenção. Os doentes foram mantidos em dieta zero e iniciaram
alimentação parentérica total.
Sempre que julgado conveniente os doentes entraram em programação para
cinesiterapia e/ou fisioterapia bi-diárias.
RESULTADOS
Apresentam-se os resultados relacionáveis com os aspectos da preparação do tubo
gástrico, para transposição cervical após esofagectomia por cancro.
1) A mediana do tempo de internamento foi 19 dias [9-64].
2) A necessidade de transfusões de sangue na véspera da intervenção, no intra-
operatório e até às 48 horas de pós-operatório foi a seguinte: a) Zero UCE em
17 doentes; b) Uma UCE em 12 doentes; c) Duas UCE em 13 doentes e d) Três UCE,
ou mais, em 8 doentes.
3) Ocorreram complicações pós-operatórias em 35% dos doentes.
4) Complicações directamente relacionadas com o tubo gástrico:
2 fístulas cervicais (Grau II) e 1 radiológica (Grau I)
1 caso de hemorragia gástrica controlada por endoscopia
estase gástrica corrigida com procinéticos - 30%
não se verificou nenhuma necrose da plastia
5) Mortalidade operatória às 4 semanas (8 %) e hospitalar (14 %).
6) Todos os doentes tiveram alta sem limitações disfágicas, com capacidade
alimentar autónoma, com indicação para aumento progressivo do volume e
diversificação da ingestão de alimentos, segundo aconselhamento com a
Nutricionista do Serviço.
7) 11 doentes apresentaram queixas de disfagia no pós-operatório. Quando o
controlo radiológico demonstrou estenose da anastomose, os doentes foram
submetidos a dilatações endoscópicas. Geralmente foi necessária mais que uma
dilatação e estas ocorreram quase sempre no 1º ano após a cirurgia.
8) A sobrevida mediana até este momento foi 18 meses [3 - 75] e durante
este período não foi necessária qualquer intervenção operatória relacionada com
o funcionamento do tubo gástrico.
DISCUSSÃO
A padronização da estratégia de abordagem cirúrgica, para tratamento dos
tumores do esófago, contribuiu para os resultados que obtivemos nos últimos 50
doentes que tratámos, em ambiente multidisciplinar. Nos centros de médio volume
de esofagectomias, o case-mixdos serviços, a sua diferenciação em oncologia
digestiva, resultante da referenciação que progressivamente vão sendo alvo e o
treino dos cirurgiões envolvidos, têm sido apontados como os factores que lhes
possibilitam a obtenção de resultados equivalentes a outros centros com maior
volume desta patologia 13, 14, 15.
Assim, nesta série, o primeiro autor participou em todas as operações como um
dos cirurgiões sénior das equipas do Serviço envolvidas.
A cirurgia oncológica esofágica exige uma meticulosa atenção aos detalhes da
técnica. Neste trabalho pretendemos apresentar os aspectos da técnica
cirúrgica, e do tratamento dos esofagectomizados, que em nosso entender
contribuíram para a baixa taxa de complicações que obtivemos, quando utilizámos
o tubo gástrico, subido pelo mediastino posterior e anastomosado
preferencialmente no pescoço. A deiscência anastomótica e/ou da sutura da
gastrectomia linear realizada na construção do tubo, a necrose da plastia e a
estenose da anastomose são as principais e mais temidas complicações desta
transposição gástrica.
As fístulas anastomóticas são geralmente referidas como mais frequentes quando
realizadas em localização cervical em comparação com a anastomose torácica. Na
última década, a generalidade das séries publicadas e das meta-análises
disponíveis, balizam este problema entre os 3% e os 18%1,2,3,4,8. Neste grupo
que apresentamos, a ocorrência foi apenas de 2 fístulas clínicas de Grau II
- (4%). Com demonstração apenas radiológica, Grau I, tivemos mais 1 caso,
mas como referimos acima, não fizemos controlo sistemático da continência e
permeabilidade da anastomose em todos os casos iniciais.
Se ocorreram pequenos extravasamentos sub-clínicos de saliva ou outros
líquidos, nos primeiros doentes, esta circunstância não alterou o curso do pós-
operatório. A avaliação clínica dos sinais inflamatórios locais e sistémicos, o
aparecimento de taquicardia ou de arritmia "de novo", a dificuldade
em deglutir saliva e a febre, são sinais de suspeição que devem ser
sistematicamente pesquisados.
Recentemente têm vindo a ser propostas soluções para tentar conservar as
plastias com deiscências de Grau III, que não ocorreram nesta série.
Diagnóstico precoce e rigoroso, selagem endo-luminal da solução de continuidade
e controlo da infecção e da sépsis, são os pilares das aproximações
conservadoras nas fugas anastomóticas de Grau III, e nas torácicas de Grau II,
com resultados promissores, mas ainda sem grau de evidência
estabelecidos16,17,18, provavelmente semelhantes aos que temos experiência nas
gastrectomias totais.
A endoscopia de intervenção tem seguramente um papel cada vez mais importante
no tratamento das complicações ocorridas no pós-operatório. Na nossa série, um
doente apresentou uma hemorragia significativa que foi prontamente estancada
por via endoscópica.
A endoscopia parece ser um método superior à TAC na avaliação da perfusão e do
tipo de necrose da plastia, mas numa aproximação sistemática, atempada e
"agressiva", ambas devem ser realizadas19,20, devendo, no entanto,
a endoscopia ser realizada com muito cuidado. Pensamos que o estudo com
contraste é ainda um bom método para diagnosticar estas fístulas associadas à
plastia com tubo gástrico21.
Temos recorrido à utilização sistemática de drenos cervicais e/ou torácicos,
não posicionados em contacto com a anastomose, para atempadamente poder
reconhecer deiscências anastomóticas, como voltou a ser proposto recentemente
por outros22. Tem-nos parecido que na região cervical estes deixam de estar
permeáveis nos primeiros dias, tendo sido removidos antes do 6º-7º dia, tempo
suficiente para deixar uma via facilitada de drenagem para eventuais fugas.
A utilização sistemática de sonda gástrica permite avaliar precocemente as
alterações do aspirado e alertar para risco de isquemia/necrose. A aspiração
contínua da plastia, permite ainda a descompressão gástrica, importante para
reduzir o stress sobre as paredes do tubo e reduzir o risco de aspiração
traqueal23. Esta opinião não recolhe unanimidade e ainda recentemente foi
realizado um ensaio clínico, para demonstrar a putativa superioridade da
utilização sistemática de metoclopramida, em comparação com a descompressão
mecânica, mas a dimensão reduzida da amostra mais não permitiu que sugerir a
utilização electiva da sonda24.
Neste mesmo contexto, tem sido equacionada a necessidade de realizar uma
manobra facilitadora da drenagem gástrica, para alguns autores, tendo como
contrapartida o aumento indesejável do refluxo biliar25. A via do mediastino
posterior, sujeita às pressões negativas do tórax, tem sido referida como mais
facilitadora de refluxo biliar25 e de aumento da acidez no conduto27. As
alterações da motilidade gástrica da plastia transposta para o pescoço
contribuem seguramente para aumentar o risco de refluxo biliar28,
principalmente nos doentes sintomáticos.
A nossa experiência com a piloromiotomia, ou piloroplastia sempre que
inadvertidamente abrimos a mucosa, tem sido eficaz e não diagnosticámos nenhuma
complicação, mas mantemos a aspiração gástrica enquanto o volume dos aspirados
não se reduz. Outras técnicas de redução do tónus deste esfíncter têm sido
realizadas e propostas, como a dilatação com clampelástico durante a preparação
do tubo, dilatação endoscópica com balão29, a reter para utilização se
necessário no pós-operatório imediato, ou ainda a piloroplastia por agrafagem
circular (com EEA)30.
A necrose parcial, ou total, da plastia (Grau IV), pode atingir proporções
catastróficas, que implicam desmontar a anastomose (Tipos 1 a 3 de
Veeramootoo31), descer o estômago para o abdómen, ressecar a porção necrosada
ou a totalidade do estômago, manter a continuidade digestiva interrompida,
estabelecer uma esofagostomia cervical, uma jejunostomia e proceder ao controlo
da infecção nas três regiões anatómicas envolvidas. É uma complicação
rara21,32. Apenas observámos um caso de necrose da porção supra-opercular, por
constrição da plastia, num doente que não tinha carcinoma do esófago. O doente
apresentava um esófago-faringostoma por compressão provocada por aparelho
fonador, pós-laringectomia total e radioterapia em doses elevadas. Apesar da
ressecção parcial do manúbrio e do 1/3 medial da clavícula, que fazemos sempre
que passamos o conduto pelo mediastino anterior, a falta de plasticidade com
que ficam caracteristicamente as estruturas cervicais pós-radioterapia e o
"re-do" plástico para encerramento da ferida operatória,
contribuíram para a necrose parcial da plastia que obrigou à sua remoção.
Se excluirmos erros técnicos grosseiros na preparação da anastomose,
dificilmente admissíveis, condições biológicas do hospedeiro ou
condicionamentos locais, como o que acabámos de referir, a principal causa
destas complicações assenta em problemas de vascularização.
Vários estudos demonstraram que o stress da baixa perfusão, principalmente da
mucosa, no pós-operatório precoce, é um factor determinante da viabilidade da
plastia. A medição do pCO2 da mucosa apresentou variações significativas logo
após a laqueação da artéria gástrica esquerda33. Quando avaliadas por
espectroscopia intra-operatória, a diminuição da saturação de O2 na mucosa e a
redução da fracção de volume sanguíneo circulatório, na porção fúndica da
plastia, correlacionaram-se significativamente com as complicações
anastomóticas, numa série estudada recentemente34.
As alterações, decorrentes de alterações da microcirculação, regridem
geralmente por volta do 4º dia, nos doentes que vêm a ter um curso favorável35.
Vários Autores têm proposto o recurso a técnicas pré-operatórias de
redistribuição do fluxo gástrico36, partindo do pressuposto que o
condicionamento isquémico pode aumentar a saturação da mucosa do tubo gástrico,
por melhorar a circulação na altura da reconstrução digestiva37. A via
laparoscópica aquando do estadiamento37 ou a embolização arterial36 têm sido
usadas em diferentes estudos para induzir este condicionamento isquémico, mas
os resultados não permitem garantir total segurança desta conduta na
reconstrução digestiva (3 fístulas em 19 casos37), embora os dados
experimentais apontem para uma melhoria das condições circulatórias. A
revascularização pela anastomose da artéria esplénica à artéria tiroideia
superior, com drenagem pela anastomose veia esplénica-veia jugular, parece
poder ser uma alternativa a ter como possibilidade nos casos em que a
circulação da plastia deixe dúvidas de eficácia. No entanto, a sua realização
implica, por razões técnicas, que seja tomada a decisão durante a fase de
libertação do estômago, pois a secção vascular não coincide com a preparação
que seguimos38.
Mantida a integridade anatómica da vascularização, o aspecto crucial para a
eficácia das redes vasculares é o controlo hemodinâmico rigoroso e
"minutado", a utilização judiciosa e "à mínima" de
aminas vasopressoras, a atenta monitorização da ventilação. Má perfusão
tecidular, com pO2 a baixar, lactatos a subir e curvas tensionais a estreitar
são factores indicativos de risco de viabilidade da plastia.
Procurou-se ser judicioso na utilização de sangue transfundido. Como referimos,
em 34% dos doentes não foi necessário nenhuma transfusão. Os doentes fizeram
transfusões para compensar perdas operatórias e/ou por consumo, direta ou
indiretamente, atribuível a perdas observadas.
A possibilidade de recorrer ao Serviço de Medicina Intensiva, para o tratamento
pós-operatório imediato destes doentes, foi uma mais valia que contribuiu para
os nossos resultados, pelo atempado diagnóstico das intercorrências e seu
controlo.
A vascularização da plastia deve ser assegurada pelas arcadas vasculares da
pequena e da grande curvatura e pelas redes que as ligam, constituindo
importantes mas delicados plexos vasculares. Nesse sentido, procurámos
preservá-los na máxima extensão e continuidade possíveis e disponíveis. Para
tal temos como essencial a manipulação mínima e cuidadosa do estômago durante
todos os tempos da intervenção.
Em relação à arcada da pequena curvatura, esta foi sempre possível preservar
até ao nível do 2º-3º ramo da artéria gástrica esquerda. A laqueação mais
distal ao nível da pequena curvatura nunca nos pareceu necessária para
esofagogastroplastia. Nos casos de anastomose à faringe (não considerados nesta
série), em que optámos pelo estômago e não pelo cólon, também não tivemos
necessidade de esqueletizar completamente a pequena curvatura. Se à observação
verificamos que alguns gânglios podem ser patológicos (depois de retirar os
grupos 1, 2, 3a, 7, 8, 9 e 11, que são obrigatoriamente removidos com a peça)
procedemos ao isolamento e referenciação vasculares para excisão segura dos
mesmos, sem seccionar os vasos da arcada. Nos casos em que não existe
comunicação extramural entre as artérias gastroepiplóicas direita e esquerda,
cerca de 30% num recente estudo em cadáveres39, a arcada da pequena curvatura é
ainda mais importante para garantir a boa perfusão da região do fundo.
Para assegurar uma confiável preparação do tubo gástrico, para
esofagogastrostomia cervical, é igualmente necessário preservar toda a riqueza
funcional da arcada da grande curvatura e, na sua ausência extramural, dos
plexos por ela vascularizados. Assim, o grande epiplon deve ser seccionado a 2-
3cm da arcada da grande curvatura, desde a origem dos vasos gastro-epiplóicos
direitos até á origem da artéria gastro-epiplóica esquerda, junto à artéria
esplénica. Para tal, os vasos curtos foram seccionados junto ao hilo do baço e
teve-se em atenção não interromper o indelével plexo venoso, que se encontra no
epiplon entre a porção esquerda da arcada gastro-epiplóica e os primeiros vasos
curtos, pois em casos de sobrecarga venosa podem tornar-se vicariantes e
reduzir a estase venosa40. A redução da estase venosa, se detectada antes da
anastomose, deve ser reduzida removendo a laqueação (ou seccionando a escara
produzida pelo aparelho de selagem de vasos) e deixando fluir livremente o
sangue venoso até se conseguir o efeito desejado, o que pode demorar entre 10 e
30 min41.
A largura do tubo gástrico não parece ter influência na perfusão tecidular, na
taxa de fístulas ou no estado nutricional pós-operatório42. Anteriormente
fazíamos a transposição cervical do estômago quase total, mas nestes 50 casos
utilizámos o tubo gástrico, com 3-4cm de largura, que se revelou um bom conduto
e sem problemas de vascularização.
A opção de utilização do estômago total vs tubo gástrico tem vantagens e
desvantagens, mas parece-nos que essa discussão, bem como a alternativa da
esofagocoloplastia, no contexto do cancro do esófago, sai fora do âmbito deste
trabalho. Adiantamos apenas que não há suporte suficientemente consistente para
ter uma ou outra como a melhor alternativa2,43, 44,45,46.
Os dados de uma metanálise recente8, sobre a problemática da anastomose
cervical vs torácica, não permitiram determinar uma evidência forte a favor de
qualquer das opções. Estes dados mais não trazem que reforçar os resultados de
outros trabalhos 1,2,3,4,5,6,7 que apontam para uma taxa ligeiramente superior
de fístulas e estenoses quando a anastomose é realizada no pescoço. Mas a
"benignidade" destas complicações, comparada com as mesmas quando
ocorrem no tórax, é para nós um factor de ponderação fortemente positiva a
favor da anastomose cervical. Quando utilizamos o mediastino posterior e
posicionamos bem o esófago e o tubo, sem tensão e em continuidade vertical,
parece-nos que esta é realmente uma boa alternativa.
No entanto, não podemos deixar de referir o maior risco de complicações
pulmonares que pode estar associado à anastomose cervical 1,3,8
Encontramos dados divergentes quanto às vantagens de realizar a anastomose
manualmente ou por sutura mecânica. Uma revisão sistemática da literatura
recente47, concluiu da insuficiente evidência para fazer recomendações.
Referimos como interessantes outros trabalhos sobre o assunto e várias
propostas para reduzir a taxa de fístulas e de estenose, utilizando suturas
mecânicas 48, 49 ou fazendo sutura manual50.
A taxa de estenose das anastomoses esofagogástricas cervicais, que vêm a
necessitar de dilatações endoscópicas, varia entre 4 e 50% dos casos4,21. A
generalidade dos AA reporta uma taxa mais elevada de estenoses nos casos em que
ocorreram lesões isquémicas da anastomose, tendo como causas da estenose as
mesmas da deiscência. Assim, as propostas de alterações da técnica de
anastomose que apresentáram48,49,50 pretendem construir anastomoses bem
vascularizadas e com calibre largo.
A discrepância dos nossos resultados (2 fístulas de Grau II/11estenoses com
necessidade de dilatação), leva-nos a admitir outras causas para a estenose. Se
atentarmos aos trabalhos experimentais realizados com desnudação do esófago por
ressecção circular endoscópica da mucosa e na gravidade das estenoses
induzidas51, podemos especular que este tipo de resposta possa de algum modo
corresponder a uma reacção do esófago à necrose circular que ocorre, em maior
ou menor grau, com a realização de uma anastomose de topo. Esta resposta, e não
o diâmetro da boca anastomótica poderiam explicar as estenoses e principalmente
o fenómeno da re-estenose. A ser assim, talvez se compreenda a redução de
estenoses descritas para anastomose látero-lateral48. A translação dos dados
experimentais para a clínica abre uma janela de perspectivas favoráveis para
combater o risco de estenose anastomótica, com a aplicação local de células do
estroma derivadas do tecido adiposo51.
Conclusão: Os detalhes técnicos da construção da plastia gástrica são um factor
determinante dos resultados conseguidos com esta técnica. A monitorização da
homeostase durante a anestesia e no pós-operatório imediato, com atempada
correcção das alterações detectadas, foram relevantes para os resultados
apresentados. A padronização da estratégia e da técnica operatória devem ter em
atenção as particularidades individuais dos doentes e a experiência do grupo
cirúrgico.