Acção anti-cancerígena da Quercetina no Carcinoma Hepatocelular: o papel do
GLUT-1
INTRODUÇÃO
O carcinoma hepatocelular (CHC) é um dos tipos de cancro mais letais em todo o
mundo. A principal causa da carcinogénese hepática é atribuída à doença
hepática crónica secundária associada à ingestão crónica de álcool como com a
infecção pelo vírus da Hepatite B (HBV) ou pelo vírus da Hepatite C (HCV),
estando estes normalmente relacionados com a doença hepática crónica [1,2].
Existem ainda outros factores que contribuem para a génese do CHC, como a
obesidade, a diabetes e a esteatose hepática não-alcoólica [3,4].
O CHC não possui tratamento específico, o prognóstico é muito pobre e a
sobrevida diminuta, o que o torna a terceira maior causa de morte por cancro a
nível mundial. Entre as opções terapêuticas, o transplante hepático e a
ressecção cirúrgica são as terapias mais eficazes, contudo apenas 15% a 20% dos
doentes podem beneficiar do tratamento cirúrgico [4-6].
O CHC é classificado como um tumor com elevada quimiorresistência; deste modo,
a eficácia da quimioterapia sistémica convencional para este tipo de cancro é
reduzida. Embora, a doxorrubicina sistémica, seja o agente mais utilizado na
prática clínica, permite uma resposta parcial apenas em cerca de 10% dos
doentes sem melhorar de forma significativa a sobrevida global [7-12].
A radioterapia também pode ser usada no tratamento do CHC. No entanto, alguns
estudos tem demonstrado que a ineficácia da acção da radioterapia deve-se à
heterogeneidade dos carcinomas hepatocelulares, nomeadamente na expressão da
protéina p53, o que poderá estar na base da resistência/sensibilidade associada
à radio e à quimioterapia [6,13-14].
Neste sentido, torna-se necessário investigar novas opções terapêuticas no
combate ao CHC. A terapia génica tem vindo a ser estudada exaustivamente como
uma nova abordagem para o tratamento do CHC surgindo, o transportador de
glucose 1 (GLUT-1) como possível alvo terapêutico para este tipo de tumor
extremamente agressivo [15,16]. A sobreexpressão de GLUT-1 associado ao aumento
do metabolismo de glucose estão presentes numa ampla variedade de tumores
sólidos conferindo-lhes, na maioria das vezes, um mau prognóstico [16-20].
Alguns estudos indicam que o GLUT-1 se encontra sobreexpresso no CHC,
promovendo a carcinogénese [16,17]. Para além disso, um estudo de 2009 [17]
demonstrou que suprimindo a expressão de GLUT-1, recorrendo a siRNA (small
interfering RNA) se conseguiu reduzir significativamente a tumorigénese em
culturas celulares de CHC; estes resultados sugerem que o GLUT-1 desempenha um
papel directo na oncogénese desta neoplasia, podendo ser um novo alvo
terapêutico para este tipo de tumor [15-17].
A tomografia por emissão de positrões (PET) com recurso ao análogo radiomarcado
da glucose 18F-FDG permite a detecção de processos de glicólise aumentados. O
18F-FDG entra nas células através de transportadores de glucose (GLUTs),
principalmente através do GLUT-1 e do GLUT-3. No entanto, ao mesmo tipo
histológico de tumor poderão corresponder diferentes captações de 18F-FDG
[16,21]. Desta forma, diferentes tumores possuem diferentes captações do
radiofármaco, o que poderá estar intimamente relacionado com as diferenças
existentes na expressão de GLUT's de cada tumor e com o perfil genético
dos mesmos [16, 21].
O efeito anti-tumoral dos flavonóides tem sido estudado, com o intuito de
induzir a inibição do crescimento celular e indução de apoptose numa variedade
de células oncológicas [22]. Os flavonóides e os isoflavonóides são potentes
inibidores do fluxo de glucose [23-25]. Neste sentido, tem vindo a ser estudada
a acção destas substâncias como inibidores do GLUT-1. Este transportador de
glucose possui três domínios de ligação de ATP, que são essenciais para a sua
conformação e afinidade. Deste modo, estes locais de ligação de ATP parecem ser
um alvo possível para estratégias farmacológicas, que resultam no bloqueio do
GLUT-1. Actualmente, tem-se demonstrado que as flavonas, como a genisteína e a
quercetina, inibem as tirosinas cinases da ligação de ATP, sendo capazes também
de inibir o GLUT-1 através deste mecanismo [16].
A quercetina é um flavonóide bioactivo ubíquo que inibe a proliferação de
células oncológicas. Estudos realizados em culturas celulares mostraram que a
quercetina possui actividade contra alguns tipos de células cancerosas [26,27].
Outros estudos recentes sugeriram que a quercetina pode retardar o crescimento
destas células e pode ajudar a promover a apoptose [23-25]. Deste modo, a
quercetina pode ser considerada um potencial agente terapêutico para células
tumorais.
O objectivo deste trabalho consiste na avaliação do efeito anti-cancerígeno da
quercetina, verificando o seu efeito como possível inibidor do GLUT-1.
MATERIAIS E MÉTODOS
Culturas celulares
A linha celular de carcinoma hepatocelular (HepG2), obtida na American Type
Culture Collection(ATCC), foi descongelada e propagada após recepção. A
propagação foi feita em culturas aderentes a 37ºC em atmosfera com 5% de CO2,
utilizando para tal o meio Dulbecco's Modified Eagle's Medium High
Glucose(DMEM) (Sigma) suplementado com 100µM de piruvato de sódio (Gibco), 10%
de soro bovino fetal (Sigma) e 1% de antibiótico (100U/mL de penicilina e 10µg/
mL estreptomicina) (Gibco). Para os estudos de captação as células foram
cultivadas quer em meio com elevado teor de glucose (25mM) quer em baixo teor
de glucose (5mM) (Gibco).
Avaliação da proliferação celular
Para este estudo foi necessária uma suspensão celular com 5x104 células/mL em
meio de cultura distribuída por placas de 24 poços, contendo cada poço 500µL da
suspensão. Após 24 horas, as células foram incubadas com diferentes
concentrações de quercetina que variaram entre 0,1 e 25mM. Depois de 24, 48, 72
e 96 horas a proliferação celular foi avaliada recorrendo ao teste do MTT (3
(4,5-dimetiltiazol-2-il)-2,5-difeniltetrazolium) como descrito em [28]. Os
resultados obtidos foram analisados e processados no programa OriginPro 8.0, de
modo a calcular a concentração que inibe 50% da proliferação celular (IC50).
Estudos de captação de 18F-FDG
Através dos estudos de captação estudou-se o perfil de captação de 18F-FDG ao
longo do tempo, na linha celular HepG2 e na mesma linha incubada previamente
com 37,67µM de quercetina durante 24 horas. Para a realização dos estudos de
captação foi necessário preparar uma suspensão celular com 2x106 células/mL.
Após a preparação da suspensão celular foi adicionado o 18F-FDG numa actividade
igual a 25µCi por cada mL de suspensão celular. Após 5, 30, 60, 90 e 120
minutos de incubação com o radiofármaco, foram retiradas amostras de 200µL da
suspensão celular para tubos de eppendorfque continham solução de tampão
fosfato salino (PBS) gelado, de modo a reduzir o metabolismo celular. De
seguida, as amostras foram centrifugadas a 10000 rpm durante 60 segundos para
completa separação entre o pellete o sobrenadante, tendo este sido recolhido
para um tubo devidamente identificado. Seguiu-se uma lavagem do pelletcom 500µL
de PBS gelado, repetindo-se o procedimento de separação do sobrenadante por
centrifugação. Deste modo, foi possível calcular a captação do 18F-FDG por
parte das células para cada tempo. Assim, através da contagem de ambas as
fracções (pelletse sobrenadantes) no contador de poço em contagens por minuto
(CPM), quantificou-se a percentagem de captação do 18F-FDG pelas células e
traçou-se uma curva de captação ao longo do tempo de acordo com [28].
Citometria de fluxo
De modo a caracterizar a viabilidade celular, os tipos de morte celular e a
expressão membranar e citoplasmática de GLUT-1 recorreu-se à técnica de
citometria de fluxo. A análise foi feita utilizando um citómetro FSCSCalibur
com seis parâmetros e quatro cores, equipado com um laser de árgon de 15nW.
Para cada ensaio foram necessários um milhão de células, sendo contabilizados
10000 eventos utilizando o Software Cell Quest (Becton Dickinsan) e analisados
utilizando o software Paint-a-gate (Becton Dickinson).
a) Viabilidade celular
De modo a avaliar a viabilidade celular e tipos de morte, recorreu-se à dupla
marcação com anexina-V/ iodeto de propídeo (AV/IP). Uma das principais
características da morte celular por apoptose é o facto da fosfatidilserina
(que nas células viáveis se encontra no folheto interno da membrana plasmática)
translocar do folheto interno para o folheto externo da membrana plasmática e
ligar-se à anexina-V. Por outro lado, o iodeto de propídeo que não penetra nas
células viáveis, liga-se ao ácido desoxirribonucleico (ADN) das células em
apoptose tardia e em necrose. Neste ensaio, 1×106 de células foram incubadas
com tampão de ligação, 1µL de anexina-V (KIT Immnotech) e 5µL de iodeto de
propídeo (KIT Immnotech). De seguida as células foram excitadas com uma luz de
comprimento de onda de 525nm para a anexina-V e 640 nm para o iodeto de
propídeo. Deste modo é possível determinar a percentagem de células em
apoptose, em apoptose tardia/necrose, em necrose assim como as células viáveis.
Esta marcação foi igualmente realizada com células controlo e com células
incubadas durante 48 horas com 5µM, 37,67µM e 100µM de quercetina.
b) Expressão de GLUT-1
De modo a caracterizar a expressão membranar e intracelular de GLUT-1 recorreu-
se à citometria de fluxo.
Para cada experiência foram utilizadas um milhão de células. Para a detecção
membranar de GLUT-1 as células foram centrifugadas a 300G (Heraeus Multifuge 1
L-R) e posteriormente incubadas durante 15 minutos à temperatura ambiente com
10µL do anticorpo monoclonal anti-human GLUT-1 (ficoeritrina (PE) mouse anti-
human GLUT-1, R&D Systems).
Para a detecção intracelular de GLUT-1, as células foram previamente fixadas
com o reagente A (Intracell Kit, Immunostep) durante 15 minutos à temperatura
ambiente, e após uma lavagem com PBS a 300G durante 5 minutos, as células foram
permeabilizadas com o reagente B (Intracell Kit Immunostep) e incubadas com
10µL do anticorpo anteriormente referido.
Estas marcações foram feitas para células controlo e para células incubadas
durante 48 horas com 37,67µM de quercetina.
RESULTADOS
Verificou-se que a acção da quercetina na proliferação celular das células
HepG2 é dependente do tempo, ou seja, a proliferação celular diminui à medida
que se aumenta o tempo de incubação de acordo com a Figura_1 e a Tabela_1.
Nas figuras 2 e 3 é possível verificar o perfil de captação de 18F-FDG pelas
células HepG2 ao longo do tempo (células controlo e células incubadas com
37,67µM de quercetina durante 24h). A figura_2 representa os resultados obtidos
em células incubadas em meio com elevado teor de glucose (25mM), enquanto a
figura_3 representa os resultados obtidos quando as células são incubadas em
meio com baixo teor de glucose (5mM). Em ambas as situações, verifica-se que
quando as células são incubadas com quercetina a percentagem de captação do
radiofármaco é inferior à das células controlo.
Na figura_4 podemos observar a expressão membranar e citoplasmática do GLUT-1,
em células HepG2 (controlo) e em células HepG2 incubadas previamente com
37,67µM de quercetina, durante 48 horas. Verifica-se que a quercetina não inibe
a expressão proteica do GLUT-1, tanto membranar como citoplasmática.
Na figura_5, verifica-se que a quercetina possui um efeito de inibição da
proliferação celular, mas não efeito citotóxico, uma vez que mesmo quando se
incubam as células com uma concentração bastante superior à do IC50, não se
observa morte celular para além dos 50%.
DISCUSSÃO
Os flavonóides, entre eles a quercetina têm vindo a ser sugeridos como potentes
agentes anti-cancerígenos [17,26,27]. Um dos mecanismos de acção que é
actualmente atribuído aos flavonóides é a inibição do GLUT-1, que se sabe que
no CHC possui um papel directo na oncogénese e não apenas no transporte de
glucose [16,17].
Através deste estudo, verificou-se que a quercetina possui um efeito anti-
proliferativo na linha celular de CHC HepG2, possuindo este efeito uma
dependência temporal. O efeito anti-proliferativo observado por parte da
quercetina pode dever-se, em parte, à inibição do GLUT-1[16,17], existindo
porém outros factores que devem ser tidos em conta, nomeadamente a expressão do
gene supressor tumoral (TP53), uma vez que se sabe que este gene tem um papel
crucial na indução da apoptose e na paragem do ciclo celular [29,30].
No entanto, e apesar de ocorrer uma diminuição da proliferação celular, através
dos resultados obtidos por citometria de fluxo, verifica-se que a quercetina
não tem um efeito citotóxico, apenas de inibição da proliferação celular. Tal
resultado pode estar relacionado com o facto das células HepG2 expressarem uma
forma normal da proteína 53 e a quercetina estar deste modo impedir a
progressão do ciclo celular [30,31].
A quercetina possui um efeito inibitório na captação de 18F-FDG, sendo esse
efeito mais notório quando as células são propagadas em meio com baixo teor de
glucose. Estes resultados estão de acordo com a bibliografia, uma vez que a
quercetina é tida como um inibidor competitivo do GLUT-1, afectando deste modo
a captação de glucose e seus análogos [17,32].
Ao nível da expressão membranar e citoplasmática do GLUT-1, verifica-se que não
existe inibição do GLUT-1 quando incubado com quercetina, o que nos leva a crer
que apenas existe inibição da função deste transportador membranar, pois inibe
a captação de 18F-FDG, e não da expressão. Este resultado prende-se com o facto
da quercetina ser um inibidor competitivo da glucose, não induzindo deste modo
alterações na expressão deste transportador [17,32].
CONCLUSÃO
Com este estudo foi possível observar que a quercetina possui um efeito anti-
proliferativo na linha celular de CHC HepG2, não tendo porém efeito citotóxico.
Conclui-se também que o composto em estudo é capaz de inibir a captação de 18F-
FDG, sendo este efeito mais notório quando as células são cultivadas em meio
com baixo teor de glucose. Verificou-se também que não existe uma inibição do
GLUT-1 por parte da quercetina. No entanto, mais estudos são necessários para
esclarecer o efeito deste composto na função do GLUT-1.